Como a Alemanha dos anos 1930, ao que tudo indica, caiu nas boas graças do Brasil nesses primeiros dias de 2020, abro esse segundo capítulo da reflexão “Sobre a revolução cultural necessária” com uma frase atribuída ao marechal do Reich Hermann Göring: “Sempre que ouço falar em cultura, pego meu revólver” – no caso, uma pistola Luger... Possivelmente proferida entre amigos, numa rodada de cerveja, na Baviera daqueles anos, ambiente propício a esse tipo de exercício filosófico...
Uma década mais tarde, certo magnata americano, cujo nome não me vem à memória, enriquecido no pós-guerra, posto diante da mesma pauta, reagiu: “Sempre que ouço falar de cultura, saco logo meu talão de cheques...”.
Nos dias de pesadelo que correm, mas aparentemente não passam, é necessário desafiar a imaginação a buscar alternativas à truculência nazifascista, expressa sem subterfúgios no dia 17 de janeiro último, para mencionar um exemplo, por aquela caricatura grotesca que fora guindada ao status de secretário Especial de Cultura, em tudo e por tudo semelhante no pensamento e na ação a quem o nomeou. Mas que, ainda assim, sob pressão irresistível de diferentes instituições, contadas entre elas a representação diplomática dos aliados israelenses, escorreu pela sarjeta do Diário Oficial algumas horas depois.
De igual modo, é preciso estar atento ao empenho com que se concentram nos bastidores, as elites empresariais brasileiras – as financeiras sobretudo – para impingir à sociedade um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, despido dos aspectos mais repugnantes que a escória miliciana fez desembarcar no Palácio do Planalto, preservado o fundamento macro desse projeto de liquidação nacional conduzido pela extrema direita, por meio das políticas econômicas de Paulo Guedes.
Tal “bolsonarismo higiênico”, isto é, sem a presença constrangedora do capitão, nos será apresentado, mais tempo, menos tempo, sob a generosa roupagem da mercantilização liberal dos bens e serviços culturais, coerente com aquele emblemático, “Sempre que ouço falar de cultura, saco logo o meu talão de cheques...”. Mais contemporâneo do que a barbárie nazifascista que mergulhou o mundo no pesadelo da Segunda Guerra Mundial, o liberalismo lança mão de um poderoso mecanismo que a história lhe pôs nas mãos: converte o objeto cultural em mercadoria. Submete seus criadores, os artistas, os intelectuais aos desígnios da lei da oferta e da procura, à regra do consumo. Seduz, anestesia. Aparta o criador da fonte primária de sua criação: a vida concreta do povo. E lhe oferece a gaiola de ouro.
O fundamento primeiro de todo ato de criação – portanto, de todo ato cultural – é a liberdade. Por isso, o nazifascismo lhe apontava a pistola Luger. Porque penetra como o oxigênio na corrente sanguínea do pensamento crítico e das manifestações mais profundas da alma do povo, a criação artística, inevitavelmente, traz consigo e propaga o germe do inconformismo, do desafio à ordem autoritária. É incompatível com ela. Portanto, mesmo aparentemente disperso e submetido, é tratado como inimigo.
O Ministério da Cultura (MinC) faria 35 anos em 15 de março próximo, se tivesse sobrevivido. Seu atestado de óbito foi assinado em 1o de janeiro de 2019, a MP 870, algumas horas depois do ato de posse do governo neofascista. Nada mais emblemático. Não podia ser diferente: a primeira reação ao descalabro que se anunciava veio exatamente dos servidores públicos da cultura com a campanha “Fica MinC”.
A partir dali o Ministério da Cultura tornou-se uma estrutura sonâmbula e inócua. Independente de quem esteja à frente. No organograma incompreensível do governo neofascista, foi remetido para um “não-lugar”, para o limbo, dentro da pasta da Cidadania. Neste momento, se encontra vagando sob o teto do Ministério do Turismo, aquele no qual a mídia identificou mais empenho em se dedicar ao cultivo de cítricos do que para organizar a economia do lazer e dar divulgação adequada aos destinos turísticos deste país tropical...
A ofensiva vai além do aparelhamento das instituições. Busca instalar no cotidiano de cada uma delas um vírus para corromper seus métodos, sua dinâmica institucional, seu sistema de tomada de decisões. O resultado é quase imediato, pese a resistência dos servidores das unidades que compõem o que um dia foi o MinC, está aí a desmoralização da Fundação Palmares, da Biblioteca Nacional, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da Funarte e, mais recentemente, da Casa de Rui Barbosa. Todas elas instituições de referência da cultura brasileira.
O cerco à Agência Nacional de Cinema (Ancine) e a inviabilização sistemática das políticas do audiovisual, que vinham sustentando a presença crescente da produção brasileira no cenário internacional em quantidade e qualidade, com a conquista de prêmios e reconhecimento nos mais importantes festivais do mundo, é outro front aberto de combate à produção cultural do país.
Não é necessário dizer o dano que essa calamidade significa para a afirmação da imagem do Brasil e de sua cultura contemporânea, para a ocupação do espaço que lhe cabe na oferta de conteúdos audiovisuais. Para se ter uma ideia – fazendo uma comparação ocasional –, esse setor é o segundo mais importante na economia dos EUA, só superado pela indústria bélica...
Não se avança em qualquer discussão sobre cultura sem tratar do tema da estrutura educacional do país. Está em curso um ataque cerrado às universidades públicas. Alguém se lembra do nome do primeiro ministro da Educação do governo Bolsonaro? O colombiano naturalizado brasileiro, Ricardo Velez Rodrigues, se despediu do governo, em 8 de abril, como entrou: nulo. Sem oferecer qualquer contribuição à educação do país, envolvido, durante pouco mais de noventa dias que ocupou acidentalmente a cadeira, no conflito entre setores militares do governo e seguidores do charlatão da Virgínia.
Foi substituído pelo “imprecionante” (sic) Abraham Franz Kafta Weintraub, mais familiarizado com as iguarias da mesa árabe do que com o nome do autor de A Metamorfose, para executar um plano de demolição do sistema educacional público como um todo, em particular das universidades. Elas vivem há um ano uma espécie de Estado de sítio sem data para encerrar, com cortes orçamentários, agressões rasteiras à autonomia universitária, além – na falta de algo mais substantivo – das acusações de cultivo de maconha... Aliam-se para compor o perfil desse rufião, a incompetência e a forma canhestra como conduz os assuntos de um dos mais importantes ministérios de qualquer governo, em qualquer país, como acabamos de testemunhar no noticiário a respeito dos erros cometidos na correção da prova do Enem 2019. Quanto ao titular, a última intervenção que vociferou sobre o tema educação foi para, mais uma vez, insultar a maior referência na matéria em quinhentos anos de história do Brasil: Paulo Freire.
Parte indispensável da guerra declarada contra a cultura brasileira, a censura está de volta como nos tempos inspiradores do AI-5. O ambiente cultural se vê, novamente, acossado seja por medidas tomadas pelo baixo clero de um Judiciário obscurantista, seja por atos terroristas pura e simplesmente, como ocorreu no atentado à produtora do Porta dos Fundos.
Os livros didáticos são um lixo, segundo o ex-capitão que talvez não tenha conseguido concluir sequer a leitura do Almanaque do Exército, porque tem muita coisa escrita... “tem que suavizar isso aí”. Seja lá o que isso pode significar. Aqui se trava a disputa entre uma sociedade letrada e a aspiração a uma sociedade ágrafa. Apalpa um território duplamente sensível o conteúdo em si do que está em jogo para o futuro de um país, cujos governantes aparentemente desejam se afastar cada vez mais do que seja a sociedade do conhecimento e o controle sobre o negócio do livro: o governo brasileiro é o maior comprador de livros didáticos, impressos por empresas privadas, do mundo.
Se entendermos a educação como o braço organizado e organizador da cultura de um país, cabe refletir sobre o papel que deve jogar o Estado democrático como fator de garantia das condições básicas para assegurar igualdade na largada. Para que os cidadãos e cidadãs possam se posicionar em condições de equilíbrio para fazer frente aos desafios da vida como portadores de direitos e não tributários de favores. Permitir por meio de políticas públicas que possam ir além do mero ato de consumir bens e serviços culturais. Habilitá-los e qualificá-los como criadores de cultura: a educação pública gratuita e de qualidade para todos. Laica, universal, capaz de destruir os fundamentos dessa hipocrisia empunhada desde sempre pelas elites de uma das sociedades mais desiguais do mundo: a meritocracia.
No terceiro texto buscarei avançar algumas hipóteses de identificação dos desafios de uma esquerda que não deseja se esquivar da “revolução cultural necessária”.
Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é poeta, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo