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Após a promulgação da Constituição de 1988, uma caixa-preta permaneceu intocada pelos governos civis: a educação militar. Isso contribui para um déficit de cultura democrática em parte expressiva das FA

Justamente, nos governos petistas, a presença das FA em atividades de segurança pública se tornou mais constante. Foto: Divulgação

A ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República tendo em torno de si, inclusive na vice-presidência, um grupo palaciano formado por diversos oficiais-generais da reserva que, até recentemente, ocupavam cargos importantes na estrutura das Forças Armadas (FA) e contando com o voto e a simpatia da maior parte das tropas, traz implícita uma questão de extrema relevância: como um ex-capitão, de carreira militar apagada, reformado como decorrência de processos disciplinares, com uma atuação pífia como parlamentar e que até não muito tempo era visto com ressalvas e mesmo com desdém por boa parte das lideranças militares, conseguiu angariar toda essa base de apoio nos meios castrenses?

Para a compreensão desse fenômeno, dois pontos nos parecem fundamentais e é a partir deles que procuraremos construir nossa análise:
1- o revigoramento da ideologia anticomunista – bastante presente nas Forças Armadas desde o século passado –, com nova roupagem e em perspectiva ampliada, entre parte expressiva dos militares, de forma concomitante com outros setores da sociedade;
2- o desejo, implícito ou explícito, dos militares em retomar o protagonismo e o “prestígio” perdidos – relacionando-se este último com o “reconhecimento” por parte da sociedade da importância do estamento militar e da necessidade de dar a ele um tratamento diferenciado –, em um momento de crise, no Brasil e no mundo, da democracia formal e da representação política.

Sobre o anticomunismo militar, pode-se dizer que remonta, pelo menos, à década de 1930, quando em um contexto de transformações na sociedade e no Estado brasileiros, de polarização ideológica e de profundas divisões políticas nos meios castrenses – em especial, no Exército –, ele pareceu ser, para algumas importantes lideranças militares do período, a ideologia capaz de unificar as Forças Armadas e de acabar com suas dissensões internas. Assim, embora haja quem defenda a ideia de que a ideologia comunista vai de encontro ao ethos militar – devido à percepção de que ela se opõe aos dois princípios organizacionais básicos da instituição castrense, a hierarquia e a disciplina – e de que as Forças Armadas, defensoras por excelência do status quo, seriam dotadas de um conservadorismo intrínseco, sendo o anticomunismo, portanto, algo quase inato a elas, não se pode negar e/ou retirar a historicidade da construção dessa ideologia anticomunista nas FA.

Logo, é a necessidade de eliminar as disputas e divisões intestinas que aparece como elemento central para a consolidação de um sentimento anticomunista – até então difuso – nos meios militares. E nesse processo, a fracassada Revolta Comunista de 1935 e a narrativa construída sobre ela pelas lideranças militares e pela ditadura estadonovista (1937-1945) desempenhou um papel central. Não é à toa que a “Intentona Comunista” tornar-se-ia um dos principais eventos rememorados pelas Forças Armadas nas décadas seguintes, estando essas rememorações entre as mais importantes cerimônias militares até o início dos anos 1990, contando quase sempre com a participação do presidente da República.

Porém, o expurgo definitivo das vozes dissidentes só se concretizaria com o golpe de 1964 e a subsequente ditadura civil-militar. Já nos primeiros anos do novo regime, os militares alinhados com posições à esquerda – dos partidários do reformismo nacionalista do PTB aos simpatizantes do Partido Comunista – foram afastados, cassados e perseguidos, o que efetivou sobremaneira a consolidação da hegemonia do pensamento conservador, em suas diversas nuances, no interior das Forças Armadas.

Nos anos finais da ditadura, durante a transição democrática, a preocupação central de alguns dos líderes militares, como os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, foi a de preservar a instituição militar, dentro da lógica da “distensão lenta, gradual e segura”, buscando prevenir “revanchismos” de futuros governos civis e minimizar os desgastes causados nas Forças Armadas pelo longo tempo à frente do regime ditatorial. Tal lógica permaneceria durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), quando um bem organizado lobby militar conseguiu manter uma série de privilégios para as Forças Armadas na “Constituição Cidadã”, a mesma que abriria caminho, de um lado, para o início de um maior controle civil sobre os militares, que se articularia nas décadas seguintes, e, de outro, para o deslocamento das FA de suas funções precípuas relacionadas à defesa nacional para maior atuação na área de segurança pública e de garantia da ordem.

Nesse contexto, marcado pela democratização em nível doméstico, pelo fim da Guerra Fria e pelo triunfo da ordem liberal, assiste-se a uma gradual perda de protagonismo dos militares, que se traduz tanto em restrições orçamentárias, e na consequente redução dos investimentos no setor militar, quanto na ampliação do controle civil sobre as Forças Armadas, que teria um importante ponto de inflexão com a criação do Ministério da Defesa, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1999. Paralelamente, intensifica-se o uso de um dispositivo previsto na Constituição Federal de 1988, as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com a crescente utilização das FA na segurança pública.

Previstas na Constituição Federal de 1988 e regulamentadas por meio de leis complementares e decretos editados entre 1999 e 2010, essas operações são definidas, em seu arcabouço legal, como “operações militares conduzidas pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que têm por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento de instrumentos para isso” (Portaria Normativa 186/MD/2014). Assim, foi tornando-se comum a utilização de contingentes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na segurança de eventos que contam com a participação de autoridades e chefes de Estado estrangeiros – como a Rio 92 ou alguns encontros de Cúpula – ou que mobilizam grandes multidões, como as visitas do Papa ou megaeventos esportivos.

No entanto, foi a partir da década passada, justamente durante o ciclo de governos petistas, que a presença das FA em atividades de segurança pública se tornou mais constante, independentemente da ocorrência de grandes eventos, tendo ganhado destaque durante o processo de criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, a partir de 2008. A banalização das operações GLO geraria inúmeras críticas por parte de diferentes segmentos, sendo a principal questão de fundo o fato de que o aumento no número dessas operações – bem como a forma como elas vêm sendo executadas – representaria um desvio da atividade-fim das Forças Armadas, qual seja, a defesa do Brasil contra inimigos externos. Somam-se a isso os questionamentos sobre o despreparo das tropas para lidar com situações cotidianas da segurança pública e o ainda existente déficit de cultura democrática dentro das FA, bem como a lembrança de sua histórica atuação no combate ao “inimigo interno” – os acusados de “subversão” – em períodos de repressão política.

Porém, pragmaticamente, setores militares defendem as operações GLO como forma de aumentar o orçamento das FA, bem como de adquirir novos equipamentos e armamentos, mesmo reconhecendo que elas representam certo desvio da atividade-fim castrense. Também acabou se tornando comum entre seus defensores a utilização do argumento de que a experiência dos militares brasileiros na Missão de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti (Minustah) teria fornecido a eles algum know-how em operações de segurança pública e que, portanto, eles reuniriam todas as condições de cumprir essa atribuição também prevista no texto constitucional.

Nesse contexto, após uma sequência de governos de centro e de esquerda, e em que a democracia brasileira apresentava-se como definitivamente consolidada, parecia que as FA tinham efetivamente se recolhido aos quartéis e se subordinado ao poder civil. As boas relações com os governos civis, mesmo os petistas, chegaram ao auge durante o segundo mandato de Lula, com Nelson Jobim à frente do Ministério da Defesa. O aumento dos orçamentos militares, o reequipamento das Forças Armadas, a recuperação de perdas salariais, a elaboração da Estratégia Nacional de Defesa, o reconhecimento da indústria de defesa como peça importante em um projeto nacional de desenvolvimento e a retomada de projetos estratégicos, como o do submarino nuclear, levaram essas relações a um ponto ótimo. Nesse momento, o anticomunismo parecia estar restrito a pequenos grupos extremistas da direita castrense e a manifestações esporádicas de militares de reserva, notadamente aqueles articulados em torno do Clube Militar.

No entanto, nos trinta anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, uma caixa-preta permaneceu intocada pelos governos civis: a educação militar. Mais do que locais de formação técnica e de preparação para o exercício das funções castrenses, as escolas militares são importantes espaços de socialização e de transmissão dos valores institucionais para os futuros oficiais. Esse processo se dá não somente através das disciplinas que compõem os currículos das academias, mas também pela convivência com os professores e oficiais pertencentes a gerações anteriores, que funcionam como os grandes responsáveis pela formação dessa identidade institucional nos jovens cadetes.

A intocabilidade desses espaços contribui para a existência de um déficit de cultura democrática em parte expressiva das FA, que leva a situações como a escolha do general Emílio Garrastazu Médici como patrono da turma de formandos da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em 2010, ou o discurso saudosista da ditadura ainda bastante comum entre militares mais jovens, que não viveram aquele período ou que tiveram a maior parte ou a totalidade de sua formação profissional já durante o período democrático. Isto também aparece de forma muita clara nas críticas ao trabalho da Comissão da Verdade, instaurada em 2011, e na resistência em discutir de forma aberta e democrática o que ocorria nos porões da ditadura. Todas essas questões acabam por remeter a outro problema de fundo: a dificuldade das Forças Armadas em lidar com o controle civil sobre elas, representado simbolicamente por um Ministério da Defesa, cujo titular não pode ser um militar da ativa e que até o governo Temer, desde a sua criação, vinha sendo exercido por civis.

De outro lado, o avanço conservador dos últimos anos acabou por revigorar no interior das FA o velho anticomunismo, agora travestido de uma nova roupagem: a crítica ao “marxismo cultural” e às “estratégias gramscistas” que estariam sendo implementadas pela esquerda brasileira desde o início do processo de redemocratização. Não é coincidência que um dos livros mais vendidos da história da Biblioteca do Exército seja A Revolução Gramscista no Ocidente, de autoria do general de Brigada Sérgio de Avellar Coutinho.

Embora a primeira edição da Bibliex date de 2012, ele foi publicado pela primeira vez uma década antes pela Ombro a Ombro (nome de fantasia da Estandarte Editora e Empreendimentos Culturais), uma pequena editora carioca de orientação direitista que publicou, dentre outros, autores como Mohamed Ali Seineldin, o coronel argentino que liderou sublevações militares contra os primeiros governos democráticos pós-ditadura em seu país. Atualizando o histórico anticomunismo das Forças Armadas com as teses sobre o “marxismo cultural” – provenientes da extrema-direita estadunidense e difundidas no Brasil desde o final da década de 1980 por Olavo de Carvalho –, associadas a uma interpretação bastante particular do conceito gramsciano de “Revolução Passiva”, essa obra rapidamente se tornou referência para amplos setores da direita militar e civil, no bojo do crescimento do conservadorismo no Brasil.

Tais teses vêm sendo replicadas, de forma explícita ou implícita, pelo grupo de generais da reserva que desde a campanha se articulou em torno de Bolsonaro, muitos dos quais ocuparam cargos relevantes na hierarquia das FA até recentemente, inclusive nos governos petistas. Nessa visada, críticas a uma pretensa “doutrinação esquerdista” nas escolas e universidades, bem como a necessidade de uma “revisão histórica” sobre o período ditatorial, têm sido recorrentes em entrevistas e manifestações públicas de nomes como os generais Aléssio Ribeiro Souto, Rocha Paiva ou Hamilton Mourão, vice-presidente eleito. Sintomáticas desse anticomunismo redivivo são as recentes declarações do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, tido como um moderado, sobre a necessidade de rememoração da Intentona Comunista.

Paralelamente a isso, ao mesmo tempo em que se intensificavam as operações GLO, começam a ocorrer algumas tensões entre as Forças Armadas e o governo, durante os dois mandatos de Dilma Rousseff, levando a um gradual esgarçamento das relações com os militares. Além da já citada reação à instauração da Comissão da Verdade, em 2011, juntar-se-ia o mal-estar gerado pela assinatura pela presidenta, em setembro de 2015, do Decreto nº 8.515/15, elaborado no âmbito do Ministério da Defesa durante a gestão de Jacques Wagner.

Esse decreto, dentre outras decisões, retirava dos comandantes das Forças Armadas e transferia para o ministro da Defesa a competência de assinar atos relativos a pessoal, como a transferência para a reserva, reforma de oficiais da ativa e da reserva, promoção de oficiais e até mesmo a nomeação de capelães militares, mexendo inclusive nos critérios de ascensão ao generalato. Para tentar minimizar o estrago, uma semana depois da sua edição foi feita uma retificação que estabelecia que o ministro da Defesa poderia subdelegar aos comandantes das Forças Armadas tais competências. Mas isso não pareceu suficiente para setores expressivos das FA, que também externavam preocupação com as discussões existentes no governo sobre mudanças no ensino militar.

Essas tensões manifestar-se-iam durante o processo que culminou no soft coup de 2016, quando, apesar de uma neutralidade aparente, setores das FA flertaram claramente com o esgarçamento da institucionalidade até seu limite, deixando implícito seu apoio ao afastamento da presidenta legítima. Isso ficou visível em algumas iniciativas, sendo talvez a mais explícita ocorrida durante o período de interinidade de Michel Temer, quando a mais alta honraria do Exército, a “Medalha do Pacificador”, foi concedida ao juiz Sérgio Moro – personagem-chave na chamada “luta contra a corrupção” por liderar a operação Lava Jato – e ao então ministro interino da Defesa Raul Jungmann. As condecorações aconteceram no dia 25 de agosto de 2016, poucos dias antes da confirmação do impedimento de Dilma Rousseff no Senado, no que pode ser entendido como uma discreta tomada de posição por parte do Exército.

Convém registrar também que mesmo antes da abertura do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, o então vice-presidente já articulava pontes com as FA, conforme noticiado pela mídia nos primeiros meses de 2016, através do general Sérgio Etchegoyen, futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. O golpe contribuiria para o aumento do protagonismo das Forças Armadas na vida nacional: a crise na segurança pública em diversos estados e as vicissitudes de um governo impopular, aliadas ao crescente clamor de segmentos da sociedade pela utilização das FA – com sua popularidade renovada – contra o “crime organizado”, intensificariam a utilização dos militares no combate a esse novo “inimigo interno”.

Em contrapartida, o governo Temer faria uma série de concessões aos militares, prestigiando-os e tratando-os como um estamento à parte da sociedade, com privilégios e direitos específicos. Sintomaticamente, um dos primeiros atos do novo governo, ainda na fase da interinidade, seria a revogação do citado Decreto nº 8.515/15 e o restabelecimento das competências dos comandantes das Forças Armadas. Além disso, os militares foram excluídos do controverso projeto de reforma da Previdência apresentado pelo governo, bem como tiveram o atendimento de antigas demandas, como a aprovação da Lei nº 13.491/17, que estabelece que os crimes de morte contra civis cometidos por militares no decorrer de operações GLO sejam julgados por tribunais militares e não civis.

Simultaneamente, lideranças militares da reserva e mesmo da ativa – contrariando o código disciplinar militar – passaram cada vez mais a se manifestar sobre questões políticas, quase sempre em defesa de medidas de exceção implementadas nos últimos dois anos, contribuindo para a percepção de que as Forças Armadas procuravam se apresentar, mais uma vez, como um “poder moderador” a tutelar a vida nacional. Uma das sinalizações mais contundentes nesse sentido se deu com o já célebre tweet do general Villas Bôas, às vésperas do julgamento do habeas corpus a Lula da Silva pelo STF, em abril deste ano, que para muitos pareceu um sutil alerta à Suprema Corte contra a concessão da liberdade ao ex-presidente. Tais acontecimentos contribuíram sobremaneira para pôr em xeque uma narrativa que ganhou força entre setores da esquerda, notadamente no pós-golpe, mas que peca por negar ou relegar a segundo plano o alto grau de coesão e institucionalização das FA: a de que haveria uma pretensa disputa entre militares “democratas” e “legalistas”, personificados em Villas Bôas, e “golpistas”, que teriam em Etchegoyen a sua figura mais destacada, tentando reeditar assim, a fórceps, a dicotomia “moderados x linha dura”, do período 1964/1968, que, por sinal, também vem sendo bastante relativizada pela historiografia mais recente.

Dessa maneira, a aproximação entre setores das Forças Armadas e Bolsonaro acabou sendo o desdobramento lógico das questões que procuramos apresentar, de forma sintética, ao longo deste breve artigo. E apesar de recentes declarações dos generais Villas Bôas e Etchegoyen, em entrevistas à grande imprensa, de que a eleição de Bolsonaro não significa a partidarização ou a politização das Forças Armadas, é inquestionável que ela as coloca novamente como ator de relevância na política doméstica brasileira. Resta saber até que ponto irá esse protagonismo.

Adriano de Freixo é doutor em História Social pela UFRJ e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense – Inest/UFF

Sugestões de leituras para aprofundamento

CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e Militância: uma relação dialeticamente conflituosa. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.
FREIXO, Adriano de; RODRIGUES, Thiago. 2016: o ano do golpe. Rio de Janeiro: Editora Oficina, 2016.
MONTEIRO JÚNIOR, Luiz Otávio R. “A cruz e a espada contra a foice e o martelo: anticomunismo católico e militar no Brasil (1917-1945)”. Dissertação de Mestrado (Estudos Estratégicos). Niterói, Ppgest-UFF, 2014.
RODRIGUES, Thiago. “Narcotráfico, militarização e pacificações: novas securitizações no Brasil”. In: PASSOS, Rodrigo D. F. dos; FUCCILLE, Alexandre. Visões do Sul: crise e transformações do sistema internacional. V. 2. Marília: Oficina Universitária/Cultura Acadêmica, 2016.
SOARES, Samuel A. Controles e Autonomia: as Forças Armadas e o sistema político brasileiro (1974-1999). São Paulo: Editora da Unesp, 2006.