Mundo do Trabalho

A intervenção governamental precisa estar associada a um programa de maiores investimentos do Estado, para manter a renda das famílias e viabilizar o pagamento da folha pelas empresas

Para diminuir a jornada com redução de salário, é necessário um acordo coletivo de trabalho, pactuado com as entidades sindicais. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

A crise é muito grave. Em 18/3/2020, a Organização Mundial de Saúde (OMC) divulgou que havia mais de 200 mil pessoas infectadas com o novo coronavírus (Covid-19) em todo o mundo, com mais de 8 mil mortes. No Brasil, cuja contaminação comunitária chegou depois, havia, até 22/3/2020, mais de 1.546 casos confirmados e 25 mortes, sendo que há uma subnotificação por falta de testes e os números não param de crescer. O quadro, que já é dramático, só não é pior em virtude da infraestrutura pública viabilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) estruturado nas últimas três décadas, mesmo que de maneira subfinanciada. Não é objetivo deste artigo abordar qualquer aspecto sobre o problema no campo da saúde. O foco aqui é a preservação do trabalho e renda, no contexto da luta pelo combate à pandemia no Brasil.

Nosso ponto de partida é a orientação das autoridades em saúde para que se reduza ao máximo o contato interpessoal, evitando quaisquer aglomerações. Assim, o confinamento das pessoas em suas casas1– ressalvado os casos de trabalhadores e trabalhadoras em atividades essenciais como nos segmentos da saúde e segurança – ajudaria, de acordo com as autoridades sanitárias, a achatar a curva do crescimento dos doentes, permitindo atender a demanda por leitos hospitalares em longo prazo. De fato, o confinamento em casas é o que tem sido feito em diversos países da Ásia (a começar pela China, foco inicial do vírus), Europa, EUA, entre outros países. Vários deles passaram rapidamente do recolhimento voluntário para o compulsório, com multas e prisões para os que descumprissem. No Brasil, o governo federal decretou, com a aprovação do Congresso, “estado de calamidade pública” (Decreto Legislativo nº 6, de 20/3/2020).

Neste contexto, entre outros graves problemas, o país terá que enfrentar a necessidade da paralisação ou redução abrupta da produção de bens e serviços, tal qual já acontece em outras áreas do mundo. Isso, para que as pessoas possam se recolher em moradias e instalações, e assim reduzir o contato social. Sem se saber ao certo até quando. Alguns estimam que, no Brasil, a crise tenha seu pico nos meses de abril e maio. Poderá ser mais curta a necessidade de permanência em confinamento; como poderá ser mais longa também.

O objetivo deste artigo é apresentar algumas diretrizes de solução para a equação que busca atender a recomendação do confinamento, a preservação da renda e do trabalho, bem como a viabilização do pagamento das remunerações salariais pelas empresas.

No momento em que concluímos este artigo, o Poder Executivo havia acabado de editar, em 22/3/2020, a Medida Provisória (MP) nº 927, que dispunha sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública. Essa MP se limitava a destacar aspectos já existentes na legislação atual, porém excluindo as entidades sindicais do processo de negociação e precarizando de maneira nefasta a situação dos trabalhadores e trabalhadoras. Era o caso do layoff (agora a suspensão do contrato de trabalho poderia ocorrer sem nenhuma remuneração; a bolsa qualificação profissional ficaria a critério da empresa e sem acesso ao seguro-desemprego); o banco de horas poderia ser feito por acordo individual. Também não havia nenhuma garantia de estabilidade no emprego. No dia seguinte, 23/3/2020, em mais um vaivém da ação governamental, o governo retirou a MP para editar outra, em razão das fortes críticas recebidas, em especial em relação à possibilidade de suspensão dos contratos por até quatro meses sem remuneração salarial.

Este artigo inicia-se por expor uma síntese das medidas anunciadas pelo governo federal em 18/3/2020, em que se baseiam as ações do governo até o momento.

Breves considerações sobre as principais medidas anunciadas pelo governo federal em 18/3/2020 em relação aos trabalhadores do mercado formal

Diante da situação de calamidade pública, o governo Federal apresentou diversas medidas, algumas delas relacionadas ao trabalho. Entre elas sobressaem: a redução de salário com redução de jornada de até 50%; a concessão de férias individuais ou coletivas, não sendo necessária a comunicação com 30 dias de antecedência ou comunicação ao sindicato e Ministério da Economia; a utilização do banco de horas; a antecipação de feriados não religiosos; o teletrabalho; os acordos individuais com prevalência sobre a lei. Vamos nos ater neste momento à redução da jornada com redução de salário em até 50% e o teletrabalho ou home office.

A nosso ver, a medida de redução de salário com redução de jornada não representa solução para a equação referida acima: confinamento voluntário e/ou compulsório, preservação da renda e trabalho, viabilização do pagamento das remunerações salariais pelas empresas. As ações do atual governo não recuperam nem mesmo a proposta do antigo Programa de Proteção ao Emprego (MP 680 e Decreto nº 479, de 6/7/2015)2.

Entretanto, como já exposto, a recomendação das autoridades de saúde é pelo confinamento das pessoas em suas casas, evitando o contato com os outros. Assim, reduzir a jornada em até 50% não evitará que as pessoas circulem. Essa medida também não ajudará por inteiro as famílias a pagarem suas contas. Além disso, ajudará a aprofundar a crise econômica no Brasil. A intervenção governamental precisa certamente estar associada a um programa mais completo e de maiores investimentos do Estado, de forma a manter a renda das famílias e viabilizar o pagamento da folha pelas empresas.

Antes de apresentar nossa proposta, para enfrentar a crise do confinamento no mundo do trabalho, cumpre destacar que, embora o governo federal tenha declarado estado de calamidade pública, isso não poderá representar o afastamento dos direitos sociais do trabalho, que estão previstos no artigo 7º, da Constituição Federal, dentre eles a exigência de acordo coletivo de trabalho para reduzir jornada e salário. A propósito, vale destacar que, em nenhuma das outras hipóteses também previstas na Constituição Federal, para lidar com situações de crises (casos do estado de defesa ou de sítio), há autorização para a eliminação dos direitos sociais.

Para realizar uma redução de jornada com redução de salário, é necessária a existência de um acordo coletivo de trabalho, pactuado com entidades sindicais. Mesmo com a alegação do governo federal de que o salário por hora não será reduzido, certamente já visualizando o apontamento da inconstitucionalidade da medida, é evidente que se trata de uma redução do salário mensal do empregado, que paga as suas dívidas mensalmente.

Outra medida de destaque é o “teletrabalho” ou home office. Importante, sem dúvida, mas ela atinge ainda parte minoritária de trabalhadores no Brasil.

Por fim, o governo também pretende promover a realização de acordos individuais que prevaleçam sobre a lei, o que somente é permitido para trabalhadores hiper-suficientes (aqueles que recebem atualmente salários superiores a R$ 12.202,12). A criação dessa possibilidade de retirada de direitos em um cenário bastante provável de desemprego ainda maior que o existente atualmente, levará certamente a uma precarização sem precedentes.

Elementos para um programa de preservação da saúde, do trabalho e da renda no segmento formal de trabalho

Apresentamos a seguir alguns subsídios para o enfrentamento deste grave quadro econômico relacionado ao período de confinamento, no contexto das orientações das autoridades de saúde do país.

Registre-se que esses subsídios estão alinhados e detalham alguns dos pontos do documento “Medidas de Proteção à Vida, à Saúde, ao Emprego e à Renda dos Trabalhadores e Trabalhadoras”, apresentado pelas Centrais Sindicais3 em 16/3/2020 e entregue aos presidentes da Câmara de Deputados e do Senado Federal. Compartilhamos com propostas ali apresentadas no campo do investimento público; das medidas de proteção ao trabalhador e trabalhadora com garantia de estabilidade no trabalho e renda; das medidas de proteção à população mais vulnerável e à segurança alimentar; e das medidas de proteção à saúde.

Claro está que uma premissa fundamental neste momento é a constituição de um programa de investimentos e ações de larga envergadura que possibilitem o enfrentamento no campo da saúde, a preservação do emprego e renda em situação de necessidade de brusca redução da produção e dos serviços. Assim, entre outras, é fundamental para a realização destas propostas a suspensão do teto de gastos (Emenda Constitucional 95); a suspensão dos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal; a suspensão temporária do pagamento dos serviços da dívida pública; a utilização do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); a participação do sistema financeiro público e privado na estruturação e execução das fontes de financiamento.

  1. Estabilidade de Emprego e não redução salarial

Entendemos que as propostas que apresentamos a seguir requerem amplo apoio do Estado brasileiro, com a contrapartida das empresas na forma de estabilidade de emprego durante o confinamento e por certo tempo determinado após a retomada das atividades. A estabilidade e a não redução salarial deverão se constituir em contrapartidas obrigatórias para os beneficiários dos programas públicos aqui sugeridos.

  1. Modalidade de crédito de emergência a juro real zero para capital de giro com vistas a viabilizar o pagamento da folha de pagamentos no período de confinamento

Para resolver a equação que requer confinamento em casa e preservação do trabalho e renda, é fundamental que haja amplo apoio do Estado às empresas com dificuldades de manterem a sua folha de pagamento no período. Isto porque é certa a queda brusca de produção de bens e serviços, e, por consequência, redução acentuada do faturamento das empresas. É essencial que o Estado estabeleça um rápido programa que apoie as empresas em dificuldade de pagar a sua folha de pagamentos, no período do confinamento.

Para a constituição da linha de crédito de emergência às empresas, além de recursos do Tesouro, seriam fontes de obtenção de recursos: o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o empréstimo compulsório de emergência ao Tesouro feito por todos os bancos e instituições financeiras que atuam no Brasil (proporcional às suas movimentações) a juro real de zero %, a ser retornado em prazo alongado, a ser fixado.

Além da estabilidade no emprego e da não redução salarial, as empresas que fizerem uso dos benefícios do programa não poderão, durante o confinamento e por prazo determinado após o seu fim, pagar bônus para os seus executivos, bem como deverão limitar os pagamentos salariais desses executivos.

  1. Duas fases do banco de horas

Vamos considerar, primeiramente, o caso das empresas e trabalhadores do chamado mercado formal, caracterizado por vínculos de empregos assalariados com carteira.

Para a preservação dos empregos e da renda nessas empresas do mercado formal, em especial daqueles trabalhadores e trabalhadoras cujas especificidades do trabalho exigem a presença física no posto de trabalho e, portanto, têm dificuldades de adotar esquemas do tipo home office, o programa deve trabalhar com duas fases para o banco de horas:

Fase 1: nos primeiros 45 dias, a composição de dispositivos como antecipação de férias coletivas, folgas coletivas e individuais e banco de horas (com compensação futura das horas não trabalhadas), sem redução dos salários. O governo facilitaria, em lei, os acordos coletivos que tiverem este objetivo.

Fase 2: Nos dias seguintes, até o fim do período em que o confinamento for necessário, o país implementaria um programa com a seguinte característica: a) as horas não trabalhadas seriam registradas em banco de horas (essas horas serão compensadas em até dois anos após a retomada das atividades, sendo que, neste caso, a hora extra diária será zerada no limite de até 10 horas de trabalho diário); b) o salário será mantido em 100%; c) as empresas poderiam renovar os empréstimos governamentais, a cada trinta dias em que permanecer o confinamento, em um montante de até 50% da sua folha salarial, com uma grade de juros reais anuais que variaria de zero a 6%, sendo que as taxas de juros da referida grade seriam inversamente proporcionais ao volume de empréstimo. A empresa seria monitorada em suas aplicações financeiras, para que não haja o uso desses recursos em aplicações de outra natureza que não a do pagamento das remunerações salariais.

Elementos para um programa de preservação da saúde, trabalho e renda nos segmentos de trabalhadores autônomos, microempreendedores, trabalhadores de aplicativos e economia informal

Em relação aos trabalhadores autônomos, microempreendedores e trabalhadores de aplicativos que não estiverem trabalhando no período, deveria ser concedido o valor de 1 (um) salário mínimo por mês, para que possam realizar seu confinamento com certa proteção social a suas famílias. Esses trabalhadores, devidamente comprovados a partir dos dados da Receita Federal, deveriam receber com agilidade esses recursos em suas contas bancárias.

Para os demais trabalhadores informais, é fundamental, no período de confinamento, acelerar e reduzir as restrições à inclusão destes trabalhadores ao Benefício de Prestação Continuada (BCP), destinado a idosos e portadores de deficiência; ao Bolsa Família e/ou programas similares ao seguro-defeso (pescadores).

As propostas acima também se alinham com as sugeridas no referido documento das centrais sindicais, do qual destacamos o seguinte:

  1. “Os trabalhadores informais/conta própria que sofrerem quebra de atividade durante a redução da circulação de pessoas ou no caso em que seja definido período de confinamento geral da população, ou ainda que necessitem se afastar através da seguridade social, com valores definidos conforme as regras do seguro desemprego, através dos mecanismos disponíveis na seguridade social (para os informais sem contribuição previdenciária, deve-se implementar programas da seguridade, tais como o Benefício de Prestação Continuada (BCP), o Bolsa Família e/ou programas similares ao seguro-defeso);
  2. Diferimento do pagamento de contribuições sociais para os trabalhadores/as conta própria e microempreendedores durante a redução ou cessação das atividades econômicas desses trabalhadores;
  3. As medidas de abono ao trabalho devem também se estender aos trabalhadores de aplicativos [trabalhadores com doenças como gripes, resfriados e/ou suspeita de coronavírus, as empresas deve abonar as faltas, sem necessidade de atestado médico];
  4. Se houver quebra da atividade para os trabalhadores de aplicativo de transporte: suspender a cobrança dos contratos com as locadoras de veículos, pelo período que durar a quarentena para aqueles que trabalham com veículo alugado; adiar a cobrança da prestação, sem cobrança de juros e multas, para aqueles que trabalham com veículos financiados;
  5. Para os trabalhadores de aplicativos que necessitarem de isolamento e/ou tenham contraído o coronavírus, as empresas responsáveis pelos aplicativos devem estabelecer medidas que garantam a remuneração média dos trabalhadores no período de afastamento, conforme as orientações das autoridades sanitárias brasileiras (como criação de um fundo com recursos para esse fim)”.

 Por fim, como já exposto, cabe reafirmar que, entre as fontes de financiamento para a realização dos programas aqui apresentados, estariam: recursos do Tesouro, Fundo de Amparo ao Trabalhador, Previdência Social, empréstimo compulsório de emergência ao Tesouro a ser feito por todos os bancos e instituições financeiras que atuam no Brasil (proporcional às suas movimentações) a juro real de zero %, a ser retornado em prazo alongado, a ser fixado.

Os recursos financeiros necessários para viabilizar este conjunto de propostas dependem dos percentuais, valores e regras precisas que forem fixados no conjunto de programas. Aqui foram expostas apenas as diretrizes de ações necessárias. Estimamos, porém, que estes valores podem variar entre R$ 100 bilhões e R$ 300 bilhões. Os números são elevados com certeza, correspondentes ao tamanho da gravidade da situação atual.

Jefferson José da Conceição é professor- doutor de Economia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e coordenador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura (CONJUSCS)

Maria da Consolação Vegi é advogada trabalhista, coordenadora do Departamento Jurídico do Sindicato dos Bancários do ABC e pós-graduada em Direito do Trabalho Individual e Coletivo pela USP