Política

Uma estratégia para derrotar o bolsonarismo emerge como decorrência da agenda imposta pela crise econômica, agravada pelo neoliberalismo autoritário. Na prática ela se dá por meio da escolha de aliados e adversários, da propagação de valores e da implementação de conteúdos programáticos

Maior aproximação entre PT e PSol, juntamente com o PCdoB, e a disputa pela orientação de PSB e PDT são o núcleo da coalizão partidária a ser priorizada. Foto: Diego Padilha/PT

Há algo que, no contexto atual, é relevante afirmar: o PT não foi eliminado da vida política nacional e não será. Isso não é pouco. Se o partido nunca foi tratado com boa vontade pela classe dominante, a violência, a voracidade e a coesão com que setores do sistema de justiça criminal, políticos oportunistas e a grande mídia perseguiram o partido nos últimos cinco anos tornavam real a dúvida sobre a sua viabilidade. A renúncia a qualquer verniz de normalidade institucional, no processo que foi da deposição da presidenta Dilma Rousseff à prisão de Lula, produziu danos reais ao partido e ao Brasil. Mas o PT sobreviveu e seu número de filiados aumentou. Sua bancada federal foi reduzida, mas seguiu sendo o maior partido na Câmara. Também foi ao segundo turno da eleição presidencial de 2018 com Fernando Haddad, obtendo 45% dos votos; elegeu governadores e esteve no páreo em outras disputas. Lula segue sendo, antes, durante e depois de sua prisão em Curitiba, a maior liderança política do país.

Em resumo, o partido venceu o desafio inicial da sobrevivência em um contexto barbaramente hostil. Mas o desafio agora é o da relevância. Como lembrou Lula em sua mensagem ao Congresso do partido, a realização política extraordinária que é termos no Brasil um Partido dos Trabalhadores só se justifica se o PT continuar sendo um instrumento relevante de desenvolvimento, democratização e realização dos interesses dos setores populares e marginalizados. E as condições atuais são adversas, tendo piorado muito nos últimos anos.

Uma dimensão importante da luta política atual é defender o legado do ciclo de governos de coalizão liderados pelo PT. O gráfico abaixo ilustra, de forma muito sintética e incompleta, a magnitude e o ineditismo que significaram nossos governos. Já é lugar comum afirmar que a desigualdade social é a marca histórica mais deletéria e persistente da sociedade brasileira.

Pois bem, o gráfico demonstra que os governos Lula e Dilma foram os mais inclusivos e distributivos social e politicamente de nossa história. Eles representaram, de fato, o único hiato de redução contínua e significativa da desigualdade desde 1960. Na direção contrária, o golpe de 2016 significou o recrudescimento dos mecanismos concentradores de renda, poder e oportunidades, levados agora ao paroxismo pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro.

No entanto, a viabilidade das realizações do período 2003-2014 foi condicionada (ou seja, a um só tempo limitada e possibilitada) por um desafio custoso de moderação política. E a maior parte daquelas condições não existe mais. Portanto, há razoável consenso sobre a necessidade de atualizar a estratégia do partido e da coalizão social de esquerda. Antes de avançar algumas ideias gerais, vale lembrar quais eram as condições que possibilitaram e conformaram a estratégia que levou o PT a ganhar quatro eleições e liderar os governos de coalizão.

2003-2014: limites e possibilidades

O modelo político-institucional que emergiu com a Constituição de 1988 era caracterizado predominantemente pelas eleições diretas majoritárias para os cargos executivos e Senado, bem como por um sistema eleitoral proporcional para as demais casas legislativas, o qual foi baseado em distritos de grande magnitude, multipartidarismo, listas abertas e regras de financiamento eleitoral altamente concentradoras. Também foi marcado por dispersão horizontal (Executivo, Legislativo e Judiciário bastante independentes entre si) e territorial do poder (sistema federativo). O bicameralismo forte no legislativo (Câmara e Senado com muitas prerrogativas) e a exigência de (super)maiorias para várias proposições (emendas constitucionais, por exemplo), alinhados com as demais características do sistema, faziam com que a viabilidade e a sustentação de um governo dependessem da construção de amplas (e heterogêneas) maiorias sociais, partidárias e políticas. Governos amplos e heterogêneos (que precisam levar em conta segmentos sociais e econômicos, representatividade regional, partidária da Câmara e do Senado, entre outros) tendem a negociar propostas mais próximas de um mínimo comum do que das preferências mais estritas da Presidência e de seu partido.

