Cultura

Cheio de contradições e profundamente ambíguo, como costuma ocorrer com as grandes obras literárias, “Os Sertões” não pode ser interpretado sem levá-las em conta, como frequentemente ainda se faz

Euclides se confronta com a realidade que seu arsenal teórico importado dos colonizadores não consegue explicar. Flávio Barros/Museu da República

Um recentíssimo e lamentável episódio atinge Euclides da Cunha e todos/as aqueles/as que entenderam, pelos estudos de Walnice Nogueira Galvão, a complexidade e atualidade da obra-prima do escritor, Os Sertões. Cheio de contradições e profundamente ambíguo, como sói ocorrer com as grandes obras literárias, o livro de Euclides não pode ser interpretado sem levá-las em conta, como frequentemente ainda se faz. Insiste-se no seu conservadorismo, sem perceber aí a presença insistente do dilaceramento vivenciado pelo escritor-narrador, sob o impacto da grande tragédia e da heroica resistência de pobres sertanejos, considerados monarquistas pelo governo brasileiro, e massacrados, não sem antes humilhar o glorioso exército nacional, impondo-lhe vergonhosas derrotas.

Um recente curso online sobre Canudos pode ser um exemplo dessa leitura, no mínimo, equivocada. O curso se intitula “Canudos, o Belo Monte de Antonio Conselheiro” e foi ministrado pelo professor e teólogo Pedro Lima Vasconcelos, por meio do Canal Paz e Bem, em conjunto com a TV 247, no Youtube. Para não dizer que Walnice é totalmente ignorada nesse curso, note-se que seu livro clássico, No Calor da Hora1, é mencionado, rapidamente ao se fazer um histórico da pesquisa sobre o tema, a partir de 1950. Mas, surpreendentemente, o nome da autora não é citado. Fica aqui uma sugestão à TV 247 e ao Canal Paz e Bem, para que corrijam essa falha e aproveitem para fazer um contraponto à valoração negativa de Os Sertões, divulgando honestamente essa autoria e a valorização positiva da leitura que Walnice faz desse livro. O que, na minha opinião, seria mais correto e mais efetivo, se lhe fosse dada a oportunidade de expor diretamente, nos mesmos canais, o seu ponto de vista, reabilitando, assim, um grande livro que se tentou desprestigiar nesse curso.

Em diferentes passagens das suas oito aulas, o curso refere-se a Os Sertões como sendo uma narrativa feita do ponto de vista do vencedor e – sem analisar a obra como um todo, nem levar em conta as análises de quem, como Walnice, soube mostrar a sua complexidade – emite um juízo totalmente negativo sobre esse monumento da literatura brasileira. Reiteram-se aí as restrições ideológicas a Euclides, com base em passagens soltas de Os Sertões, sem conectá-las com outras que as contradizem ou relativizam ou em textos que ele publicou em jornal, antes de chegar ao sertão, antes de conhecer Belo Monte, o Conselheiro, a resistência dos sertanejos e a barbárie da repressão que sofreram nessa guerra desproporcional.

Assim, o que passa inteiramente desapercebida é a ambiguidade, componente fundamental em qualquer obra literária que mereça essa denominação. Podemos até admitir que, a uma leitura superficial e fragmentada, pode ser difícil perceber o dilaceramento que a obra põe em cena, evidenciando a luta que se trava dentro do repórter-escritor, à medida que ele adentra o sertão e o arraial de Canudos, percebendo a grandeza dos sertanejos e do seu guia, sem conseguir enquadrar a realidade nas teorias racistas e deterministas, que havia aprendido na sua formação europeia, adquirida na conceituada Escola Militar do Rio de Janeiro. Mas quem não percebe isso não devia censurar os estudos de quem sabe muito bem, como Walnice, trabalhar com a ambiguidade da grande obra literária, lendo o livro de Euclides como Anatomia, nos termos de Northrop Frye2, exatamente pela discussão que ele levanta, ao confrontar essas teorias com a realidade observada de perto e de dentro. Revela-se, assim, o lado catártico desse livro, como um misto de potente denúncia e comovente canto fúnebre.

Para não cair nas armadilhas dessa leitura simplista e meramente ideológica, mesmo se os responsáveis por ela quisessem evitar uma bibliografia mais especializada e volumosa, bastava prestar atenção às esclarecedoras entrevistas com a estudiosa, disponíveis na internet, em que ela resume o principal de sua análise, destacando o que ocorre quando Euclides se confronta com a realidade que seu arsenal teórico importado dos colonizadores não consegue explicar:

“Ele se arma dessa ciência europeia e não percebe que aquilo é uma taxonomia dos recursos do mundo inteiro para que os países imperialistas possam pilhar. E isso inclui as teorias sobre as raças inferiores, que só existem para justificar que o branco europeu pudesse conquistar as riquezas das colônias e escravizar seus habitantes. Isso atrapalha Euclides. Só que quando ele descreve aquilo que viveu na guerra de Canudos, essas teorias não servem. Não tem nenhuma teoria dessas todas da ciência europeia que explique para ele onde é que reside a bravura, a coragem e a dignidade que levam aquelas pessoas até a morte para não se entregarem. Isso virou o mundo dele de cabeça para baixo, e completamente.”3

Finalmente, essa formulação concisa, que expõe didaticamente o aparentemente óbvio, bem ao estilo da autora, nos permite concluir com uma hipótese: a de que uma pessoa plural e multifacetada talvez seja mais capaz de ler a ambiguidade na grande literatura, capaz de desvelar a verdade na/da beleza e devolver à beleza a sua verdade una e plural.

Ligia Chiappini é catedrática aposentada de Literatura e Cultura Brasileiras da Freie Universität Berlin – Do Comitê Lula Livre de Berlim