...Cuba sempre foi para nosotros, os que embarcamos na perspectiva revolucionária, uma referência essencial. Havia estado lá no final de 2007, início de 2008. E agora, em novembro de 2018. Há tanto que dizer da primeira viagem, mas destaco apenas a leitura, no avião, na ida e na volta, do Cien Horas Con Fidel, de Ignacio Ramonet. Um trabalho jornalístico precioso. No capítulo 2, Fidel afirma uma coisa absolutamente essencial: “el hombre no es totalmente dueño de su destino”, “también es hijo de las circunstancias, de las dificultades, de la lucha”, “el hombre no nasce revolucionário, me atrevo a decir”, ele próprio, Fidel, confessa, “yo me converti en revolucionário”. Era a terceira edição. Ganhei a quarta agora, presenteada por Abel Costa Damas, vice-ministro da Cultura, que me ha regalado ainda com um Havana Club e um Santiago de Cuba, preciosos runs cubanos, os dois com coisa de 40% de álcool. O segundo é difícil de se encontrar em Havana, é espécime raro. Ao lado dele, estavam Rosa Teresa Rodriguez Lauzurique, diretora de Relações Internacionais do Ministério, e Sadia Acosta Brooks, especialista principal da Área de América Latina e Caribe. Fez-me um honroso convite: convidou-me para ser um dos palestrantes da IV Conferência Internacional pelo Equilíbrio do Mundo, que ocorrerá em Havana de 28 a 31 de janeiro de 2019. Por isso, e muito mais, tenho repetido que fui tratado em Cuba com um carinho, uma atenção muito maiores do que mereço. Tive uma agenda intensa, a me propiciar atualização sobre a revolução. Logo na chegada, fui recebido por dirigentes, homens e mulheres, na Casa de las Américas. Criada em abril de 1959, conseguiu atrair os melhores escritores e artistas latino-americanos e caribenhos para variadas iniciativas – encontros, prêmios, exposições, representações teatrais, conferências e concertos organizados por ela, cuja fundadora, Haydee Santamaría, é lembrada na Ilha com imenso respeito. Me incitaram a falar da situação brasileira e os ouvi sobre Cuba, às vezes provocando-os, e não há fuga a quaisquer questões – enveredamos por discussões sobre direitos humanos, homossexualismo, psicologia, racismo, machismo, enfrentadas com tranquilidade. Carla, minha companheira, me acompanhava, e interveio de modo particular na discussão sobre psicologia. Participaria de um encontro sobre o tema em Havana. Da reunião, participou Yolanda Alomá Reyna, diretora de Relações Internacionais da Casa e psicóloga, que aproveitou para trocar ideias com Carla. Lembro-me de Aurelio Alonso, subdiretor da revista Casa de las Américas, falando sobre a relação entre a psicologia e o legado de Freud – não sou literal: uma, ampla, horizontal, a psicologia; Freud, mergulhou, e mergulhou bem mais fundo, não tão horizontal. Mais ou menos isso, a demonstrar que o pai da Psicanálise não é desconhecido em Cuba, e a profundidade de sua abordagem, admirada. Deixei dois livros meus para a biblioteca da Casa – Lamarca, o Capitão da Guerrilha, e A Última Clandestina em Paris. No Instituto Cubano de Amistad con los Pueblos (Icap), fui recebido por José Prieto Cintado, vice-presidente, a quem tracei um quadro sobre as últimas eleições brasileiras. A destacar que foi essa instituição a organizar minha agenda. Tive como acompanhante atenta, cuidadosa, a companheira Yarisleidis Medina Valle, especialista do Icap para o Cone Sul. No Instituto Cubano do Livro, fui recebido por Juan Rodríguez Cabrera – todos o conhecem simplesmente como Juanito. A instituição fica na rua Obispo, a mais movimentada do centro de Havana. Voltei à minha adolescência – o elevador de portas metálicas me lembrou o tempo de office-boy no Banco Comercial do Brasil em São Paulo, rua Benjamin Constant. Na longa conversa, duas alegrias especiais. Primeira, Cuba editará os cinco volumes de minha série “Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento” e Lamarca, o Capitão da Guerrilha. Segunda, Juanito me presenteou com a biografia de José Martí – Cesto de Llamas –, de Luis Toledo Sande. Reclama contar melhor. Eu havia perguntado sobre alguma obra que me apresentasse ao herói da independência de Cuba. Foi à estante de seu gabinete e sacou o