Em 2020, se finda a segunda década do século 21 e a sociedade ainda se posiciona com perplexidade e distanciamento diante de questões humanitárias, principalmente no diz respeito à população negra, em particular sobre a construção de agenda de igualdade racial.
Conforta-nos (aos inconformados com a apatia, hipocrisia e desumanidade) que, mesmo diante de estruturas sociais e institucionais racistas, foram conquistados diversos direitos tardios. Deve-se considerar que a abolição de 1888 não aboliu. Isso promoveu um verdadeiro arrastão da situação de desigualdade e violência, atribuída historicamente a população negra.
O racismo está vivo, após 122 anos da abolição da escravização, mesmo com incessantes vozes chamando por justiça racial. Nesse sentido, Nilma Lino Gomes (2017) destaca o papel educador do Movimento Negro, tendo como elemento histórico a persistência na luta antirracismo e a relação construtiva com toda sociedade, independente do pertencimento racial.
Os caminhos de uma política
A persistência do racismo não ocorre por falta de produção e/ou de atitude históricas. Lembremo-nos de Abdias do Nascimento1, que comumente verbalizava a frase: “a luta pela liberdade inicia-se desde o momento que a/o primeira/o negra/o foi escravizado no Brasil, após ter sido capturado na África” (ver Matilde Ribeiro, 2015).
Também Roger Bastide e Florestan Fernandes (2008), em 1955, apontaram o “pecado da omissão”2 como a não atenção do Estado em relação à necessidade de políticas governamentais de promoção da igualdade racial.
Seguindo a perspectiva de superação do pecado da omissão, foi que se desenvolveram as políticas de igualdade racial, de maneira mais focada a partir dos anos 1980, nos executivos. Leis e normatizações3 e 4 foram sendo criadas, depois vieram os órgãos consultivos (de elaboração de indicativos para as políticas públicas) e por fim, os órgãos executivos em governos locais e federal (as coordenadorias, assessorias e similares vinculados a secretarias).
Em 1988, com a revisão constitucional (a Constituição Cidadã) ampliaram-se perspectivas, como por exemplo, com a regularização fundiária de terras de quilombos, a criminalização do racismo, os indicativos para o desenvolvimento das ações afirmativas, entre outros direitos formulados por milhares de mãos e mentes.
Do ponto de vista do Executivo, constata-se que durante muitos anos a Fundação Cultural Palmares (FCP), criada em 1988, foi o único ente governamental federal responsável pela política direcionada à população negra, porém, sob olhares críticos, pela restrição da missão à cultura.
Com a realização da Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, foi apresentado pelo Movimento Negro ao presidente da República (Fernando Henrique Cardoso) o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial. Como produto das negociações, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), conhecido como GTI População Negra que teve como base a atuação do governo federal no estabelecimento de políticas públicas para negros. Esse instrumento foi formado por representação governamental de vários ministérios (Saúde, Trabalho, Educação, Relações Exteriores, Esportes, Justiça, Cultura e Planejamento, além das Secretarias de Comunicação Social e de Assuntos Estratégicos) e por oito representações de parte da sociedade civil (Movimento Negro).
Em 1996, houve a consagração de Zumbi dos Palmares como Herói Nacional no Livro Dos Heróis Da Pátria (que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia – Lei 9.315 de 20/11/96) e o reconhecimento da data de sua morte, 20 de Novembro, como o Dia Nacional da Consciência Negra. Essa dia se tornou feriado em vários estados e municípios5 e hoje faz parte do calendário oficial brasileiro.
Após esse percurso, em 2002, com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, novos tempos se delineiam. No discurso de posse, em 2003, diante de ampla mobilização popular, o presidente afirmou: “Mudança! Esta é a palavra chave”. Com isso demarcou sua autoridade possuidora de uma história de superação de dificuldades (de migrante a supremo mandatário), agradeceu ao apoio recebido e reafirmou que todos os brasileiros devem ter a oportunidade de superar as dificuldades sociais, políticas e econômicas. O Programa Fome Zero foi anunciado como prioridade e, no campo racial e étnico, foi reconhecida a existência das discriminações e feito o alerta de que não poderíamos esquecer jamais que o povo brasileiro realizou uma grande obra de resistência e construção nacional.
Ainda foram apresentados caminhos para as relações internacionais, no que diz respeito ao continente africano: “[...] reafirmaremos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades” (discurso de posse, publicado em Bonfim, 2004:414). O comprometimento político com o continente africano reforçou também a positividade dos propósitos da política de igualdade racial em âmbito nacional e internacional.
Com sua reeleição, o presidente Lula em seu discurso de posse para a segunda gestão (2007-2010) anuncia como perspectiva a continuidade de enfrentamento às injustiças contra as camadas mais pobres. São apresentadas as compreensões sobre a necessidade de superação da injustiça e desigualdade de maneira geral. Portanto, comparado ao conteúdo do discurso da primeira posse, as questões raciais estão implícitas, ao considerar o posicionamento de superação das desigualdades e construção de democracia e direitos.
A resposta mais efetiva por parte da gestão do presidente Lula às demandas do Movimento Negro e organização de mulheres negras foi à criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 21 de março de 2003.
As bases para a montagem da estrutura da Seppir foram a Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, o Programa Brasil sem Racismo e a Declaração e Plano de Ação de Durban. Expressa-se a visão de que essa política “não pode ser viabilizada por um único órgão público ou somente pelo governo, mas por uma conjugação de esforços que una o Estado, a sociedade civil, o setor empresarial e todos os envolvidos e comprometidos com a justiça social no Brasil” (Brasil, 2003).
Assim, iniciou-se um novo ciclo na administração pública, no que diz respeito às políticas de promoção da igualdade racial. A Seppir foi criada como órgão assessor da Presidência da República com status de ministério e, em 2010, foi transformada em Ministério, posteriormente, em 2015, passou a compor o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
Também o Estatuto da Igualdade Racial, instituído em 20/06/2010 (Lei 12.288/10), referencia a constituição de uma ação efetiva do Estado brasileiro, como base legal para a igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos; e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Nos anos 2000, ocorreram a promulgação de leis como a da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira no ensino público e privado (10.639/03); o Programa Universidade para Todos – Prouni (concessão de bolsas a alunos pobres, indígenas e negros – 11.096/05); as cotas nas universidades públicas (acesso a alunos pobres, indígenas e negros – 12.711/12); a PEC das Domésticas (66/2012) e a Lei Complementar 150 referindo-se a conquista de jornada de trabalho de 8 horas, licença e salário maternidade, auxílio doença, aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição, auxílio acidente de trabalho, pensão por morte entre outras.
Destaca-se, ainda, as iniciativas com relação ao continente africano, sendo impulsionada em várias áreas da política pública. Nesse contexto o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirma que o Brasil se importa com o continente africano porque a “África é aqui” (ver Ribeiro, 20115). Ainda, a embaixadora Irene Vida Gala (2019), em seu livro Política Externa como Ação Afirmativa, informa que o presidente Lula, entre 2003 e 2006, esteve presente em dezessete países africanos, o que supera referências históricas, pois, somados, todos os presidentes anteriores tinham visitado apenas dez países africanos. Reafirma-se que as visitas, são acompanhadas de formatação de acordos e normatizações, que geram políticas públicas.
A história não é linear, é mutável
Recuperei passagens e fatos que constituíram essa ação política, como re-constatação da realidade. Identifica-se, nas últimas décadas, a ampliação de representação política, de instrumentos e práticas de políticas de igualdade racial. O caminho tem sido moroso e tortuoso, mas é possível verificar coerência e persistência histórica do movimento negro e organização de mulheres negras, impulsionando setores antirracismo e ações governamentais.
Não é possível que uma “caneta azul” e a lavagem cerebral imposta pelo atual governo federal destruam tão detalhada e complexa construção. Também temos de compreender que essa realidade é parte de um fluxo maior de desmonte de direitos sociais, econômicos e políticos, duramente construídos antes e depois da ditadura militar, que infelizmente é reanimada.
Voltando-nos ao passado, é possível ver os feitos. Porém, não sejamos ingênuos, é pertinente a crítica de que as conquistas deveriam ser ainda mais amplas. Devemos considerar que tudo é história e fundamento para lutas e vidas futuras!
Mas vamos combinar, né! Não dá pra nos conformarmos em olharmos pra frente e enxergarmos apenas ruínas e retrocessos, pois não há linearidade na construção de agendas políticas.
Temos sim de reforçar a luta cotidiana para garantia de direitos democráticos e justiça social, fortalecer a utopia de ampliação das conquistas e, acima de tudo, investir em mudanças estruturais.
A história já demonstrou a possibilidade da alternância da vida política. Os arranjos governamentais não estão sempre à direita, nem sempre à esquerda. As relevâncias democráticas são construídas a partir de contingências históricas e políticas, portanto, a efetiva mudança é possível, tornando-se importante sulear6 o mundo.
Por fim, concordo plenamente com Mário Maestri (1994) e Darcy Ribeiro (2006) que refletem sobre a necessidade de revisão nacional quanto às questões étnico-raciais. Maestri enfatiza a população negra e Ribeiro a condição dos indígenas7. Ambos nos fazem refletir que é impossível compreendermos as relações étnico-raciais no Brasil se não levarmos em consideração os legados da escravização e da dizimação dos povos indígenas, de maneira negativa, do ponto de vista teórico e político, nos estudos e na vida da sociedade.
Tá registrado, ao longo da história, vários foram os feitos. Estamos atônitos diante dos desfeitos e desmontes. Porém, temos que nos munir de energias para reavaliar os feitos e, se necessário, revê-los e refazê-los. O rumo é, sem dúvida, o reinventar da justiça e da democracia, fazendo jus à formulação “nada sobre nós, sem nós”!
Matilde Ribeiro é doutora em Serviço Social, professora no Instituto de Humanidades/Área de Pedagogia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) em Redenção, no Ceará, integrante do Conselho África do Instituto Lula
Referências
BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo: Ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 4ª ed. São Paulo: Global, 2008.
BONFIM, João Bosco Bezerra. Palavra de Presidente. Os discursos presidenciais de posse de Deodoro a Lula. Brasília: LGE Editora, 2004.
GALA, Irene Vida. Política Externa como Ação Afirmativa. Projeto e ação do Governo Lula na África, 2003-2006. Santo André, SP: EdUFABC, 2019.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador. Saberes construídos em lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
MAESTRI, Mário. O Escravismo no Brasil. São Paulo: Atual, 1994.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
RIBEIRO, Matilde. “Mulheres Negras: uma história de criatividade, determinação e organização”. In: SANTANA, Bianca (Org.). Vozes Insurgentes de Mulheres Negras. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2019.
________. “Brasil e África: desafios das políticas de igualdade racial em âmbito nacional e internacional”. In: Diálogos Africanos, nº 1, jul/set de 2015.
________. Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (1982-2010). Rio de Janeiro: Garamond, 2014.