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O cenário de pandemia reforça a necessidade de aprimoramento do pacto federativo. Os municípios assumem a maior parte das responsabilidades na garantia de serviços essenciais à população, enquanto o governo federal vem adotando uma postura na contramão do que seria seu papel

A prefeitura de Franco da Rocha (SP) ergueu, em dez dias, um centro de atendimento para pacientes com coronavírus. Foto: ABM

Os governos municipais e estaduais têm, claramente, assumido a dianteira no combate ao novo coronavírus.

As prefeituras no Brasil viviam, desde a recessão dos anos 2015 e 2016, dificuldades muito grandes. Não houve a recuperação da arrecadação nos anos seguintes, realidade que foi agravada pelo aumento da busca por serviços públicos pela sociedade, com destaque para educação, saúde e assistência social, em função da crise econômica, do desemprego e da pauperização da população. Some-se a isso o fato de que o governo federal deixou de repassar, em 2019 e 2020, recursos essenciais para a assistência social.

A Emenda Constitucional (EC) 95 complicou ainda mais a situação dos serviços municipais, limitando os recursos da União para políticas públicas essenciais em um momento em que as perspectivas já não eram alvissareiras, seja do ponto de vista dos repasses do governo federal, ou da arrecadação própria, seja pela possibilidade iminente de ampliação da demanda por serviços públicos em decorrência dos impactos causados pelas reformas trabalhista e previdenciária, que, ao deixar a população com menos recursos e maior carência, tendem a aumentar a procura por serviços nas cidades, uma vez que é nas prefeituras que a população, pela proximidade, procura auxílio e apoio.

O governo federal vinha mantendo uma postura omissa, de maneira a não enfrentar o problema, acenando com a desvinculação do orçamento relativo à educação e à saúde, cuja obrigação constitucional atinge União, estados e municípios com investimentos mínimos – no caso dos municípios de, no mínimo, 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) com saúde e 25% da RCL na educação; nos estados, os mínimos são 12% para saúde e 25% para educação, enquanto para a União os percentuais eram 10% e 18% respectivamente, congelados desde 2017 pela EC 95 ao limite dos gastos daquele ano (2017), corrigidos pela inflação.

O ministro Paulo Guedes anunciou a desvinculação geral dos orçamentos públicos, seguindo sua cartilha ultraliberal, mas recuou frente às reações da sociedade e de prefeitos, enviando ao Congresso proposta de manter a vinculação geral, sem discriminação entre saúde e educação. No caso dos municípios, essa iniciativa não alivia os desafios enfrentados, e ainda pode piorar, na medida em que os estados e a União deixem de investir, por exemplo, em saúde. A realidade da maioria dos municípios é investir muito mais que o mínimo constitucional, principalmente na saúde, em que a destinação média é de 20% da RCL, chegando a 30% e até 40% em alguns casos.

Assim, a pandemia pressiona ainda mais as prefeituras, que são convocadas a agir, mesmo enfrentando essas dificuldades. Frente ao chamado da Organização Mundial da Saúde (OMS) e à descoordenação do governo federal, cujo mandatário desconhece as orientações dos órgãos oficiais mundiais, dos técnicos do próprio governo e troca o ministro da Saúde em pleno período de crescimento da contaminação pela covid-19, coube a estados e municípios assumirem a liderança nas ações de combate ao novo coronavírus.

Prefeitos e prefeitas, pressionados pela situação vivida nas cidades ou situações anunciadas frente à experiência de outros países, passaram a assumir ações e determinações por vezes duras e, geralmente, custosas para os cofres públicos e para sua popularidade perante alguns setores da sociedade.

Some-se a essa situação a queda prevista das receitas municipais com a anunciada recessão nesse ano e, provavelmente, com reflexos em 2021. A queda do PIB nacional para além dos 5%, como vem sendo ventilado, somada ao aumento da demanda por serviços formam a tempestade perfeita na vida das prefeituras.

Para enfrentar essa conjuntura difícil, muitos municípios brasileiros estão gerando experiências que são referência no combate à pandemia da covid-19. Seguindo orientações da OMS, em colaboração com os governos estaduais, e atentos às suas realidades locais, as prefeituras têm elaborado e implementado ações para achatar a curva de contágio, promovendo o isolamento social; ampliar as condições de atendimento no sistema de saúde; garantir a segurança alimentar da população, em especial dos setores mais vulneráveis; e criar mecanismos de fazer frente à crise econômica, principalmente para micro e pequenas empresas.

Os municípios, entes mais próximos da população e onde as demandas populares chegam primeiro, têm agido em quatro frentes.

1.Ações para favorecer o isolamento das pessoas, evitar aglomerações e, dessa forma, conter a propagação mais rápida do vírus e o consequente colapso das estruturas da saúde. Foram regulamentações como a proibição de abertura do comércio não essencial, delimitação do horário de funcionamento dos bancos e atendimento diferenciado para idosos e idosas, fechamento das escolas e reorganização do calendário letivo.

2.Construção de estruturas de saúde para dar conta dos casos atuais e futuros. Um dos principais desafios no combate à covid-19 é justamente a preparação do sistema de saúde para atender a demanda, que aumenta exponencialmente quando o contágio atinge seu pico, conforme mostra a experiência de diferentes países pelo mundo. Esse pico leva à superlotação dos hospitais, esgotamento dos leitos, e ao consequente estrangulamento dos sistemas de saúde, geralmente despreparados para atender demanda tão aguda.

Várias prefeituras ampliaram e equiparam estruturas de saúde existentes, como o caso da prefeitura de São Leopoldo (RS), que tomou a iniciativa de adaptar o único hospital público da cidade – o Hospital Centenário – para o tratamento dos e das doentes de covid-19. Ele foi um dos quarenta hospitais selecionados pelo Sírio-Libanês, de São Paulo, para o Projeto Lean nas Emergências, cujo objetivo é reduzir a superlotação dos serviços de urgência e emergência de hospitais públicos e filantrópicos.

A prefeitura de Franco da Rocha (SP) ergueu, em dez dias, um centro de atendimento para pacientes com coronavírus. O espaço foi inaugurado no início de abril, vai funcionar 24 horas por dia e conta com cerca de setenta profissionais de saúde. São medidas que visam preparar as cidades para o futuro pico da pandemia.

3.Ações de garantia da segurança alimentar com foco na população mais vulnerável, com compras de alimentos da agricultura familiar, distribuição de cestas básicas – em alguns casos com os alimentos da merenda escolar, como em Serra Talhada (PE), criação ou ampliação de programas de transferência de renda e apoio às pessoas que dependem do trabalho informal, como Maricá (RJ), que aumentou os recursos destinados ao seu próprio programa e criou novo sistema de transferência de renda.

Esse eixo de atuação das prefeituras tem sido fundamental frente ao abandono dessa população e às dificuldades em acessar os recursos disponibilizados pelo governo federal, como o auxílio de R$ 600,00 aprovado no Congresso, graças à ação das bancadas de oposição.

4.Ações de apoio às empresas, com destaque para pequenas e médias. Muitas prefeituras buscaram mecanismos de apoio às empresas da cidade, dentro dos limites da capacidade financeira e jurídica. Foram ações desde ampliação do prazo ou isenção temporária para pagamento de impostos e taxas municipais, como o Imposto Sobre Serviço (ISS) e o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), como fez Lauro de Freitas (BA), a empréstimos, como a prefeitura de Maricá (RJ), que disponibilizou R$ 20 milhões para suporte financeiro de até R$ 50 mil para empresas do município.

Assim, o cenário de pandemia reforça uma realidade já consolidada no Brasil: a necessidade de aprimoramento do pacto federativo. Está cada vez mais evidente que os municípios assumem a maior parcela das responsabilidades na garantia de serviços essenciais à população, enquanto o governo federal vem adotando uma postura não apenas omissa, mas, pior, na contramão do que seria o seu papel, de oferecer suporte às prefeituras, tanto financeiro quanto técnico. Enquanto as prefeituras não forem vistas como força motriz das políticas públicas, o Brasil seguirá amargando maus resultados em seus projetos e empreitadas no âmbito nacional.

Eduardo Tadeu Pereira é professor visitante na Unifesp, campus Osasco, e coordenador técnico do Projeto Parceria pelo Desenvolvimento Sustentável, da Associação Brasileira de Municípios (ABM), com financiamento da União Europeia