Internacional

Uma oportunidade histórica para o país ajustar as contas com a seu passado neoliberal e começar a superar as gritantes desigualdades do seu modelo econômico e social

Não fossem as manifestações nas ruas, a “normalidade” chilena poderia se estender por mais trinta anos. Foto: Carlos Vera/Colectivo2+/Fotos Públicas

O acordo pela "Paz e a Nova Constituição" anunciado na madrugada deste 15 de novembro é parte da estratégia do governo Piñera de retomar a iniciativa política e apresentar uma saída institucional para a crise. É cedo para dizer se o plano dará certo e convém esperar para ver como as ruas reagirão para avaliar os possíveis desdobramentos.

A expectativa do governo e dos partidos políticos é que o país volte à “normalidade”. Em se tratando do Chile, isso não é muito alentador, posto que foi justamente a “normalidade” dos últimos trinta anos a causa dos atuais protestos sociais.

É difícil imaginar que o acordo venha a superar de forma cabal as tensões entre as instituições e as ruas, que aliás continuam tomadas pela cólera dos manifestantes e ninguém sabe dizer como nem quando isso poderá terminar.

Na França, os protestos dos chamados coletes amarelos já duram um ano! O sociólogo catalão Manuel Castells, estudioso do assunto, tem dito que esse tipo de explosão social veio para ficar e que suas causas são muito mais profundas do que podemos imaginar.

Seja como for, conforme se evidenciou nas últimas semanas, o descrédito dos chilenos em relação ao governo, ao parlamento e aos partidos políticos é generalizado. Seria um equívoco, porém, desconhecer o avanço alcançado pelo acordo e simplesmente não assiná-lo.

Depois de perder o plebiscito que o perpetuaria no poder, em 1988, Pinochet declarou solenemente que “na Constituição não se mexe”. Essa maldição se cumpriu até o dia de hoje e, durante as últimas três décadas, a Constituição foi o pilar de sustentação jurídica do modelo econômico chileno. Ela é a mãe de todas as injustiças e desigualdades existentes no país, da privatização das águas, dos bosques e dos recursos naturais à mercantilização do sistema de saúde, do ensino superior e da Previdência. Ao encurralar o governo tomando as ruas, as manifestantes impuseram uma enorme derrota política e ideológica ao modelo. E não só no Chile, berço do neoliberalismo, mas também nos demais países da América Latina por onde o modelo se estendeu – ora pilotado pela centro-direita, ora pela centro-esquerda.

Obviamente, o acordo tem pontos problemáticos, mas isso não diminui a transcendente vitória popular que permitiu conquistá-lo. O mais preocupante deles, introduzido para que tudo continue como está, é a necessidade de quórum qualificado de dois terços dos delegados para a aprovação das decisões no processo constituinte, o que dará aos partidos minoritários enorme poder de veto sobre a nova Constituição.

Mas o acordo também tem pontos positivos, como o princípio da “folha em branco”, o que garante que nenhum tema seja excluído de saída das discussões. A ideia da folha em branco recupera o fundamento da incerteza democrática por onde poderá começar a ser rompida a jaula de aço do neoliberalismo chileno. Para isso, a pressão popular é imprescindível.

Todos esses pontos serão plebiscitados em abril de 2020, e competirá à cidadania se manifestar se concorda ou discorda do acordo. De qualquer forma, é claro que não estava nos planos de Piñera e dos partidos de direita e extrema-direita assiná-lo. Não fossem as manifestações nas ruas, a “normalidade” chilena poderia se estender por mais trinta anos. Por isso, o acordo está sendo considerado uma oportunidade histórica para o Chile ajustar as contas com a seu passado neoliberal e começar a superar as gritantes desigualdades do seu modelo econômico e social.

Renato Martins é professor de Sociologia e Ciência Política da Unila