livro. Me explicou: este está autografado pelo autor para mim. Conformei-me: então não posso ser regalado con el. Tirou a caneta, fez um autógrafo dele, acima da dedicatória do autor, e me entregou. Quando me pus a ler, constatei que ao longo do texto havia várias observações de Sande a caneta, indicando que a próxima edição terá modificações. Um livro raro me chegava às mãos. De uma sentada, li. Acompanhei uma vida intensa, feita de luta e poesia, de amor, amores, de versos maravilhosos, uma visão grandiosa sobre a América Caribenha e Latina, saber que admirava de modo entusiasmado Bolívar, Miguel Hidalgo e José de San Martín, que tinha quase como certo que entregaria a vida à independência, como entregou, morto no início da luta que organizara com tanta tenacidade, em 19 de maio de 1895, aos 42 anos de idade. No Centro Cultural Dulce María Loynaz, principal espaço de estímulo à criação e promoção de escritores do Instituto Cubano do Livro, fiz uma conferência sobre a situação brasileira, a derrota que havíamos sofrido, a disposição de insistir na luta pela reafirmação da democracia e pela retomada de direitos seculares do povo brasileiro. A mesa, dirigida por Alberto Edel Morales Fuentes, diretor da instituição, sempre ia entregando um ou outro exemplar de meus livros. Estive no Memorial da Denúncia, um museu moderno, com predomínio de tecnologias digitais e expressões artísticas diversas, dedicado às vítimas do terrorismo contra Cuba, à denúncia das agressões dos governos dos EUA desde 1959. As seis salas mostram a atividade terrorista da CIA e de outras agências da contrarrevolução, o terrorismo de Estado (dos EUA), o bloqueio econômico americano, a guerra midiática, a manipulação da emigração cubana, e mostram também as grandes concentrações populares contra as agressões. No Museu Nacional da Música, provisoriamente atrás do La Floridita, onde Hemingway se entorpecia de daiquiris, pude constatar o quanto Cuba valoriza sua memória – instrumentos musicais de origem africana, vindos de África e mantidos na tradição da Santería, muito forte em Cuba, são recuperados com todo zelo; violinos de séculos passados recebem visita de violinistas experimentados para manuseá-los e não permitir que morram, discografia, literatura sobre a rica música cubana, discos de vinil de muito antigamente conservados com todo zelo. Um luxo – invadido pela inveja: como gostaria que zelássemos pela cultura com esse carinho. Fomos, eu e Carla, recebidos carinhosamente por Jesús Gómez Cairo, diretor do museu. A visita ao Museu da Revolução é uma aula de história – é possível acompanhar a história de Cuba passo a passo, particularmente a luta revolucionária liderada por Fidel, e os passos seguintes até os dias atuais. Dei entrevista à TV Caribe, tratando de modo especial do papel tão essencial exercido pelos médicos cubanos do Programa Mais Médicos. À revista La Jiribilla, falei mais demoradamente, tentando enquadrar a situação brasileira no contexto da crise neoliberal em que vive o mundo, entrevistado pela jornalista Rosa Elena Hurtado. Tive o prazer de me encontrar com dirigentes da Revolução Cubana: Jorge Lezcano e Jorge Ferrera Díaz. Reaprendi antigas lições. Não há paraíso em Cuba. É terra de humanos. Pero, muy diferente. Não é uma metáfora essa ilha cercada de inimigos por todos os lados. Não é metáfora seja uma luta de Davi contra Golias. Tudo real. Como real a resistência, o esforço para não deixar o sonho se perder.
***
O mar bramia no Malecon.
Chegara havia pouco dias em Havana, e o mar do Caribe investia impetuosamente sobre a amurada, onde casais costumam sentar à tarde ou à noite para namorar, beber, o que mais seja. Tudo mudou. Nem casais nem trânsito, e alguns edifícios à beira-mar, sitiados. O mar não respeita obstáculos quando nervoso. Me falaram de uma frente fria. Houve quem se molhasse para fazer fotos – capturar a turbulência, fotografar as estocadas. Fato: o mar estava irritado.
Estava reconhecendo Havana naquela segunda visita – a primeira fora no final de 2007.
Tateando ainda, e o mar nos recebia assim. A mim, a Carla, minha companheira e a jovem Lua. As duas foram para um encontro de Psicologia.
