Nacional

As intervenções de segurança pública no Rio de Janeiro são exemplares em relação à militarização crescente da segurança aliada ao aumento da violência do Estado sobre comunidades periféricas

A Força Nacional tem assumido papel de polícia permanente em vários estados brasileiros. Foto: Fernando Frazão/ABr

O cenário político contemporâneo é de um país que acaba de passar por uma eleição presidencial muito marcada por uma enorme polarização e onde observou-se uma produção incessante de discursos e práticas que expressavam ódio e intolerância. Não é nosso propósito aqui, entretanto, analisar o processo eleitoral em si e o resultado, propriamente dito, que elegeu o presidente da República, que cristalizou entre seus seguidores e eleitores esses discursos e práticas de ódio e intolerância.

Assim sendo, queremos dizer que discursos e práticas com marcas emblemáticas de ódio e intolerância estabelecem interfaces com as questões da punição e da militarização da segurança. Na verdade, encontram-se intimamente imbricadas.

É um enigma, mas a punição, nesse contexto, volta a assumir sua antiga face sagrada. As formas rituais do sacrifício, ou seja, os mecanismos propiciatórios permitem que a vítima sacrifical seja imolada para apaziguar os deuses sem que sua morte seja considerada assassinato. Quem imola também está isento das imputações jurídicas. A morte deixa de ser sentida como uma violência que requer reparação. A punição, em seu sentido sagrado, portanto, justifica uma violência ritual. Agamben (2004a) explora essas questões em seu conceito de Homo sacer, aquele que é matável, mas não sacrificável. O Estado de exceção seria, então, o espaço político em que a violência é justificável mesmo quando fere diretamente a norma legal. Assim, a violência torna-se o fundamento do Estado soberano ao mesmo tempo em que define seu limite (Agamben, 2004; 2004a). A violência utilizada no “combate” ao criminoso tido como “bandido” define a característica central do Estado na medida em que aciona mecanismos de guerra e de punição1.

O governo da população e a gestão da vida correm paralelamente à aceitação dos custos altos das mortes como estratégia de segurança. As sociedades ocidentais, na esteira do desmantelamento do Estado de bem-estar social, têm investido no modelo de controle social pelo encarceramento, pela vigilância e pela liquidação de direitos, o que reforça a obsessão por segurança e por punição (Wacquant, 1999).

A experiência das intervenções de segurança pública no Rio de Janeiro é exemplar em relação a essa situação de militarização crescente da segurança aliada ao aumento da violência do Estado sobre comunidades periféricas. Grande parte das justificativas para as intervenções gira em torno do chamado crime organizado e do tráfico de drogas. Afinal, estamos diante de uma nova onda de militarização da segurança pública no Brasil ou mesmo de uma “militarização do campo social”? Várias mudanças no cenário recente da segurança pública no país podem ser ponto de partida para a discussão. As Forças Armadas podem fazer atividades policiais como revistar pessoas, veículos, embarcações, bem como podem deter pessoas consideradas suspeitas em áreas de fronteira. O Brasil tem investido menos em instituições permanentes e civis de segurança e mais em instrumentos de intervenção pontuais, cuja definição, identidade, estatuto jurídico e formas de controle são ambivalentes2.

A Força Nacional de Segurança é um exemplo de intervenção militarizada em situações de crise na segurança, como greves de policiais, conflitos entre forças policiais e milícias ou ataques por parte do chamado crime organizado. A Força Nacional tem assumido papel de polícia permanente em vários estados brasileiros: no Distrito Federal ela faz a fiscalização do chamado contorno; nas fronteiras, em áreas indígenas e em assentamentos está atuando de forma recorrente3. Oficiais das Forças Armadas têm presença significativa nas agências de inteligência e nas instituições da segurança, assim como policiais militares têm presença garantida em diferentes instâncias da administração pública, incluindo os municípios. Os militares nunca deixaram o espaço da política e ainda ocupam posições importantes na burocracia estatal, nos três níveis de governo. Importante lembrar que essa não é uma tendência restrita ao Brasil, vários países estão organizando suas polícias de forma militarizada, sempre com a justificativa da luta contra o terrorismo, contra o crime, organização transnacional ou contra o poderio de fogo das organizações criminosas (Nóbrega Jr., 2010).

As forças militares brasileiras têm desempenhado papel na estabilização social e política do Haiti. A segurança dos grandes eventos internacionais foi planejada e contou com a presença ostensiva das Forças Armadas. Apenas como ilustração: a Copa das Confederações contou com uma operação militar de defesa formada por 23 mil militares das três Armas e um investimento de R$ 710 milhões (O Estado de S. Paulo, 15/6/13); pelo menos 10 mil militares e 6,5 mil policiais militares fizeram a segurança do papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude (Folha de S. Paulo, 9/7/2013). O governo da Bahia mobilizou o Exército, juntamente com a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária, a Secretaria de Segurança Pública e o Ministério Público, para combater os assaltos na saída dos bancos durante greve da polícia (Correio Braziliense, 19/6/2013). As forças de reserva acabam ficando permanentemente em alerta para atuação de policiamento cotidiano e regular. Os militares fazem a segurança dos principais prédios do governo brasileiro em Brasília para garantir a segurança e evitar a depredação, durante as manifestações de junho de 2013 (Correio Braziliense, 21/6/2013; Folha de S. Paulo, 21/6/2013; O Estado de S. Paulo, 20/6/2013). Essa tendência é antiga e vem se tornando norma. Desde as intervenções militares da Eco-92, são constantes os apelos aos militares para garantir a segurança, como ocorreu em 2014, na Copa do Mundo, e em 2016 nas Olimpíadas do Rio de Janeiro4. Não obstante, os indicadores de violência criminal continuaram sua tendência de crescimento (Destaque, 18/4/2018; Brasil de Fato, 23/2/2018). Não podemos esquecer que em 2017 o Exército brasileiro protagonizou uma intervenção nas favelas da Maré e do Morro do Alemão que custou aos cofres públicos mais de R$ 1 bilhão (Estado de S. Paulo,18/8/2017)5.

A intervenção militar de fevereiro de 2018, em que, pela primeira vez na história do país, há, de fato e de direito, um interventor militar sobre a segurança pública, caminha nessa direção. É uma mistificação autoritária achar que o poderio militar de 36 mil homens em armas poderá produzir qualquer efeito duradouro a não ser a necessidade da duração infinita de novas intervenções. De fato, estamos diante de um Estado de exceção permanente.

As ações militares sinalizam para resultados pífios, e, em geral, são estratégias para fazer a gestão da pobreza numa das cidades mais desiguais do país. Desta forma, sob essa ótica, objetiva-se garantir, pela força, um exercício político que, contudo, não possui legitimidade. Essas estratégias de intervenção ficam patentes a cada incursão das forças policiais da exceção, como foi o caso da prisão de mais de 150 pessoas num pagode sob a justificativa de se tratar de uma festa de milicianos (Folha de S. Paulo, 22/4/2018). A intervenção, portanto, decorre de uma tendência de militarização da segurança pública. E essa militarização está se prestando a violar direitos de cidadania, sobretudo quando coloca as populações dos morros e periferias em Estado de sítio, sendo comuns as tentativas ilegais de revista sistemática, invasão de domicílios, prisões arbitrárias e até mesmo identificação em massa não autorizada pela lei6. Sendo assim, a militarização da segurança está contribuindo para elevar os níveis de infâmia dos moradores de periferia porque veem seus corpos cada vez mais circunscritos (Caldeira, 2001). Mesmo tendo uma face abertamente ilegal, as intervenções militares na segurança são vestidas de legalidade a partir de ajustes legislativos infraconstitucionais que são, no mínimo, preocupantes, sobretudo no que diz respeito à tentativa de furtar o julgamento de crimes cometidos por militares em função de polícia da justiça comum7.

Há um paradoxo contemporâneo no qual o Brasil encontra-se imerso: as contradições do Estado de direito. Numa sociedade em que há uma sacralização da pena, na qual há, portanto, um verdadeiro clamor por penas ainda mais severas e rigorosas, sem dúvida alguma os “direitos humanos” em questão não aparecem nesse cenário com a devida e merecida indignação e gravidade de uma sociedade, profundamente desigual e hierarquizada (Freixo, Serra e Medeiros, 2012). A questão política da sacralização da pena se articula com a despolitização dos conflitos sociais, da violência, da criminalidade, e por tais motivos observamos com bastante intensidade o fenômeno da judicialização da política e, por conseguinte, o que se encontra imbricado, o recrudescimento do aparato estatal punitivo que potencializa em larga a letalidade do Estado. A desconstrução desse modelo representa um passo decisivo no sentido de se findar com a ótica da guerra, que reifica a cultura do inimigo e, portanto, torna-se imperativo politizar os conflitos e a existência humana.

Diante da perda da significação e da violência banalizada, precisamos, portanto, seguir a recomendação de Michel Foucault e inverter a proposição de Clausewitz: a política é a extensão da guerra por outros meios. As relações de poder estão encontrando sua ancoragem na guerra e nos dispositivos militares. O poder político insere essas relações nas instituições e as armas tornam-se os verdadeiros juízes (Foucault, 1999, p. 22-23). Em outros termos, já que o militarismo, além de representar o modelo de um estado de exceção, abre-se para toda uma ritualística fúnebre, que potencializa a morte impune. Sendo assim, uma possibilidade interpretativa diz respeito à constatação de que, no Brasil, o Estado historicamente configura-se enquanto um aparato punitivo e que traz consigo, portanto, toda uma estratégia violenta imbricada à lógica do estado de exceção.

Carlos Henrique Aguiar Serra é professor do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em História pela UFF

Luís Antônio Francisco de Souza é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp, campus de Marília. Doutor em Sociologia pela USP

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2014.

______________. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014 a.

BATISTA, Nilo. “Mídia e sistema penal”. Revista Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

BATISTA, Nilo; BATISTA, Vera Malaguti (Orgs.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

BAYLEY, David. Padrões de Policiamento. São Paulo: Edusp, 2001.

______________. Changing the Guard. Developing democratic police abroad. Oxford: Oxford University Press, 2006.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2001.

DE GIORGIO, Alessandro. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Tradução de Sergio Lamarão.  Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006.

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.

ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

______________. Vigiar e Punir. O nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

FREIXO, Adriano de; SERRA, Carlos Henrique Aguiar e; MEDEIROS, Dulcinéa de. “O Estado de direito no Brasil e suas incongruências: os direitos humanos em questão”. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, v. 2, n. 1, p. 65-82, jan./jun. 2012, São Carlos.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001.

GROS, Frédéric. États de Violence. Essai sur la fin de la guerre. Paris: Galimard, 2006.

GUSSO, Luana de Carvalho Silva. Carne e Culpa: notas sobre a gestão penal do sexo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (Org.). Vida sob Cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

______________. “Cidades controladas. O controle do crime violento na cidade do Rio de Janeiro”. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 67, fev. 2013.

______________. “Afinal, qual é a das UPPs?”, mar. 2010. http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/artigo_machado_UPPs.pdf.

NÓBREGA JR., José Maria Pereira da. “A militarização da segurança pública: um entrave para a democracia brasileira”. Revista de Sociologia e Política, v. 18, n. 35, p. 119-130, fev. 2010.

SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Tradução de Álvaro L. M. Valis. Petrópolis: Vozes, 1992.

SERRA, Carlos Henrique Aguiar; ZACCONE, Orlando. “Guerra é paz: os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário”. In: Batista, Nilo e Batista, Vera Malaguti (Orgs.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

SOUZA, Luís Antônio Francisco de. “A militarização da segurança pública”. Le Monde Diplomatique, n. 56, mar. 2012.

WACQUANT, Loïc. Les Prisons de la Misère. Paris: Éditions Raisons d’Agir, 1999.

______________. “The militarization of urban marginality: lessons from the brazilian metropolis”. International Political Sociology, n. 2, p. 56-74, 2008.

ZAVERUCHA, J. FHC, Forças Armadas e Polícia: entre o autoritarismo e a democracia, 1999-2002. Rio de Janeiro: Record, 2005.