Além das características institucionais, outra condição vigente era a relativa legitimidade do pacto democrático e social inscrito na Constituição Federal. Entre 1988 e 2014 havia razoável consenso, ou pelo menos aceitação, de elementos básicos da Constituição. O primeiro era a centralidade e a legitimação pelo voto. A ideia de que o voto popular era o único jogo sendo jogado, o único meio pelo qual um grupo, uma coalizão de partidos, atores e projetos políticos poderiam ter acesso aos governos. Sendo assim, não haveria aos diferentes atores outro remédio, senão a negociação e a construção de acordos de convivência: fossem sobre políticas e decisões; fossem sobre destinação de recursos, composição de governo, emendas parlamentares; pauta e composição de comissões no Legislativo, dentre outros. Mesmo com custo político alto para os seus respectivos projetos ou para suas bases sociais, os diferentes atores e partidos eram impelidos a se verem não como inimigos, mas como adversários, com os quais se disputa, mas com quem também, às vezes, se negocia e coopera. Porque havia o reconhecimento de que a fonte de legitimidade não era o que cada um pensava sobre o outro, mas decorria do fato de que os eleitores soberanos os legitimavam. Ou seja, a tendência era da esfera política como um espaço de construção e de composição, tanto quanto de disputa, dissenso e competição.

Uma terceira condição vigente era a existência e dominância de uma centro-direita autônoma, relativamente democrática e quantitativamente significativa, na sociedade e nas instâncias políticas. Tal dominância certamente impôs restrições para governos mais identificados com a centro-esquerda na década de 2000, em países como Chile, Uruguai, Argentina e Brasil. No nosso país, a maioria do eleitorado historicamente teve baixa identificação ideológica, em meio a uma cultura política predominantemente conservadora. No plano propriamente político, era possível encontrar dois tipos de "centro" no Brasil: a) o centro político/ideológico relativamente conservador, mas interessado ou tolerante com a ampliação da inclusão política e social (desde que hierarquias básicas e estruturais não fossem abertamente desafiadas); e b) o “centrão”, muito conservador, mas para quem as posições substantivas sobre os fins eram menos importantes dos que o controle sobre os meios (clientelismo e fisiologismo). A relevância de ambos obrigou e permitiu negociações que, durante o tempo em que funcionaram, isolaram ou neutralizaram a direita mais refratária à agenda da inclusão social, ao custo da moderação ideológica e programática da centro-esquerda.

A quarta condição então vigente foi o que se pode chamar de brecha distributiva. A Constituição ampliou o campo dos direitos sociais e havia legitimidade para isso, porque se apoiava na incorporação política por meio da universalização do voto. Com todos os percalços, a tendência do período dos governos democráticos foi de ampliação do gasto social e do investimento público. Dadas as desigualdades brutais de recursos e de poder na sociedade brasileira, sempre houve veto e resistência dos setores mais poderosos a políticas fortemente redistributivas. No entanto, se redistribuição por meio de tributação ou desapropriação mais agressivas era pouco viável, havia maior viabilidade para políticas mais distributivas, por exemplo, por meio de reorientação de gasto. A reorientação do gasto federal permitiu ampliar a inclusão e os direitos por meio da provisão de serviços públicos. Utilizar, no seu limite, esta restrição e esta possibilidade para promover justiça social tornou-se uma alternativa viável para sociedades com déficits de cidadania social e de direitos básicos como a brasileira. Ao menos por um período.

Uma quinta condição foi o período de crescimento global da renda, do produto e da arrecadação, principalmente capitaneado pela China e pelas demais economias em desenvolvimento. Até a crise global desencadeada nos Estados Unidos em 2008, a expansão permitiu iniciativas internacionais e nacionais com distribuição progressiva de ganhos. Ou seja, os mais vulneráveis ganharam mais e ficou minimizada a necessidade de impor perdas. O espaço aqui é curto para discutir a dinâmica econômica no período. Mas, no caso brasileiro, foi decisiva a combinação bem-sucedida de forte investimento público puxando o investimento privado, recuperação do papel do Estado e políticas de renda (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, recuperação do salário mínimo, entre outras). Como destacou João Sicsú (2019) com base em dados do IBGE, durante os governos Lula, o consumo cresceu 48,2% e o investimento cresceu 74,3%. A ampliação do investimento público, combinada com uma conjuntura internacional temporariamente favorável pelo superciclo de commodities expandiu a janela de oportunidades redistributivas.

Tal combinação de políticas permitiu ampliar a demanda agregada, com democratização do crédito e ativação do mercado de trabalho. O aumento da renda dos mais pobres também impactou positivamente a arrecadação. Isso porque, quando os mais pobres têm sua renda aumentada, todo o adicional se transforma em consumo de produtos e serviços úteis, o que, dado o de resto indesejável peso enorme dos impostos indiretos no Brasil, tem um efeito retroativo sobre a arrecadação bem maior do que o investimento público inicial. O resultado combinado foi a criação de uma folga fiscal que permitiu que o gasto público se ampliasse de forma mais progressiva, com expansão de políticas educacionais, sociais, habitacionais e de renda direcionadas aos setores mais vulneráveis da população. Isso sem que os conflitos intensos de eventuais medidas que procurassem redistribuir recursos pelo aumento da progressividade tributária ou da desapropriação tivessem que ser enfrentados.

Finalmente, se adotarmos – com certa “licença criativa” – a distinção de Nancy Fraser entre redistribuição e reconhecimento, como duas dimensões da luta por justiça social, pode-se dizer que a natureza da coalizão construída em nossos governos foi eminentemente redistributiva, mas a dimensão do reconhecimento (gênero, direitos reprodutivos, LGBT, igualdade racial) também avançou. Essa foi uma característica marcante e conflitiva do período. Mas a dimensão do reconhecimento avançou, tanto por meio de iniciativas legislativas quanto de políticas públicas, como ocorreu nas áreas de agricultura familiar, da cultura, da educação e também por meio da priorização das mulheres em programas como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, para mencionar apenas alguns exemplos. Como se sabe, o eleitor mediano, no Brasil, tende a ser mais "progressista" distributivamente do que nos temas morais, de reconhecimento, de costumes e até mesmo de direitos civis. Ao mesmo tempo, nos setores de maior abertura à diversidade em termos morais e de estilos de vida (maiores renda e escolaridade) é onde se encontram os nichos de maior resistência à agenda redistributiva (Bolsa Família, cotas, mais médicos, salário mínimo etc.).

Portanto, tem sido muito difícil a arquitetura de uma coalizão política e social majoritária e que ocorra na interseção máxima de redistribuição e reconhecimento. Ao longo da década de 2000 e, principalmente, desde 2014, cresceram tanto os descontentamentos com os limites do que foi possível realizar, quanto os antagonismos cada vez mais explícitos contra uma ou ambas as dimensões da justiça social.

O autoritarismo neoliberal 2.0

Em resumo, a deterioração das condições que possibilitaram a coalizão social e política heterogênea liderada pelo PT, ao mesmo tempo que impuseram restrições ao seu programa, teve um papel importante no desfecho da crise até aqui. A emergência de novas coalizões "contra a justiça social", fortemente regressivas na dimensão redistributiva e na dimensão do reconhecimento, é um fenômeno internacional. O qual tomou enorme proporção na segunda metade da década de 2010, em países tão diferentes quanto Estados Unidos, Índia, Reino Unido, Polônia,  Chile e Filipinas.

Se levarmos em conta a formação histórica, a concentração de riqueza e poder, enfim, a correlação de forças tremendamente adversa da sociedade brasileira, o período de grande estabilidade e avanços dos governos liderados pelo PT constitui sim um legado e uma experiência muito importante. É legítimo e salutar que os exageros, limites ou equívocos na condução daquele processo sejam apontados e debatidos, mas o nosso ponto aqui é outro: as condições que tornaram aquela alternativa viável não existem mais, pelo menos no momento. E nossa avaliação é que não voltarão a existir no curto prazo.

O pacto democrático encontra-se atacado por posições abertamente autoritárias, como as do atual governo Bolsonaro e também pela hipertrofia, descontrole e politização do sistema de justiça criminal e do Judiciário. E, ainda, pela disposição de grupos políticos, sociais, midiáticos e econômicos em adotar caminhos não eleitorais para ter acesso ao poder ou, de outro lado, para excluir adversários da disputa. O período de 2015 a 2019 é pródigo demais em exemplos para ser necessário discorrer sobre esse ponto.

Da mesma forma, as bases institucionais, orçamentárias e ideológicas do pacto social de 1988 estão sob ataque cerrado: o teto de gastos, as reformas trabalhistas, previdenciárias e as propostas de eliminação de pisos de investimento em saúde e educação (os ataques à educação e à ciência se dão em todos os níveis, não apenas orçamentários) ilustram, mas não esgotam, a extensão do retrocesso em termos de direitos sociais.

Uma centro-direita minimamente democrática já não existe como um pólo autônomo, com interesses e capital político próprios. Tornou-se linha auxiliar da extrema direita. Embora seja bem possível que parcela importante da sociedade e da opinião pública volte a se posicionar próxima do centro político, a dinâmica política e institucional não se organiza mais, ao menos por enquanto, dessa forma. O primeiro sinal foi a deserção do PSB nas eleições de 2012 e 2014, principalmente após o acidente trágico de Eduardo Campos. Não é preciso recontar aqui o papel vergonhoso desempenhado pelo PMDB no processo de erosão da coalizão liderada pelo PT.

No processo de radicalização antidemocrática que se seguiu à eleição de 2014 e criou as condições para o golpe de 2016, a então oposição, formada por partidos, imprensa, setor financeiro, Fiesp, entre outros, atuou, de fato, como corvos alimentados pela expansão econômica anterior. E que procuraram devorar os olhos das forças progressistas com as quais tiveram que conviver por alguns anos. Foram esses setores, de forma oportunista, mas cada vez mais convicta discursivamente, que retiram das margens e, em alguns casos, do esgoto do sistema político e da opinião pública, atores e segmentos que demonstravam pouco apreço pelas práticas e valores democráticos, ou lhes eram francamente hostis. E o fizeram acreditando que poderiam circunscrever a deslegitimação política ao governo e à esquerda. Acreditaram que a extrema direita fascista que eles trouxeram para a arena política, reconhecendo-a como interlocutora legítima, poderia ser descartada ou domesticada para dar lugar ao retorno do PSDB ao governo federal. Estavam enganados. A deslegitimação democrática, a criação de um clima de confrontação generalizado e de desconfiança em relação a todas as instituições políticas, a rejeição a todos os partidos e a recusa dos mecanismos básicos de construção de acordos e políticas (tratados como "corrupção") levariam de roldão o centro e a centro-direita política, premiando uma extrema direita de feições fascistas que passaria a hegemonizar quase todo o campo do centro e da direita. Basta lembrar a votação de Geraldo Alckmin e Marina Silva nas eleições de 2018 e apontar que a principal liderança que sobrevive nas ruínas do PSDB é uma figura como Dória.

A brecha distributiva que conseguimos utilizar ao limite também parece ter se estreitado muito. A recessão e posterior estagnação econômica, combinadas com deterioração fiscal agravada por políticas austericidas, limitam as possibilidades atuais. Não é mais possível a distribuição de ganhos generalizados, ou seja, custos reais ou relativos terão que ser impostos aos muito ricos para haver ganhos significativos para os mais pobres.

No plano social e cultural, as políticas de reconhecimento tornaram-se um campo de batalha marcado pelo fundamentalismo religioso e pelo moralismo à Hamurabi. Uma combinação rombuda de desprezo pelos fatos e recusa à razão. Isso permitiu à reação conectar-se com setores populares e congestionar a agenda política, sem que tivessem de se haver com a pauta distributiva, campo em que vinham sendo derrotados há quatro eleições. Nesse sentido, os temas da corrupção e da segurança pública foram catalisadores importantes para buscar apoio popular contra a centro-esquerda. O percurso que vai do golpe de 2016 até o governo de extrema direita presidido por Bolsonaro evidencia que a estratégia que orientou a trajetória eleitoral desde a virada do século e os governos de maior transformação social de nossa história recente não é mais uma via aberta.

Sendo assim, qual o posicionamento que permitirá que o ainda maior partido de esquerda do Brasil siga sendo um instrumento central na luta pela democracia e pela justiça social?

Elementos para uma estratégia

Os congressos do PT e da CUT no final de 2019 foram definidos pela defesa do legado dos governos Lula e Dilma. Compreensível e necessário. Mas precisamos nos voltar para o futuro, enfrentando as condições adversas do presente. Parte do debate atual na centro-esquerda diz respeito à amplitude das alianças para as eleições municipais de 2020. O subtexto é a chapa de disputará a Presidência da República em 2022. Testes e ensaios são feitos nas várias frentes de resistência contra as ações e opiniões da fraturada e danosa coalizão bolsonarista. Uma estratégia para derrotar o bolsonarismo (e o "partido da lava jato") vem emergindo como decorrência da agenda imposta pela própria crise econômica prolongada, agravada pelo neoliberalismo autoritário. A materialização dessa nova estratégia se dá por meio da escolha de aliados e adversários, da propagação de valores e da implementação de conteúdos programáticos.

Nossa avaliação é de que o campo democrático e a esquerda sofreram uma derrota estratégica, no campo institucional e dos valores. E a retomada será longa e trabalhosa. A estratégia de enfrentamento do governo Bolsonaro tem que levar isso em conta. É preciso resistir contra a mistura de fascismo e incompetência vigente. Mas também precisamos propor uma alternativa e uma superação da crise atual para o Brasil. Isso implica um reposicionamento significativo, mas nuançado. O que chamaremos aqui de “deslocamento à esquerda” e de “redução do espaço da extrema direita” não são estratégias alternativas, mas sim partes de uma mesma estratégia de longo prazo.

De um lado, como a estratégia de incorporação do "centro" político e de redistribuição de baixo conflito não é mais viável, precisamos fazer um deslocamento mais decisivo à esquerda. Deslocamento programático, de interlocução, de posicionamento no debate público e na luta social. Essa deve ser a prioridade da longa reconstrução do campo político popular, a qual será longa e difícil. Se a virada do século nos colocou o desafio e o duro aprendizado da moderação, a luta social hoje nos exige ousadia e firmeza na defesa de interesses, valores e opiniões socialistas. A aproximação mais decidida entre PT e PSol, juntamente com o PCdoB, e a disputa pela orientação de PSB e PDT, são o núcleo da coalizão partidária a ser priorizada.

Mas, se a disputa do futuro exige escolher aliados, a resistência imediata nos obriga a escolher bem nossos adversários. A consolidação de uma coalizão de esquerda deve se combinar com o esforço de isolar o bolsonarismo e a extrema direita, pelos riscos e danos que provocam e podem provocar à democracia, mas especialmente aos mais pobres, marginalizados, à cultura, ao conhecimento e à diversidade. Ou seja, é preciso adotar a postura de que todos aqueles que não são nossos inimigos (a extrema direita e o bolsonarismo) podem ser, tática e pontualmente, interlocutores ou aliados em questões específicas. É um equilíbrio arriscado, difícil, mas necessário neste momento. A contribuição da esquerda na redução de danos e mesmo em alguns avanços do nefasto “pacote anticrime” é exemplo desse tipo de atuação – controversa, sujeita a erros e reavaliações, mas indispensável.

E essa disputa passa pelos valores. Contra o individualismo embrutecido, defenderemos a solidariedade cultivada no cotidiano criativo do povo brasileiro. O Brasil vive hoje uma intensa polarização assimétrica. De um lado, distintos posicionamentos dentro de um amplo espectro do centro à esquerda, mas orientados por racionalidade e comprometidos com os princípios mínimos da democracia e dos direitos humanos. De outro lado, uma visão de mundo de inspiração fascista, que combina fundamentalismo religioso, hostilidade à ciência e à arte, intolerância, teorias conspiratórias, elogio da violência e privatismo predatório, travestido de ultraliberalismo econômico.

A posição normativa da extrema direita é instável, apesar de funcional até certo ponto para os interesses dos mais ricos e poderosos. Sua manutenção depende de impedir outras lideranças em seu próprio campo e de mobilizar emocionalmente sua base social, de modo que a demanda por lealdade e adesão afetiva se imponha sobre a razão, sobre o diálogo e sobre os fatos. Daí decorre que, para essa nova direita da era digital, o confronto contínuo importa mais do que as realizações ou a vitória. O bolsonarismo tem que se apresentar permanentemente como alguém que é ameaçado e combate inimigos poderosos, reais ou inventados. Ou seja, ele tem que tentar mostrar-se como um desafiador constante do status quo. Portanto, nossa oposição tem que lidar com isso.

A primeira armadilha a ser evitada, portanto, é priorizar ou restringir a nossa atuação a uma posição reativa e centrada na atuação e no comportamento pessoal de bolsonaristas e “lavajatistas”, por mais bizarros que sejam. Uma atuação reativa e fragmentada acaba por sustentar a capacidade de Bolsonaro de dominar e congestionar a agenda pública nos terrenos e temas de seu interesse. Direcionar nossa ação estritamente a suas ações e características individuais – por mais doentias que sejam – mobiliza afetiva e emocionalmente seus apoiadores, alimentando ainda mais a percepção de ameaça e confronto que é o que sustenta sua posição.

Levando isso em conta, não se deve abrir mão de uma reação pontual, nas redes sociais, meios de comunicação e nas ruas. Mas, como destacou Luiza Dulci (2019) em coluna na revista Teoria e Debate (Sobre as mais recentes turbulências na América Latina), é preciso formar um amplo leque de alianças sociais com artistas, intelectuais, coletivos profissionais, sindicatos e centrais sindicais, cooperativas, trabalhadores informais preocupados com a precarização, jovens, coletivos com atuação cultural nas periferias urbanas, movimentos de mulheres, LGBT+, profissionais de saúde e educação, mandatos parlamentares, enfim, com movimentos sociais e coletivos diversos, “com os trabalhadores e não apenas seus representantes”.

Para isso, a intervenção partidária e da coalizão, principalmente de seus principais porta-vozes, precisa se dar no plano mais afirmativo, menos atomizado e menos personalizado. Por exemplo, na defesa de uma concepção de ciência, educação e cultural de maneira mais sistêmica, global e persistente. Assim conseguiremos disputar o futuro e a esperança, terrenos em que a necropolítica não tem nada a oferecer. É preciso estar posicionado e começar a construir o pós-Bolsonaro. Isso implica ser capaz de estabelecer “utopias realistas” nos diferentes planos: renda básica universal, transporte público gratuito, educação integral para todas as crianças, governos com paridade de gênero e cor são exemplos do tipo de ambição que devemos apresentar. É preciso imaginação.

Em outras palavras, para expressar de maneira ativa e exemplar uma visão de mundo alternativa é preciso formulação programática que nos permita dobrar toda aposta do governo com uma alternativa ousada, expressão de valores superiores, viável, mas que oriente de fato e de maneira sistemática nossa intervenção institucional, no movimento social e na opinião pública. Isso serve a três propósitos: nos posicionarmos como alternativa, desnudar o falso discurso da necessidade técnica e objetiva e construir uma coalizão social alternativa. É preciso, finalmente, evidenciar que Bolsonaro et caterva são o status quo da desigualdade bruta brasileira radicalizado. Somos nós quem desafiamos o status quo historicamente constituído no Brasil.

Assim, no âmbito da disputa programática o PT lançou no começo de 2020 um Plano Emergencial de Emprego e Renda. Seus elementos básicos envolvem empregar e milhões de pessoas a curto prazo em trabalhos de zeladoria de ruas e edifícios públicos, retomar 7.400 obras públicas paralisadas, reativar o Minha Casa Minha Vida (MCMV) para construir 500 mil moradias em um ano, reajustar o salário mínimo imediatamente acima da inflação, renegociar dívidas das famílias de maneira sustentável, reverter o processo de privatização e estrangulamento da Petrobras, revigorar o BNDES, corrigir a tabela do Imposto de Renda e estimular a compra de alimentos saudáveis de 300 mil famílias de agricultores, abastecendo mercados locais a preços acessíveis. Outras iniciativas emergenciais podem ser lançadas, inclusive tomando inspiração nas ações de cem dias dos governos Fernandez na Argentina e Obrador no México.

Entretanto, como as dificuldades fiscais agravadas pela política econômica neoliberal limitam o alcance de ações via orçamento da União, é necessária uma agenda legislativa mais coesa e abrangente de reversão das medidas implementadas desde o golpe, a começar pela revogação do famigerado Art. 106 da Constituição criado pela PEC do Regime Fiscal que sacrifica o gasto social. A âncora central do programa a ser disputado é a proposta de Reforma Tributária Justa, Solidária e Sustentável (Emenda 178 da PEC 45), proposta conjuntamente pelas bancadas do PT, PC do B, PDT, PSB, PSol e Rede.  Afinal, no Brasil os princípios constitucionais em matéria tributária ("capacidade de contribuir") contrastam fortemente com mecanismos estruturais de injustiça fiscal, conforme apontam Rosa Chiesa et al (2018)1. Por isso, as propostas de elevar progressivamente os impostos sobre a renda e o patrimônio, bem como reduzir os impostos sobre o consumo, são essenciais para diminuir desigualdades e retomar o desenvolvimento. De um lado, isentar de impostos sobre a renda as pessoas que ganham até quatro salários mínimos e reduzir as alíquotas para quem ganha até 15 salários. De outro lado, cobrar IPVA para lanchas, iates e helicópteros, taxar as pessoas físicas que recebem juros e dividendos, ou taxar em 0,5% as heranças e patrimônios de quem ganha mais do que 8 mil vezes a soma de quatro salários mínimos (limite de isenção do IR). A reforma tributária justa e solidária vai ao âmago do conflito distributivo brasileiro, é factível politicamente e reforça a solidariedade entre as pessoas, estando elas empregadas, precarizadas ou desempregadas.

Com fundamento nas propostas emergenciais para sair da crise e na reforma tributária para financiar as políticas públicas, nas eleições municipais de 2020 precisamos apresentar um conjunto de propostas específicas para a democratização da governança das cidades, para o abastecimento de alimentos, para o transporte público, para o meio ambiente e para o resgate da dignidade das pessoas mais vulneráveis. No âmbito nacional, adequar e integrar propostas de políticas que resgatem a segurança pública, a defesa nacional e as relações exteriores da catástrofe miliciana e fundamentalista atual. Ao cabo, mais do que a capacidade que certamente temos de formular programas, o ponto central é que um conjunto coerente e abrangente de propostas deve orientar toda a intervenção pública do partido e da centro-esquerda. Sem isso a resposta pontual, local, setorial e reativa a cada descalabro do governo Bolsonaro se perde e retroalimenta a fragmentação.

Concluindo, a luta contra a nova direita brasileira é a luta de sempre pela dignidade, pela solidariedade, pelo desenvolvimento e pela razão. Os valores e conteúdos que a orientam são os mesmos dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Mas ela se dá em condições mais hostis, nacional e internacionalmente. E isso faz toda diferença. Resistimos ao mais violento ataque da reação desde a ditadura. Neste momento, defender nossa história depende de, ao mesmo tempo, sermos capazes de reconstruir a esperança e sermos portadores de futuro.

Quando concluímos este artigo, o mundo ingressava em uma crise aguda decorrente da pandemia da Covid 19, cujas consequências sanitárias, sociais, econômicas e políticas são tão dramáticas quanto incertas. No Brasil, o equilíbrio instável do arranjo bolsonarista descrito anteriormente encontra-se desafiado, principalmente pelo comportamento irresponsável (para dizer o mínimo) do presidente e pelo caráter descoordenado, errático e tímido da resposta federal à gravidade da situação. Não se sabe ainda em que medida o crescente isolamento de Bolsonaro é reversível e qual sua capacidade em manter ou recuperar seu apoio mais fiel. De outro lado, a janela que isso abre para a reorganização de uma direita e centro-direita alternativas ao bolsonarismo, como Doria, Maia ou, mais ao centro, como Kalil, pode permitir uma reorganização desse polo. No campo mais progressista, a articulação dos governadores do Nordeste tem aumentado o protagonismo e liderança desses atores, o que talvez desloque o eixo político da esquerda em sua direção.

Finalmente, a gravidade da crise sanitária e econômica ressalta a centralidade do Estado e das políticas públicas no enfrentamento da crise e torna temporariamente obsoleto o discurso hegemônico fiscalista e centrado na austeridade e demonização do gasto público. Se isso perdurará após a crise mais aguda ou se o status quo político e econômico conseguirá se reorganizar e cobrar seu preço em dobro (como ocorreu após a crise de 2008), não está claro ainda e dependerá fortemente dos impactos econômicos e sociais e da ação política dos diferentes atores em movimento: virtù e fortuna, como diria Maquiavel.

À luta, companheiros.

Bruno Lazzarotti Diniz Costa é professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro (FJP-MG)

Marco Cepik é professor da UFRGS