Internacional

Em julho foi lançada em Assunção uma campanha dos movimentos sociais pela anulação do Tratado de Itaipu. O tema é altamente sensível e constitui um fator de tensão das relações bilaterais com o Brasil

O presidente do Paraguai Mario Abdo Benitez e Jair Bolsonaro têm tratado da revisão do Anexo C secretamente. Foto: Alan Santos/PR

Ao completar 50 anos, em 2023, a parte financeira do Tratado de Itaipu, contida no chamado Anexo C, será revista. O cerne do acordo que deu origem a Usina Hidrelétrica de Itaipu encontra-se nesse documento, que entre outros pontos define: as condições de suprimento da energia gerada para os dois países;  a sistemática de pagamento dos custos dos serviços de eletricidade prestados pela empresa; e a forma de distribuição da sua receita as contrapartes controladoras. Já estão em curso os preparativos para a sua revisão.

Assinado pelos generais Alfredo Stroessner e Emílio Garrastazu Médici num dos períodos mais duros do regime militar nos dois países, o Tratado de Itaipu enfrentou resistência dos partidos de esquerda, dos movimentos sociais e dos grupos de direitos humanos de ambos os lados da fronteira. No Paraguai, a oposição sempre foi mais forte. O sentimento de que a Itaipu Binacional representa uma ameaça à soberania energética daquele país está presente na população. Em julho de 2019 foi lançada em Assunção uma campanha dos movimentos sociais pela anulação do Tratado de Itaipu, denominada Itaipu ñane mba'e (Itaipu patrimônio nosso). A iniciativa é reveladora do estado de ânimo de parcela da sociedade em relação ao tratado. O tema é altamente sensível e constitui um fator de tensão das relações bilaterais com o Brasil.

No atual contexto, a revisão do Anexo C representa um enorme desafio. A partir de 2023 novas regras definirão o suprimento da energia gerada pela empresa. As regras atuais são contestadas pelo lado paraguaio, que reivindica o direito de uso e o preço justo da energia cedida ao Brasil. A revisão do Anexo C coincide com o final do pagamento das obrigações financeiras decorrentes da construção da usina. Atualmente, essas obrigações equivalem a aproximadamente 60% da receita de Itaipu. Quando a dívida for integralmente quitada, cerca de US$ 1,5 bilhão será disputado não só pelos dois lados, como por grupos privados, nacionais e estrangeiros, que estão de olho nessa montanha de dinheiro.

Há muitos anos o Paraguai questiona a interpretação do Tratado de Itaipu feita pelo Brasil. O Artigo XII do Tratado determina que a energia gerada pela Itaipu Binacional “será dividida em partes iguais entre os dois países, sendo reconhecido a cada um deles o direito de aquisição (...) da energia que não seja utilizada pelo outro país para seu próprio consumo”. Conforme alegam as autoridades paraguaias do setor elétrico, haveria uma maneira distinta de interpretação do acordo.

Apoiados no que diz a Ata de Foz do Iguaçu (primeiro documento a tratar da exploração dos recursos hídricos comuns, assinado em 1966), os paraguaios entendem que o Brasil teria “preferência” de adquirir a “preço justo” a energia excedente do Paraguai. Ao contrário do que se convencionou pelo lado brasileiro, a venda da energia excedente de um país a outro não seria “compulsória”. O que eles reivindicam é o direito à disponibilidade do uso da energia, a chamada “soberania energética”. O tema foi amplamente discutido nos governos de Fernando Lugo e Lula da Silva, como se verá adiante.

Sempre que acontece algum desentendimento com o Paraguai, ressentimentos históricos, que vão muito além da gestão dos recursos hídricos, ressurgem de forma exasperada. A presença de brasileiros no lado paraguaio, expressão de um conflito maior entre o campesinato e o agronegócio, é um exemplo disso. A invasão, o desmatamento e a ocupação ilegal de terras do leste do país, iniciada no governo Stroessner em combinação com os militares brasileiros, é motivo permanente de tensão entre os dois países. Há poucos dias um senador do departamento do Alto Paraná incitou a população a matar “uns cem mil” brasiguaios por conta da exploração ilegal de madeira na fronteira com o Brasil. Mas tarde se verificou que as madeireiras envolvidas eram paraguaias.

Ao isolar-se do restante da América Latina, homenagear velhos ditadores e ameaçar sair do Mercosul, o governo Bolsonaro queimou as pontes diplomáticas para lidar com questões delicadas dessa ordem na região. As afinidades ideológicas entre os atuais governantes só agravam o problema. O presidente do Paraguai, ex-tenente Mario Abdo Benitez, é paraquedista militar; ele é amigo de longa data dos filhos de Bolsonaro, e seu pai foi funcionário particular de Alfredo Stroessner, um dos mais sanguinários, corruptos e pedófilos ditadores da América do Sul. Na cerimônia de posse do diretor-geral brasileiro da Itaipu, em fevereiro de 2019, Bolsonaro homenageou a memória do velho ditador paraguaio, causando mais um vexame internacional.

Os dois governos têm tratado da revisão do Anexo C de modo secreto, encerrado nos gabinetes. Falta transparência, acima de tudo. Em agosto passado, vazaram informações de um acordo secreto que por pouco não levou ao impeachment o presidente paraguaio. O esquema evolvia uma empresa privada brasileira de comercialização de energia “no mercado livre”, o que não está previsto no Tratado de Itaipu, que garante esse direito apenas à Centrais Elétricas Brasileiras S. A. (Eletrobras) e à Administração Nacional de Eletricidade (Ande). Se concluído, o negócio implicaria o aumento das tarifas elétricas pagas pelo consumidor paraguaio.

Além de envolver-se no acordo, o presidente paraguaio vinha pressionando o diretor-geral da Ande, a contraparte da Eletrobras que detém o controle da Itaipu, a aceitá-lo conforme exigido pelo Brasil. Aos gritos de Fuera Abdo! a população indignada foi para as ruas. A Ponte da Amizade, símbolo histórico da ligação entre os dois países, foi fechada pelos manifestantes. Para conter a indignação popular, o acordo foi rasgado, ministros foram demitidos e, graças ao apoio de Horácio Cartes, Marito se manteve no cargo, embora se encontre bastante fragilizado. O episódio constitui mais um complicador para a revisão do Anexo C, e chegou a ser interpretado como uma manobra brasileira para enfraquecer o país no momento das negociações.

A história recente mostra que existem outras formas de lidar com as diferenças entre eles. Vale lembrar que, em 2008, o tema da soberania energética fez parte da campanha de Fernando Lugo. Ao ser eleito, Lugo colocou o problema de Itaipu na agenda das relações bilaterais com o governo Lula. Comissões técnico-políticas, integradas por representantes da Presidência da Republica, do setor elétrico e dos ministérios das Relações Exteriores, foram formadas para discutir as demandas paraguaias.

Segundo Gustavo Codas, diretor-geral paraguaio da Itaipu Binacional (2010 a 2011), os pontos apresentados pelo governo Lugo foram: “1. ‘Livre disponibilidade’ da energia paraguaia pelo Brasil; 2. ‘Preço justo’ da energia paraguaia adquirida pelo Brasil; 3. Revisão da dívida de Itaipu e supressão de sua parte ‘espúria’; 4. Transparência e controle público das contas de Itaipu; 5. Cogestão paritária nas direções de Itaipu; 6. Realização das obras pendentes”. Os avanços nos pontos considerados menos controversos (4, 5, e 6) contrastaram com as dificuldades de incorporar as demandas que implicavam mudar a interpretação do tratado (pontos 1, 2, e 3).  Não se sabe se elas serão reapresentadas no processo de revisão de tratado, mas certamente continuam presentes na pauta dos movimentos sociais e populares. Convém recordar que a construção da barragem e a formação do reservatório deixaram um passivo socioambiental que nunca foi inteiramente reparado pela empresa ou esquecido pelas sociedades.

Em que pesem esses problemas, Itaipu ainda é a maior usina hidrelétrica em produção de energia elétrica, perdendo apenas para a chinesa Três Gargantas em termos do potencial instalado. Ela ocupa um lugar central não só nas relações bilaterais entre o Brasil e o Paraguai, como também no coração do Mercosul. É uma peça chave da integração energética e do desenvolvimento regional. Em 2018, sua receita foi de US$ 3,743 bilhões. Desse total, cerca de US$ 250 milhões foram destinados a título de pagamento de royalties, rendimento de capital e encargos administrativos a cada um dos países. O Paraguai recebeu, além disso, US$ 327 milhões como remuneração da energia cedida ao Brasil.

A disputa pelo controle desses recursos tende a se acirrar à medida que se aproxima o prazo de revisão do tratado. Em tese, o fim da dívida deveria servir para reduzir o custo da energia paga pelos consumidores dos dois países, beneficiando toda a sociedade. Convém lembrar que a Hidrelétrica de Itaipu não foi projetada para dar lucro, mas para suprir a demanda energética brasileira e paraguaia. Nada garante, porém, que continue assim. A partir de 2023 a energia de Itaipu obedecera às regras do livre mercado.

Empresas privadas, nacionais e estrangeiras, estão de olho no lucrativo mercado de energia elétrica. Do lado brasileiro, as privatizações do setor elétrico ocorridas no governo FHC produziram a maior crise energética da história do país. Por experiência própria, sabemos o quanto essas políticas podem vir a ser prejudiciais. Além de representar a desnacionalização de setores estratégicos, elas induzem o aumento das tarifas, o sucateamento das instalações e a deficiência dos serviços prestados à sociedade. Mas, apesar do comprovado fracasso das políticas privatistas para o setor elétrico, o governo Bolsonaro tem a pretensão de levar adiante a absurda privatização da Eletrobras. Sem uma clara identificação dos interesses em jogo, a sociedade fatalmente sairá perdendo.

Desde a assinatura do Tratado de Itaipu, em marco de 1973, a Ande e a Eletrobras detêm o controle da usina. Somente essas duas empresas estão habilitadas a adquirir a energia gerada pela Itaipu. Do lado paraguaio, nunca houve iniciativa similar para privatizar a Ande. Sob o governo Fernando Lugo, a binacional foi fortalecida graças aos acordos com o governo Lula, que ajustaram o valor da energia vendida ao Brasil, antiga reivindicação do país vizinho. A almejada privatização da Eletrobras introduziria um complicador a mais nas relações entre os dois países no momento de revisão do Anexo C.

As negociações também são dificultadas pelas ameaças do governo Bolsonaro de abandonar o Mercosul. Um dos objetivos estratégicos do bloco é a integração energética da região. Recursos do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) foram destinados à infraestrutura de transmissão da energia de Itaipu até Assunção. Do orçamento total da obra (US$ 555 milhões), US$ 400 milhões têm origem em financiamentos do Focem, em caráter de contribuição não reembolsável. A ideia de flexibilizar, ou no limite abandonar o Mercosul, é igualmente prejudicial a revisão do tratado.

Finalmente, há que se considerar as mudanças ocorridas no lado brasileiro. Assim como acontece em outras áreas de governo, militares foram indicados por Bolsonaro para ocupar postos-chave no comando da usina. Oficiais do Exército e da Marinha controlam atualmente a diretoria-geral e a diretoria financeira da Itaipu Binacional, bem como a superintendência do Parque Tecnológico Itaipu (PTI). Isso não corresponde, necessariamente, a um processo de militarização da empresa. Na falta de quadros políticos e técnicos competentes, o governo tem recorrido às Forças Armadas para contornar seu despreparo administrativo.

No caso da Itaipu, porém, dada a associação do projeto original da usina com a ditadura militar, isto pode se tornar bastante problemático. Historicamente, Itaipu se prevaleceu da ideologia do Brasil Potência, ideia propagada em uma das fases mais repressivas do regime. No imaginário coletivo, local e nacional, o início da produção de energia pelos dois países simbolizou a chegada do progresso tecnológico à floresta. O caráter fetichista do projeto original é similar ao de tantos outros empreendimentos capitalistas da época. Poucos se deram (ou se dão) conta dos sacrifícios por trás desse progresso acelerado, realizado sem contrapartidas sociais e ambientais. A volta dos militares ao comando da usina não só desperta fantasmas adormecidos como poderá, a depender dos rumos da atual gestão, criar novos.

O programa de gestão da atual diretoria brasileira está baseado no tripé da responsabilidade fiscal, realização de grandes obras e fortalecimento da segurança nacional. Essas diretrizes orientam os projetos que estão sendo estudados em parceria com o governo federal e estadual. Entre os mais relevantes estão a construção da segunda ponte de interligação entre o Brasil e o Paraguai, antiga reivindicação dos setores econômicos da região. Também com recursos da usina, estão sendo projetadas as obras de construção de um centro de segurança, em uma área cedida pelo Parque Tecnológico de Itaipu, nas proximidades da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).

Baseado em modelo estadunidense, o escritório vai chamar-se Fusion Center. Ele foi concebido pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública com o objetivo de coordenar o trabalho de inteligência e as ações operacionais de combate ao crime organizado, não apenas na região da fronteira, mas também como um modelo piloto para o restante do território nacional. Consonante com algumas das atuais políticas de segurança pública, federal e estadual, o projeto se reveste de um viés altamente preocupante. Tanto a construção da Ponte quanto a criação do Centro já se tornaram símbolos locais do poder da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional. O que se ouve nas ruas de Foz do Iguaçu e Ciudad del Este é a mesma frase: Agora vai! Só não se perguntam precisamente para onde.

Nesse momento seria muito interessante que, além da discussão dos temas relativos ao combate às assimetrias financeira e operacional demandada pelos paraguaios, também fossem consideradas as exigências de um modelo de empresa mais amigável aos povos. A superação das discórdias entre os dois países teria que ser uma prioridade para ambos. Mas também é do interesse dos demais países do Mercosul que a revisão de tratado proporcione uma solução definitiva para o conjunto da região. Espaços institucionais como o Parlasul, embora cada vez mais debilitados, poderiam igualmente contribuir para esse debate.

Na busca de soluções duradouras, o aggiornamento do tratado deveria considerar, fundamentalmente, a criação de mecanismos institucionais de participação da sociedade, inclusive dos movimentos populares e sociais, nos órgãos de decisão sobre os destinos da empresa. No atual contexto isso pode soar ingênuo, mas muita água há de passar por baixo da ponte até que as negociações estejam concluídas, em 2023. Além de descortinar novos horizontes, tal exigência teria o mérito de unir, em vez de separar, as lutas da sociedade por democracia, justiça e desenvolvimento dos dois lados da fronteira.

Renato Martins é professor de Ciência Política e Sociologia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila); vice-coordenador do programa de pós-graduação em “Integração Paraguai-Brasil: Relações Bilaterais, Desenvolvimento e Fronteiras”; ex-presidente do Fórum Universitário Mercosul

Referências

ANEXO C (1973): https://www.itaipu.gov.br/institucional/documentos-oficiais

ATA de Iguaçu (1966):https://www.itaipu.gov.br/sites/default/files/af_df/ataiguacu.pdf

CODAS, Gustavo (2019):https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2019/05/Paraguai-web.pdf

TRATADO de Itaipu (1973):https://www.itaipu.gov.br/sites/default/files/u13/tratadoitaipu.pdf