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A reforma previdenciária no Chile substituiu o modelo administrado pelo Estado, baseado no princípio da solidariedade geracional entre os trabalhadores, pelo modelo de capitalização, baseado no mérito individual e na ilusão do fim dos privilégios

Chilenos dizem "não mais AFP", as Administradoras de Fundo de Pensão. Comprovadamente um dos sistemas mais injustos do mundo. Foto: Pablo Sanheza/Reuters

A reforma do sistema de aposentadoria no Chile foi implementada em 1980, com a publicação do Decreto Lei nº 3.500, num dos períodos mais duros da ditadura de Augusto Pinochet.

A reforma consistiu no fim das aposentadorias por antiguidade; na definição do valor dos benefícios com base na contribuição realizada durante toda vida, e não só nos últimos anos de quotização; na adoção de mecanismos automáticos de ajuste do sistema às mudanças demográficas de longo prazo e às variações econômicas conjunturais; na substituição do modelo de repartição pelo sistema de capitalização e, finalmente, na transferência da administração pública das Caixas de Pensão para as Administradoras de Fundo de Pensão (AFPs), sob controle de grupos privados. Das múltiplas Caixas de Pensão existentes, as únicas que restaram foram a das Forças Armadas e a dos Carabineros. Ambas deficitárias, cobertas até hoje por recursos fiscais.

O sentido geral dessas mudanças estava em sintonia com a ideia do Estado mínimo que passou a vigorar depois do golpe de 1973. Os responsáveis pela reforma alegavam que o modelo previdenciário do país era caro, injusto e ineficiente em razão da inépcia do Estado em administrá-lo. A reforma consistiu especificamente na criação de um modelo que fosse administrado pelo setor privado. A ideia era que as AFPs passassem a funcionarem em regime de livre mercado, captando recursos e oferecendo serviços segundo a lógica dos bancos privados.

Segundo José Piñera, ministro do Trabalho e da Previdência Social na época da reforma, “o erro básico radicava na concepção coletivista do homem e da sociedade que inspirou o sistema antigo. Dita inspiração provém de uma noção ideológica errada sobre a natureza e conduta do ser humano, que predominou e influenciou muitas decisões públicas adotadas no Chile nas últimas décadas”. As palavras de Piñera sugerem que a ideologia concerne sempre aos outros, isto é, àqueles que pensam diferente de nós. O pensamento dele corresponderia, rigorosamente, à sã doutrina ou à verdade revelada. Por experiência própria, sabemos do que são capazes esses seres imaculados quando chegam ao poder. No Chile não foi diferente. A ideologia neoliberal implantada pelo golpe militar implicou centenas de milhares de mortos. E, por suposto, essas coisas não estão separadas.

Com a reforma previdenciária chilena, o modelo de repartição administrado pelo Estado, baseado no princípio da solidariedade geracional entre os trabalhadores, foi sendo substituído pelo modelo de capitalização, baseado no mérito individual e na ilusão do fim dos privilégios. Apesar do marketing mundial sobre o êxito do modelo, o sistema chileno é comprovadamente um dos mais injustos do mundo. Além de não eliminar privilégios, ele capta recursos dos setores mais pobres da população e os transfere para grupos privados. Trata-se, em última instância, de uma excrecência moral.

Os idealizadores do sistema diziam em sua defesa que as AFPs passariam a funcionar de acordo com as leis do livre mercado, concorrendo para oferecer os melhores e maiores benefícios aos aposentados. Mentira. O capitalismo rentista que se instalou no país a partir do golpe desconhece qualquer compromisso social. Na verdade, as AFPs funcionam sob regime de oligopólio e não existe grande diferença nos valores das aposentadorias oferecidas por elas. Se no início chegaram a existir cerca de vinte AFPs, hoje elas não passam de seis, pertencentes a grupos familiares que controlam mineradoras, bancos, supermercados etc. Em geral eles utilizam os recursos dos trabalhadores para investir em empreendimentos particulares.

O papel supervisor do Estado sobre as AFPs é ultraflexível e está a cargo de uma Superintendência de Pensões. Em tese, a supervisão pública deveria impedir a oligopolização das administradoras, entre outas distorções abusivas do sistema. Como isso não acontece, os beneficiários vão sendo penalizados com uma aposentadoria miserável. Nos países desenvolvidos e na maioria dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), as aposentadorias privadas têm um papel apenas complementar. Nesses países as aposentadorias correspondem a aproximadamente 70% dos salários recebidos na ativa. No Chile, onde a única opção são as AFPs, elas alcançam em média 38%.

À primeira vista, o sistema é “democraticamente injusto”, não discrimina ninguém e concede aposentadorias e pensões miseráveis para todos. As mulheres, no entanto, são mais prejudicadas. Elas ganham em média 30% a menos que os homens, ficam mais tempo desempregadas e, consequentemente, não contribuem na mesma proporção que eles. As mulheres aportam um valor menor para as quotizações obrigatórias, correspondente a cerca de 10% dos salários. Entretanto, elas são mais longevas que os homens, e os fundos que conseguem aportar durante a vida laboral se distribuem por um período mais largo, o que implica aposentadorias ainda mais reduzidas. Em 2011, o movimento sindical chileno denunciou na Organização Internacional do Trabalho (OIT) o sistema privado de aposentadorias chilenas por considerá-lo discriminatório com a mulher.

Para salvar as aparências, os idealizadores da previdência privada chilena preservaram o direito a uma aposentadoria mínima, por velhice ou invalidez, a todos os afiliados às AFPs que não acumularam fundos suficientes. As chamadas pensões mínimas e assistenciais existiam no país desde os anos 1950. Quando os fundos das contas individuais nas AFPs se esgotam, o Estado se encarrega de pagar a aposentadoria às pessoas maiores de 65 anos e aos inválidos carentes de recursos. O valor das aposentadorias assistências garantidas por lei corresponde a um terço da pensão mínima, e o benefício é incompatível com qualquer outra pensão. As chamadas pensões assistenciais são pagas pelo Instituto de Normas Previdenciárias (INP) e são financiadas por meio de recursos fiscais. Os defensores do sistema argumentam que isso permite uma “assistência focalizada”.

São evidentes os vínculos entre o sistema previdenciário chileno e o modelo de sociedade individualista que se impôs ao país depois do golpe. Na origem de tudo está a disputa pelo controle dos recursos do Estado. É o tradicional conflito público/privado. O restante são tecnicidades para engodo dos incautos ou pura hipocrisia dos falsos justiceiros. O Chile está aí para comprová-lo. Os privilégios previdenciários, as altas aposentadorias de juízes, militares, políticos nunca foram abolidos depois de meio século da reforma previdenciária. O que está em jogo quando se fala em reforma da Previdência – e o modelo chileno o evidência ad nauseam – é o controle dos recursos públicos por parte das elites econômicas.

O sistema de capitalização transfere para o setor privado recursos pertencentes à sociedade, sobretudo aos trabalhadores, sob a forma da quotização obrigatória. Osistema de repartição, por sua vez, destina à sociedade recursos fiscais arrecadados pelo Estado pela via dos impostos e pela contribuição das empresas e dos trabalhadores. Governos neoliberais demonizam o modelo de repartição em razão de sua natureza “coletivista”, como dizia Piñera, não por outro motivo relacionado a custo, eficácia, déficit ou justiça previdenciária. Para os Chicago Boys, seguidores de Hayke e Mises, a sociedade não existe, o indivíduo é tudo e o mérito individual é o único critério de êxito social. Pode parecer aberrante, mas é assim. Se nem na Suíça, um dos países mais igualitários do mundo, essas ideias são levadas a sério, o que dizer da seriedade de seus defensores na América Latina, uma das regiões mais desiguais do mundo.

Por tudo isso, a Previdência Social não é um assunto que possa ser discutido separadamente, divorciado do modelo de desenvolvimento econômico e de um projeto nacional. No Chile, esse modelo privatista somente tornou-se possível porque fazia parte de mudanças mais profundas, passíveis de serem implementadas em virtude de o país estar sob o comando de uma das ditaduras mais sanguinárias do Cone Sul. Hoje os seus defensores, a começar por José Piñera, dizem que o sistema se legitimou uma vez que os governos pós-autoritários o mantiveram intacto. Eles tiveram a oportunidade de reformá-lo, e nunca o fizeram, argumenta o ex-ministro do Trabalho de Pinochet.

Balela. O moderadíssimo progressismo chileno não constitui um critério político para atestar a legitimidade do modelo. Ao não fazer as reformas estruturais exigidas pela sociedade, deixando intacto o modelo econômico herdado da ditadura, os partidos de esquerda, especialmente o Partido Socialista, enfrentam a maior crise de sua história. Nesse caso, o critério de verdade não são os eleitores, cada vez mais engambelados pelo marketing político e as fake news difundidas pelos grupos de ultradireita, mas os usuários do sistema, isto é, os trabalhadores e trabalhadoras que contribuíram ao longo da vida para se aposentar dignamente e hoje recebem uma aposentadoria miserável, o que está levando um número cada vez maior de idosos chilenos ao suicídio.

Renato Martins é sociólogo e cientista político, professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e presidente do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco)