Ao mostrar insensibilidade para a miséria, a gestão tucana não reconhece o aumento da desigualdade como problema.Foto: Alan White/Fotos Públicas
Desde o início do governo do PSDB na cidade de São Paulo em 2017, o prefeito João Doria (hoje governador) não escondeu o seu projeto de desconstruir as políticas públicas na área da assistência social. Políticas que são fruto de conquistas históricas consolidadas no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), cujos programas promovem a inclusão social e a emancipação da cidadania de setores excluídos da sociedade.
Logo após tomar posse e em meio as suas ações de marketing, Doria faltou com respeito para com a população mais vulnerabilizada. Mais do que cometer excessos na ânsia de mostrar serviços de zeladoria com o Cidade Linda demostrou desprezo pela população vulnerável, promovendo ações de higienização social e de gentrificação no centro da cidade.
Quem não se lembra das cenas, de triste memória, de agentes da Prefeitura, devidamente escoltados por Guardas Civis Metropolitanos (GCMs), lançando potentes jatos de água contra os indefesos moradores em situação de rua nas cercanias da Praça de Sé, na região central?
Em paralelo, no campo institucional, Doria lançou ataques a programas sociais bem-sucedidos. Automaticamente, deu fim ao programa Braços Abertos implantado pela gestão Fernando Haddad na chamada Cracolândia. Seguiu o mau exemplo de descontruir políticas públicas de seus antecessores, apenas para não validá-las eleitoralmente.
No lugar do Braços Abertos, que recebeu até reconhecimento internacional, entrou o Redenção. O foco passou a ser a abstinência dos dependentes químicos e as internações compulsórias em clínicas terapêuticas. Para isso multiplicaram-se operações policiais pautadas por truculência e agressões a dependentes químicos e moradores de rua. Num viés claramente higienista, ele espalhou o problema pela cidade sem resolvê-lo.
Com o argumento de conferir maior eficiência aos gastos públicos, medida do receituário de política de austeridade fiscal tão na moda, o sucessor Bruno Covas como prefeito acelerou o processo de sucateamento de programas sociais.
E a assistência social virou alvo preferencial do congelamento de verbas da gestão tucana, resultando no fim de serviços que prejudicam principalmente a população mais vulnerável. Os atuais gestores justificam suas ações de desmonte de políticas públicas com palavras mágicas. Na saúde o termo recorrente era “reestruturação” e na assistência social é “reorganização”.
Não consideram e até afrontam o marco legal vigente, regulador e normatizador dessa política pública, construída e permanentemente aperfeiçoada nos espaços de controle social, principalmente as conferências que atualizam as normas e leis reguladoras.
De todas as secretarias da Prefeitura, a da Assistência Social é uma das que mais sofreram cortes, com acentuada redução nas previsões orçamentárias nos últimos três anos. Embora os recursos do Fundo Municipal de Assistência Social tenham se mantido estáveis, os valores destinados à secretaria encolheram em torno de 30% entre 2016 e 2019.
O atendimento se tornou ainda mais precário com a administração municipal sucessivamente se desresponsabilizando dele, a ponto de a cidade ter hoje 95% dos serviços prestados por organizações sociais (OS) .
A estratégia dos congelamentos se torna visível na ponta. Vagas em serviços como os dos Centros de Crianças e Adolescentes (CCAs), Centros de Juventude e Centros de Defesa da Criança e Adolescente (Cedecas) foram fechadas.
Recentemente os cortes foram intensificados como resultado do Decreto nº 58.636/19, de fevereiro deste ano. Com a explicação de redução orçamentária “ao estritamente necessário para atendimento da demanda”, o decreto determinou a renegociação de contratos com as OS prestadoras de serviços. Desde então as entidades vivem momentos de apreensão. O prazo para as negociações da Prefeitura, inicialmente marcado para se encerrar em março, foi prorrogado por três vezes.
Entretanto, com os cortes de vagas e fechamentos de serviços, nas diversas regiões, trabalhadores já foram demitidos, e usuários perderam seus direitos de acesso, após ataques sucessivos e subsequentes.
Obedecendo à repentina determinação, outros serviços foram afetados, como os Núcleos de Convivência de Idosos (NCI) e os Centros de Convivência Intergeracional (CCInter). Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) também sofreram desmantelamento, confirmando a perversidade estratégica.
Outros serviços também estão na mira da linha de cortes, conforme anúncios a conta-gotas da gestão. O Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo (Cedesp) se tornará projeto piloto conjunto da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) e da Secretaria do Trabalho, mas sofrerá suposta avaliação. Os CCAs ainda devem se transferir para a Secretaria de Educação “para dar continuidade aos serviços”, numa tentativa de descaracterizar o serviço, fingindo remanejá-lo para tapar buracos em mal disfarçada educação integral.
Também foi sucateado nos territórios o Serviço de Assistência Social à Família (SASF), descaracterizado e utilizado como “hospedeiro” do programa assistencialista Criança Feliz. A propósito, o Criança Feliz não ampliou o quadro de recursos humanos, não repassou verbas aos atendidos e muito menos à execução de atividade.
Outro serviço, que nasceu sem consulta ao Conselho Municipal de Assistência Social (Comas), foi o chamado Centro Temporário de Acolhimento (CTA). Ele sequer deu conta do atendimento aos moradores em situação de rua não pela quantidade de vagas, mas porque foram construídos aleatoriamente, sem estudo de demanda, em locais distantes de onde se concentra a população em situação de rua. Alguns se tornaram elefantes brancos na periferia, a exemplo de São Mateus e Aricanduva, com vagas, mas ociosos.
E num estudo evocado pela gestão tucana, o plano é modificar o serviço de abordagem da população de rua. Segundo a secretaria, “existem sobreposições de serviços com até oito Serviços Especializados de Abordagem Social (SEAS) na região Sé em várias modalidades”. Mas o objetivo é retirar a população em situação de rua do centro expandido, jogando-a para longe dos olhos de todos e todas.
O cenário é de quase terra arrasada. De acordo com o Fórum da Assistência Social, pelo menos 4.800 vagas nos serviços já foram suprimidas com a demissão de 400 funcionários nas entidades conveniadas.
Em atos nas ruas e em plenárias, representantes das entidades conveniadas, de usuários e de trabalhadores, denunciam que as decisões são tomadas de forma arbitrária e sem diálogo, com sucessivos cortes que diminuem o número de atendimentos oferecidos à população.
As entidades criticam a incoerência do decreto, pois trabalham com déficit de 15% nos últimos três anos. Não existe correção da inflação nos contratos dos convênios, ficando as entidades com ônus de buscar dar conta dessa diferença que não é pouca. Além disso, a tabela de custeio dos serviços de assistência social, por exemplo, apresenta o valor de R$ 1,98 como base para um lanche aos usuários. E sequer o dissídio coletivo dos trabalhadores, direito líquido, é garantido no repasse de verbas da Prefeitura.
Não há justificativa plausível para os cortes. As receitas correntes arrecadadas pela Prefeitura (administração direta) até fevereiro deste ano foram de R$ 11,013 bilhões, o que representa um aumento de 9,8% em relação ao arrecadado no mesmo período de 2018.
Acrescida a administração indireta (autarquia e fundações municipais), a arrecadação foi de R$ 11,795 bilhões, crescimento real de 5,7% frente ao mesmo período de 2018. Como se nota, a Prefeitura não está num período de crise financeira, já que a arrecadação continua a crescer.
Um aspecto relevante a ser considerado nesse processo de desconstrução é o desgaste provocado nos recursos humanos. Existe um adoecimento em massa dos servidores pelo acúmulo de trabalho e que trazem reflexos nos serviços. Os recursos não chegam de forma adequada e precarizam a alimentação, o trabalho pedagógico, as formações continuadas e outras ações.
Como se não bastasse, a gestão tucana ainda é marcada pelo desrespeito aos organismos de controle legalmente constituídos como o Comas, o Fórum de Assistência Social (FAS) e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que não são consultados sobre mudanças. Servem hoje apenas para receber comunicados de cortes.
Também não há diálogo com as entidades prestadoras de serviços. Foi estabelecida uma relação que não condiz com a proposta de parceria na concepção da palavra e até mesmo em desacordo com o Marco Regulatório da Assistência.
Aliás, o marco regulatório não foi adequadamente implantado (não houve treinamentos para os trabalhadores nem para os gestores das organizações). E as portarias e instruções normativas que regulam os serviços fazem com que as 32 Supervisões de Assistência Social (SAS) da cidade trabalhem com distintos entendimentos e atropelos. É necessário redefinir um “marco zero” para evitar erros da secretaria, como já vem ocorrendo com algumas das entidades históricas de nossa cidade.
O que se verifica dessa nova política governamental são ações voltadas para desejo pessoal e de benevolência (filantropia), ignorando completamente a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e demais instrumentos jurídicos que organizam essa política.
Registre-se ainda que a secretaria é palco de intensa disputa interna nesse desgoverno. No começo de julho, ocorreu a sexta troca de secretário em menos de dois anos nessa gestão. A titular agora é Bereneci Maria Gianella, oriunda da Secretaria de Direitos Humanos e ex-presidente da Fundação Casa (Febem).
Diante dessa trágica situação, cabe uma indagação: o que está por trás de tantas mudanças de comando e de extermínio de serviços na Secretaria de Assistência Social?
Assim como na área da cultura, os serviços executados por entidades na assistência social emancipam, libertam e empoderam as pessoas. Eles formam e capacitam numa perspectiva progressista. O modelo do SUAS trabalha nessa direção. Portanto, fica evidente que esse governo deseja acabar com essa área que trabalha nessa perspectiva de proteger e emancipar crianças, adolescentes, jovens, mulheres, idosos, LGBT, moradores em situação de rua.
Em outras palavras, essa estratégia de desmonte faz parte de projeto político do PSDB, que pretende despolitizar a sociedade, deslegitimar as lutas pelos direitos sociais, apagar os avanços nas políticas públicas e ignorar os objetivos maiores da política de assistência social, conforme expressa na Constituição de 1988, que é a promoção da cidadania.
Ao se mostrar insensível à crescente pauperização social e econômica da população, a gestão tucana não reconhece a desigualdade como problema a ser superado, mas defende a tese de que essa condição está naturalizada nas relações humanas. São traços e atitudes de governos essencialmente autoritários, hoje no nível municipal, estadual e federal, que tendem a esgarçar ainda mais o já destroçado tecido social, caminhando a passos largos para a barbárie.
Juliana Cardoso é vereadora (PT/SP), vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e membro das Comissões de Saúde e de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo