O golpe de Estado de 2016 trouxe de volta a censura, ainda que de forma velada. Mas o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff representou a antessala da ascensão à presidência da República do neofascista Bolsonaro e com ele da censura finalmente assumida.
A diferença principal entre um liberal e um fascista é que o primeiro restringe os direitos do povo de forma velada, nas entrelinhas da política, enquanto o segundo o faz abertamente, como política de Estado.
Como ocorre em qualquer lei, na Constituição ainda é mais explícita a influência direta dos conflitos políticos e sociais, a chamada correlação de forças. Por trás de cada direito democrático e popular da Constituição vemos o dedo da mobilização popular.
Desse ponto de vista podemos considerar que a Constituição Cidadã de 1988 nasceu das greves do ABC, de 1978 e da maior mobilização de massas que o país já viu, o movimento das Diretas-Já, de 1984. Embora não tenha conseguido atingir o seu principal objetivo, o movimento das Diretas-Já contribuiu decisivamente para a derrota da ditadura no Colégio Eleitoral de 1985. O governo de transição, encabeçado pelo vice José Sarney, em virtude da morte prematura do presidente eleito de forma indireta, Tancredo Neves, não conseguiu limitar o movimento democrático e popular que tomou conta do país.
Foi um rico período de nossa história, com muita participação popular por meio do movimento sindical, dos camponeses e trabalhadores sem-terra; do movimento dos estudantes; das lutas pelos direitos das mulheres e contra o racismo; dos moradores das favelas e periferias; dos segmentos religiosos progressistas pelo Estado laico e liberdade religiosa; do movimento em defesa da soberania nacional e contra a enorme desigualdade social imposta pela política econômica da ditadura.
Esse oceano de demandas sociais e de pressão popular desaguou na representação da Constituinte, dando condições para que fosse aprovado na nova Carta o texto do Artigo 5º, que garante as liberdades individuais e dos direitos fundamentais, entre os quais a liberdade de expressão, de criação e de comunicação.
O Artigo 5º é tão importante para o exercício pleno da soberania popular que foi protegido por cláusula pétrea pela própria Constituição (Artigo 60, § 4º, inciso IV, CF). O Artigo 220 garante explicitamente no seu § 1º a liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social e no § 2º veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
As liberdades e garantias fundamentais, inclusive a liberdade de comunicação foram entendidas como a chave que abre a democracia para os direitos e participação popular. Isso foi demonstrado na prática pela eleição de Lula, primeiro operário presidente e de Dilma Rousseff, primeira mulher presidenta. Mas a prática também mostrou que a chave do Artigo 5º que abre para a liberdade também pode fechar para a democracia quando seus direitos não são respeitados nem regulamentados.
Apesar de a Constituição exigir a liberdade de comunicação, o oligopólio da grande mídia foi mantido intacto, o que lhe permitiu que trabalhasse diuturnamente contra a soberania nacional, a democracia e os direitos do povo.
Através da ação criminosa desse oligopólio da grande mídia, que o campo democrático e popular não conseguiu impedir por meio da regulamentação da Constituição, é que Dilma foi destituída, Lula preso e a República de 1988, ferida de morte. Mais uma demonstração histórica de que se o povo não defender a Constituição nas ruas seus direitos virarão letra morta e serão jogados na lata de lixo pelas forças reacionárias.
A deturpação, a ocultação ou mesmo a manipulação da verdade, seja por meio da censura oficial, da autocensura da grande mídia ou das fake news, são todas formas diferentes de apropriação do poder político pela direita e ultradireita que visam a legitimação de sua dominação de classe.
A sociedade brasileira já conhece muito bem o uso da censura como instrumento de controle da informação pelas elites do topo da pirâmide social com o fim de exercerem melhor seu domínio político. No século passado a censura oficial foi usada como método de governo, ao lado da repressão, tortura e assassinato, tanto pela ditadura do Estado Novo (1937-1945), quanto nos 21 anos da ditadura militar (1964-1985).
A eleição de Bolsonaro, um assumido defensor da ditadura e da tortura, ressalta a volta da censura como método de governo, seja a censura direta contra a criação artística, intelectual e educacional ou a censura indireta das fake news, que buscam interditar o acesso à verdade, inclusive à verdade científica.
Contudo, diferentemente da ditadura militar, que se apoiava mais na força bruta das armas e menos no controle ideológico da sociedade, o governo autoritário de Bolsonaro faz uso predominante desse último método, enquanto anseia pela instituição de sua ditadura pessoal (e de seu clã).
Mas Bolsonaro sabe que a mobilização contra a censura é muito grande no Brasil e no exterior. Então ele diz que não existe censura, mas “filtros” e justifica isso com a defesa da família, um argumento relacionado à vida privada que ele usa para praticar todo tipo de arbitrariedade.
A instituição da Escola sem Partido é a censura mais violenta que existe, pois visa, ao mesmo tempo, censurar a liberdade de cátedra dos professores e impedir o desenvolvimento da visão crítica dos estudantes.
Na área cultural, exemplos da censura não faltam. A começar pela extinção do Ministério da Cultura, como que sinalizando o quanto Bolsonaro despreza a cultura e a inteligência, passamos a ver os seguidos cortes orçamentários de produções culturais e artísticas, atingindo principalmente a produção audiovisual. A perseguição à Agência Nacional de Cinema (Ancine) encabeça a lista. A vontade de Bolsonaro era liquidar o órgão, mas como a reação foi grande optou por deixá-la congelada, com o corte de 43% do orçamento do fundo que financia a produção audiovisual.
As questões de gênero e os temas LGBTs estão no centro da obsessão autoritária de Bolsonaro. O edital de fomento da série LGBTs para a TV pública foi cancelado. A embaixada do Brasil no Uruguai pediu que o filme Chico: um artista brasileiro fosse retirado da programação do Festival de Cinema Brasileiro em Montevidéu.
O exemplo autoritário de Bolsonaro é seguido por governadores, prefeitos, gestores públicos e setores do Judiciário que lhe têm afinidade ideológica. No Rio de Janeiro, por exemplo, a prefeitura municipal mandou fiscais confiscarem, na Bienal, o desenho de um beijo gay nas páginas do HQ Vingadores. Centenas de jovens repudiavam os fiscais gritando: “Não vai ter censura!”. A ação autoritária do prefeito foi tornada nula pelo STF.
O Ministério da Saúde censura o termo “violência obstétrica”, em vez de enfrentar o problema que atinge as mulheres pobres na hora do parto, sobretudo se forem mulheres negras.
O objetivo de Bolsonaro com a instituição generalizada da censura, em especial com a Escola sem Partido, é a pasteurização mental da sociedade, para impedi-la de pensar e assim torná-la facilmente submissa à vontade do “mito”.
Mas a sociedade brasileira que pesquisa, estuda, cria e produz vem protagonizando uma luta cada vez mais acirrada em defesa do direito de estudar, de se expressar livremente e contra a censura e o obscurantismo do governo de Bolsonaro.
A história da humanidade já demonstrou suficientemente que inteligência não se liquida e nem se domina. É uma força viva e incontrolável, pois é aquilo que nos faz seres humanos.
A história mostra ainda que a vida é mais forte do que as fake news. Aí estão as rebeliões dos povos do Equador e do Chile contra a opressão neoliberal para provar isso. Do mesmo modo que o povo argentino, depois de quatro anos de retrocesso neoliberal, volta a protagonizar a mudança democrática de seu país.
O Brasil, como qualquer outro país, tem as suas peculiaridades, mas na luta por liberdade o povo brasileiro é igual ao de outros países. Por isso chegará o momento em que agiremos também como os chilenos, equatorianos e argentinos e conquistaremos o nosso poder libertador.
Benedita da Silva é deputada federal pelo PT-RJ