Sociedade

O aumento da violência doméstica já foi identificado em vários países. No Rio de Janeiro os relatos aumentaram 50% durante o confinamento. É preciso pressionar o governo a implementar medidas eficazes para amenizar a coronacrise e combater a violência doméstica

Os agressores podem usar a pandemia para isolar ainda mais suas vítimas de amigos, familiares e do trabalho. Foto: Agência Brasil

Embora a Covid-19 já tenha matado milhares de pessoas em todo o mundo e esteja paralisando a atividade econômica global, o presidente Jair Bolsonaro insiste em se referir a ela como uma "gripezinha". Apesar dos esforços do presidente para evitar a interrupção da atividade econômica no Brasil, o ritmo do país desacelerou e as pessoas que podem ficar confinadas em casa estão fazendo isso. Nesta semana, várias cidades e estados implementaram o fechamento obrigatório de serviços e comércios não essenciais. Diante desse novo cenário, com impactos ainda muito incertos, gostaríamos de levantar uma preocupação com um problema que foi relatado em outros países: o aumento da violência doméstica.

Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS 2018) mostram que em tempos de crise econômica aumenta o risco de violência física e sexual. Em um contexto de crise de saúde, econômica e social, "muitas pessoas sentem que estão perdendo o controle e buscam maneiras saudáveis de enfrentar a situação. Mas quando um agressor se sente impotente a vítima está em risco" (USA Today 2020). Além disso, um estudo sobre violência na Rússia (Popova, Otrachshenko e Tavares 2019) mostra que o comportamento violento é mais comum nos finais de semana, quando as famílias interagem mais.

Nos Estados Unidos, a quarentena para retardar a expansão da Covid-19 leva ao confinamento de pessoas que são vítimas de violência doméstica com seus agressores e as isola de recursos protetores. Além disso, os agressores podem usar a pandemia como uma maneira de isolar ainda mais suas vítimas de amigos, familiares e do trabalho. Em casos mais extremos, "os agressores ameaçam jogar suas vítimas na rua caso fiquem doentes" (revista Time 2020).

Na China, também há relatos de aumentos drásticos da violência doméstica durante a quarentena, especialmente na província de Hubei. O número de casos relatados em janeiro na delegacia de Jianli, em Hubei, triplicou em comparação com o mesmo período do ano anterior (de 47 casos para 162). Segundo uma ativista da região, durante esse período, "90% das causas de violência se relacionaram à epidemia do Covid-19" (SixthTone 2020).

As estatísticas de violência doméstica e feminicídio no Brasil já são assustadoras e crescentes. De acordo com dados do Centro de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP), e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.314 mulheres – uma a cada sete horas em média – foram mortas em crimes de ódio motivados por gênero em 2019. O número representa um aumento de 7,3% em relação aos 1.225 casos de feminicídio registrados em 2018 (Globo.com 2020).

Para piorar a situação, o governo e a sociedade brasileiros não estão levando a sério os riscos do coronavírus, o que pode conduzir a uma epidemia mais grave e generalizada, ampliando a área geográfica e a duração das quarentenas. Até o momento, o governo federal insiste em contrariar a OMS e as diretrizes de seu próprio ministro da Saúde, deixando de conter a crise sanitária, econômica e social (Oliveira 2020). As diretrizes são claras e precisam ser seguidas. É hora de ficar em casa e reduzir o contato social – também é crucial reconhecer o problema da violência doméstica e agir para reduzi-la e evitá-la. As escolas e outros espaços comunitários estão fechados, as redes de assistência podem ser reduzidas devido à quarentena ou podem ser redirecionadas para prestar serviços relacionados à epidemia. Portanto, o acesso a assistentes sociais e assistência médica ou psicológica é limitado.

Em suma, é importante expandir os serviços públicos e a rede de segurança das mulheres. Um artigo do The New York Times afirma que, embora os recursos para vítimas de abuso doméstico durante o surto estejam limitados, elas são incentivadas a "procurar abrigos, linhas diretas, terapeutas e conselheiros. Onde o serviço de assistência no local não está mais disponível, as comunicações telefônicas e digitais ainda funcionam" (The New York Times 2020). Embora possa ser difícil para as confinadas com agressores denunciar ou entrar em contato com linhas diretas, a existência e a expansão dos recursos virtuais são fundamentais.

Infelizmente, já existem evidências alarmantes da correlação entre quarentena e violência doméstica no Rio de Janeiro. Na cidade, que está apenas atrás de São Paulo, mais populosa, em número de casos de Covid-19, os relatos de violência doméstica já aumentaram 50% durante o confinamento (G1 2020). À medida que o isolamento social se expande por todo o país, preocupamo-nos com a gravidade que esse problema atingirá.

Outro impacto do coronavírus, além de levar a um aumento no "confinamento", é um aumento na taxa de desemprego. A fragilidade financeira também é um elemento chave para explicar a vulnerabilidade à violência doméstica, pois impõe mais restrições às vítimas. Sem recursos financeiros, as mulheres correm maior risco de sofrer abusos. Nos Estados Unidos, em uma pesquisa realizada em 14 de março, 21% das entrevistadas relataram perda de emprego ou redução de horas de trabalho em suas famílias, contra 16% dos homens entrevistados (NPR/PBS NewsHour/MaristPoll), indicando que as mulheres são mais suscetíveis à perda de emprego devido à crise atual.

Se esse padrão também for observado no Brasil, o impacto do coronavírus na violência doméstica poderá se estender além do período de quarentena. Essa crise se acrescentaria ao severo corte de renda que já afetou as mulheres nos últimos anos, como reduções no Programa Bolsa Família (PBF), um programa de transferência de renda para famílias de baixa renda que tem sido elogiado em todo o mundo. O PBF tem um grande impacto na autonomia financeira das mulheres, que são a grande maioria de seus beneficiários (Bartholo, Passos e Fontoura 2017). Em março de 2020, 158 mil famílias, a maioria no Nordeste, foram excluídas do programa. O apoio financeiro do PBF oferece recursos cruciais que permitem que as mulheres deixem seus parceiros abusivos. Os cortes no programa tornam as mulheres mais dependentes de agressores e mais vulneráveis a abusos.

Além de expandir a cobertura do PBF, propomos algumas outras políticas que podem ajudar a mitigar esse problema e dar apoio a pessoas em relacionamentos abusivos:

  • Criar um amplo programa de renda mínima que atenda aos mais vulneráveis, incluindo muitas mulheres.
  • Disponibilizar assistência virtualmente, por meio de linhas diretas.
  • Divulgar amplamente na mídia os canais de assistência às mulheres em situação de violência.
  • Manter e fortalecer programas para monitorar e assistir vítimas de violência doméstica, como assistência social e serviços de saúde (por exemplo, os serviços do Sistema Único de Saúde – SUS e do Sistema Único de Assistência Social – Suas), sem redirecioná-los para atender imediatamente às demandas econômicas e de saúde da Covid-19, expandindo o entendimento sobre saúde e bem-estar além da lógica biomédica.

Nós, como sociedade civil, devemos permanecer vigilantes e manter contato com parentes e amigos. Devemos observar as mudanças ao nosso redor, oferecer suporte e informações, bem como notificar as autoridades quando suspeitarmos de relacionamentos abusivos. Mais importante, porém, devemos continuar pressionando o governo a implementar e cumprir medidas eficazes para amenizar a coronacrise e combater a violência doméstica.

Obs: Artigo publicado originalmente no Multiplier Effect, blogue do Levy Economics Institute

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Referências

World Health Organization. 2018. https://www.who.int/news-room/feature-stories/detail/violence-against-women.

USA Today. 2020. https://www.usatoday.com/story/news/health/2020/03/18/coronavirus-domestic-violence-shelters-prepare-hotlines-open/5067349002/.

Popova, Olga, Vladimir Otrachshenko, e José Tavares. 2019. “Extreme Temperature and Extreme Violence across Age and Gender: Evidence from Russia.” Econstor.

Time Magazine. 2020. https://time.com/5803887/coronavirus-domestic-violence-victims/.

Sixth Tone. 2020. https://www.sixthtone.com/news/1005253/domestic-violence-cases-surge-during-covid-19-epidemic.

Globo.com. 2020. https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml.

Oliveira, Ana Luíza Matos de. 2020. https://fpabramo.org.br/2020/03/23/coronacrise-governo-promove-pandemia-social/.

The New York Times. 2020. https://www.nytimes.com/2020/03/23/opinion/covid-domestic-violence.html.

Bartholo, Letícia, Luana Passos, e Natália Fontoura. 2017. “Bolsa Família, Autonomia Feminina e Equidade de Gênero: o que indicam as pesquisas nacionais?” IPEA.

Carta Capital. 2020. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/governo-corta-bolsa-familia-de-158-mil-familias-em-meio-a-crise-do-coronavirus/.

G1. 2020. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/23/casos-de-violencia-domestica-no-rj-crescem-50percent-durante-confinamento.ghtml.

NPR/PBS NewsHour/Marist Poll. 2020. http://maristpoll.marist.edu/npr-pbs-newshour-marist-poll-results-coronavirus/#sthash.QbxnINIq.dpbs.

Ana Luíza Matos de Oliveira é economista (UFMG), mestra e doutora em Desenvolvimento Econômico (Unicamp), integrante do GT sobre Reforma Trabalhista IE/Cesit/Unicamp e integra o Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo

Luiza Nassif Pires é pesquisadora no Levy Economics Institute

Lygia Sabbag Fares é professora de Economia na Escola Superior de Administração e Gestão (STRONG ESAGS - FGV), doutora em Economia do Desenvolvimento - Economia do Trabalho - Unicamp. Organizadora do grupo de trabalho sobre gênero da Young Scholars Initiative (YSI) - Institute for New Economic Thinking (INET)

Gustavo Veira da Silva é psicólogo e doutorando em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)