É, não estava para brincadeira, o mar.
E nem o governo cubano, que diante das agressões do presidente eleito do Brasil aos trabalhadores de saúde do país, em missão no Programa Mais Médicos, resolve trazê-los de volta. O império americano nunca foi capaz de fazer Cuba abaixar a cabeça, quanto mais um simples seguidor das lições de Trump. Seus médicos merecem respeito. A Ilha se impôs. O mar bramia. Tinha razões para isso.
Cuba contraria tudo. Um olhar distante diria que aquela não era terra para revoluções. Encostada ao Império, que sempre a desejou, que a quis comprar desde o final do século 18, que depois a teve em suas mãos sob oligarquias e ditadores, que fez dela cassino, um povo pobre, a escravidão terminada no final do século 19 com todas suas marcas, uma economia sem força, escassos recursos naturais – como pensar em revolução? E no entanto, desde cedo, pensou. A impetuosidade do mar, sua fúria, me fez pensar nisso, refletir.
As águas revoltas me fizeram pensar na garra do povo cubano, em sua disposição de luta, sua história insubmissa.
Em Cuba, foi Jorge Lezcano que me disse isso, não se fala na revolução tão somente a partir de 1959, quando Fidel e seus guerrilheiros entram em Havana, vitoriosos.
Não. Revolução é entendida como processo, e começa em 1868, com o Padre de la Patria – Carlos Manuel Perfecto del Carmem de Céspedes y López del Castilho.
É uma dessas loucas histórias, improváveis, quase impossíveis.
Possível em Cuba, entretanto.
Passando ali pela rua ao lado do La Floridita, onde Hemingway tomava sempre seus daiquiris, vi um belo grafite encimado por notável frase, “Sean realistas: pidan lo impossible”.
Ontem e hoje.
Céspedes na noite de 9 para 10 de outubro de 1868, em La Demajagua, sua propriedade de tabaco localizada no município de Bayamo, lança o Manifesto do Conselho Revolucionário da Ilha de Cuba. Para estupefação dos seus próprios escravos, declara-os livres e chama-os, convida-os a se unir a ele na luta anticolonialista. Queria uma República em que todos fossem iguais. A luta foi apressada, quem conta é Fidel a Ramonet, porque havia sido decretada a prisão de Céspedes, e ele soube antes que se consumasse. Declara a independência de Cuba, dando início à Guerra dos Dez Anos.
É escolhido presidente da República em Armas. Liderava os plantadores de tabaco e outros fazendeiros – crioulos nascidos em Cuba – e escravos que aceitaram participar da luta. Eram do Leste. A resistência contra a independência, do Oeste, reunia plantadores de cana-de-açúcar, que necessitavam de muitos escravos, e as forças do governo espanhol.
Foi morto em 1874, num refúgio em Sierra Maestra.
Em 1878, para cessar a guerra, foi assinado o Pacto de Zanjon, que admitiu a libertação dos escravos que lutaram com os independentistas, apenas eles. Não houve o fim da escravidão nem se concedeu a independência. Houve os que recusaram aquele pacto, e sobreveio a chamada Guerra Chiquita – ou Little War –, entre 1879-1880, derrotada pelas poderosas forças espanholas.
Depois viria a luta conduzida por José Martí, um dos revolucionários mais queridos por Cuba.
Homem de pensamento e ação.
Escritor, poeta, cônsul de vários países quando viveu em Nova York, intelectual de obra admirável, também corajoso e lúcido revolucionário, que pretendia dar sequência às lutas de libertação anteriores, e deu.
Foi, na fase preparatória da guerra, um artesão, hábil negociador, criador do Partido Revolucionário Cubano, capaz de unir revolucionários das duas guerras de independência anteriores, como Antonio Maceo e Máximo Gómez, e as novas lideranças. Começa em 1895, termina em 1898. Será como resultado dessa iniciativa que Cuba chegará à independência, não obstante de modo limitado.
No meio da guerra, os EUA intervêm, vencem os espanhóis, suscitam a Emenda Platt, que lhes dá o direito de intervir na Ilha quando bem entendessem, além de assegurar, desde lá, a posse da Base de Guantánamo. Em 1902 nasce a República, decididamente limitada pelo Império.
Martí é conhecido em Cuba como Apóstolo e Maestro, e, também, é um herói nacional. É parte inseparável do processo revolucionário do país, lembrado sempre. Fidel o cita mais que a qualquer outro autor do movimento socialista e operário, inegavelmente sua principal fonte de inspiração. Juntava dois heróis num mesmo balaio: um, somente da literatura; outro, da poesia, da literatura, e da ação e elaboração política. Cervantes, com Dom Quixote. Martí, com toda sua monumental obra literária e poética, e com sua vida de revolucionário na luta con los pobres de la tierra.
Yo soy un hombre sincero
De donde cresce la palma
Y antes de morirme quiero
Echar mis versos del alma...
E veio o furacão: Fidel.
Do mar.
No Granma, com seus 82 companheiros.
Do assalto ao Quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, em 26 de julho de 1953, ao dia 8 de janeiro de 1959, quando entra em Cuba, esteve à frente de um processo revolucionário que surpreendeu o mundo pela ousadia e criatividade, e que continua surpreendendo até os dias atuais. Daria sequência com um vigor desconhecido ao processo revolucionário iniciado no século 19, e o levaria adiante sem cessar, fazendo-o chegar aos dias atuais.
São 60 anos de uma revolução que permanece viva, não obstante, e é quase desnecessário dizer, suas óbvias dificuldades pelo fato de ser a única experiência socialista no mundo, atualmente, a conviver com um mundo sob flagrante hegemonia do capitalismo neoliberal-financeirizado, sob implacável cerco norte-americano e das forças neofascistas que emergem mundo afora.
Quase um milagre, um milagre da política revolucionária, e um milagre, Fidel sempre ressaltou isso, decorrente da força e da disposição do povo cubano.
Ninguém faz uma revolução por conta somente da disposição dos revolucionários.
Martí ressaltava, e Fidel nunca deixará de fazê-lo: só era possível pensar na independência e na revolução com o povo cubano, con los pobres de la tierra, nunca ter dúvidas de sua força, e foi essa confiança e a comunhão que se estabeleceu entre os líderes revolucionários e a população que garantiram à revolução seguir adiante, apesar do cerco e de toda sorte de ataques do Império norte-americano.
Por los pobres de la tierra
Quiero mis versos dejar
Por los pobres de la tierra
Quiero yo mis versos dejar
Porque arroyo de la cierra
Me complace más que el mar
A mim, impressionou sempre essa relação entre o povo e suas lideranças em Cuba.
Desta vez, ainda mais.
Pude constatar de que modo isso se dá, para além do carisma de uma liderança como Fidel: a prioridade que o governo revolucionário dá à cultura – e isso envolve o vigor da manutenção da memória, a vitalidade do estudo da história, a valorização de seus heróis, a lembrança de suas datas essenciais, da música, a educação como aspecto essencial, e o fortalecimento das práticas culturais em si – do balé às músicas populares, teatro, cinema, literatura, livros à mão cheia. E cuidam da história, da atual e da passada, inclusive a de outros países. Nesses dias em Cuba, eu vi, se lembrava a Revolta da Chibata – e acá, o fazíamos?
Hegemonia não é algo dado, é conquistada diariamente.
Parecem, os cubanos, ter lido mais Gramsci do que nós, ou exercitado suas lições com muito mais competência.
A revolução só se faz e se mantém com a conquista de corações e mentes.
Há uma noção de pátria muito forte na Ilha.
E tal noção não tem nada a ver com quaisquer visões estreitas.
O país é ao mesmo tempo nacionalista e internacionalista, como o governo cubano tem comprovado com suas missões humanitárias por todo o mundo.
Não exportam armas.
Distribuem médicos pelo mundo.
Exportam solidariedade.
E o fortalecimento da ideia de pátria, vinda desde as guerras pela independência, passando depois pela revolução vitoriosa conduzida por Fidel, é decorrente, insista-se, da educação do povo, de sua permanente formação, de sua cultura, sem a qual tudo poderia vir ao chão. Especialmente após o fim da União Soviética, quando o país viveu o chamado “período especial”, chegando quase ao limiar da fome, para depois se levantar novamente, e sempre com o povo defendendo as conquistas do socialismo.
Brinco ao dizer que Cuba contraria a tese de Marx da obsolescência planejada do capitalismo. Nas ruas de Havana, predominam carros da década de 1950, impossíveis de vê-los circulando pelas ruas de qualquer outra cidade do mundo.
Nada por qualquer preferência do povo.
Tudo decorrente do cerco norte-americano.
Jorge Lezcano me dizia que nenhuma política conduzida por Cuba pode deixar de levar em consideração o implacável bloqueio norte-americano, feito com o objetivo de asfixiar e derrotar a revolução desde sempre.
Dificuldades, dirigentes com quem conversei, não negam, não tergiversam. Com o fim da União Soviética, Cuba teve de exercitar toda sua força cultural e política, toda sua imaginação, para não recuar, voltar ao capitalismo, e, como já se disse, isso só foi possível devido à disposição de seu povo e, claro, à determinação de suas lideranças, de modo especial de Fidel e de Raúl Castro.
Como fazer diante dessas dificuldades?
Perguntei isso a Lezcano.
Parêntesis para breve apresentação.
Jorge Lezcano Pérez, 82 anos, licenciado em Ciências Sociais, desde cedo do Movimento Revolucionário 26 de Julho, ativo militante da revolução. No final do ano de 1960, trabalha no Departamento de Industrialização do Instituto Nacional de Reforma Agrária, sob a direção de Guevara. Fundador do Partido Comunista de Cuba (PCC), torna-se, em 1973, coordenador nacional dos Comitês de Defesa da Revolução (CDR), cargo em que permaneceu durante seis anos. Os CDR, milhões de pessoas organizadas por todo o país, constituíram sempre, até hoje, um mecanismo essencial de defesa e fortalecimento da revolução. Em 1975, é eleito membro do Comitê Central do PCC e integrou seu Birô Político. Foi primeiro-secretário do Comitê Provincial do Partido em Havana e vice-presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular. Escreveu alguns livros, entre os quais Fidel Castro y los CDR.
Fui recebido em sua casa com muito carinho e atenção. Acompanhado por Jorge Ferreira, a quem já conhecia, dirigente da revolução também, dirigente dos CDR, funcionário do Departamento de América do Comitê Central do PCC, conselheiro da embaixada de Cuba no Brasil de 1992 a 1999, depois na Venezuela. Hoje, Jorge, aposentado, milita no seu bairro, em Havana, no núcleo de base do partido.
À minha pergunta, o que fazer diante das dificuldades, Lezcano não vacilou:
– Seguir resistindo.
A marca da revolução: resistir, não vacilar diante das agressões ou de quaisquer cercos.
Essa, a primeira tarefa: seguir resistindo.
Em segundo lugar, manter a unidade do povo.
Sabe, Cuba toda sabe, o quanto foi significativa, forte, decisiva a presença de Fidel, o quanto ainda é forte a herança cultural e política dele.
Não obstante, e como consequência mesmo dessa herança e presença, sempre lembrada, a revolução segue, conduzida pela nova geração, que tem sabido manter o povo unido na defesa das conquistas realizadas e sempre querendo que se avance mais e mais.
Lezcano assegura: a direção da revolução, sobretudo a geração histórica, nunca se descuidou da renovação. O novo presidente, Miguel Díaz-Canel, que assumiu em 19 de abril de 2018, tem apenas 52 anos, e a maioria dos quadros dirigentes está abaixo dos 50 anos.
Os problemas não são poucos: há de modo especial o cuentapropismo – o direito de pessoas trabalharem, investirem em negócios por conta própria.
Uma solução e um problema.
Solução como mecanismo de gerar empregos numa sociedade de escassos recursos e asfixiada pelo cerco norte-americano.
Problema: gera alguma desigualdade, e os dirigentes cubanos têm consciência disso.
Não podiam deixar, no entanto, de tomar tal iniciativa.
Não se permitirá, garante, que surjam milionários. Há uma fiscalização para se manter um padrão médio de crescimento dessas atividades por conta própria. Um risco a correr. Lembra, no entanto: 80% dos trabalhadores cubanos são garantidos pelo Estado socialista. E o cuentapropismo é, também, uma maneira de enfrentar a escassez de investimento estrangeiro, provocada pelo bloqueio americano.
Sabe, e não é fácil chegar a isso: a revolução precisa fazer Cuba alcançar eficiência econômica, produtividade, que lhe faltam desde a origem. Ter a chance de competir com o mundo inteiro. Não pode ficar para trás num cenário em que novas tecnologias se multiplicam a cada segundo. Não é simples, até pelos recursos de que o país dispõe, reconhecidamente escassos.
Na conversa com os dirigentes da Casa das Américas, ouvi o mesmo alerta: ou se resolve o problema econômico ou nada poderá ser devidamente enfrentado em meio a um quadro mundial profundamente desfavorável, com a perda crescente de aliados fundamentais nessa fase de crescimento do neoliberalismo e de governos com pensamento e práticas fascistas.
Cuba teve de voltar a dar prioridade à cana-de-açúcar, ao turismo, e, como já dito, fortalecer o cuentapropismo. É pouco para um país que pretende sempre fortalecer sua soberania.
Acendeu-se também o sinal vermelho com o envelhecimento da população, cuja expectativa de vida cresceu muito como consequência das políticas sociais e de saúde. É um dado positivo, mas cobra um preço alto para o Estado.
Não são poucos os problemas.
A existência de uma juventude nascida depois da revolução, que não sabe o que é viver sob o capitalismo, e que pode ser seduzida pelo mundo da propaganda consumista, não constitui um risco?
Sim, constitui – Lezcano responde.
Mas, ele tem convicção de que se equivocam os que subestimam o patriotismo da juventude, seus valores internacionalistas, éticos, vinculados às tradições revolucionárias.
A juventude não está disposta a rebaixar as conquistas feitas pelo socialismo. Poucos países do mundo têm educação e saúde universais, como em Cuba.
Bate na tecla: a Revolução Cubana começou em 1868 e continua até hoje, é processo, nunca parou. Há muita vitalidade na revolução.
A participação entusiasmada de 7 milhões de pessoas nas discussões sobre a nova Constituição, processo que está em andamento, é uma prova disso.
O povo participou, propôs, discordou, e o fez porque acredita na revolução, e quer que ela siga se transformando. Desafia: em que lugar do mundo se elabora uma Constituição dessa maneira? Em que lugar do mundo há uma democracia com essa dimensão participativa?
A maioria da força de trabalho qualificada é feminina. O Parlamento cubano tem 53% de mulheres. Sobre o homossexualismo: a revolução propôs na nova Constituição que o casamento possa se dar “entre duas pessoas”, e não entre um homem e uma mulher. Para ser fiel ao texto:
“Capítulo III: Derechos Sociales, econômicos e culturales.
Artículo 68. El matrimonio es la unión voluntariamente concertada entre dos personas con aptitud legal para ello, a fin de hacer vida em común. Descansa em la igualdad absoluta de derechos e deberes de los cónyuges, los que están obligados ao mantenimiento del hogar y a la formación integral de los hijos mediante el esfuerzo común, de modo que este resulte compatible con el desarrollo de suas atividades sociales.”
As discussões com o povo revelaram resistências, especialmente de credos como os evangélicos e católicos. Em Cuba, não há registro de mortes contra a comunidade LGBT.
E na conversa ele me surpreende, sem que pergunte:
– Cuba precisa continuar a enfrentar de modo resoluto a corrupção. Acontece sobretudo nos estratos médios.
E os controles?
Dos mais rígidos do mundo.
Há uma Controladoria-Geral da República, cada ministério conta com um Departamento de Controle, assim como os governos municipais e provinciais, e todas as empresas do Estado.
A pequena corrupção, os pequenos desvios acontecem, não obstante esse aparato rigoroso de fiscalização. Persistir, diz Lezcano, não descansar no combate à corrupção, manter bem altos os valores éticos defendidos pela revolução, seguir trabalhando na educação, na elevação do nível cultural da população. E levar à frente a revolução.
Dá para crer?
Os cubanos seguem na estrada, chuvoso esteja o tempo, escuras, as nuvens, ameaçador, o vento.
Seguem resistindo, à Lezcano, à Ferrera.
Lutam cada dia, e têm esperança no sol a nascer, mesmo quando um furacão os fustiga, mesmo com o mar em fúria.
Num discurso em 1891 nos EUA, agrupando os que queriam a revolução em Cuba, Martí encerrava sua fala com a ideia poética, forte, um gigante anunciando o mundo novo, que ele não veria, mas do qual foi o apóstolo:
...Rompió de pronto el sol sobre un claro del bosque, y allí, al centelleo de la luz súbita, vi por sobre la yerba amarillenta erguirse, en torno al tronco negro de los pinos caídos, los racimos gozosos de los pinos nuevos: !Eso somos nosotros: pinos nuevos!
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros