Sociedade

Num Estado democrático a figura do mito é algo anacrônico e contrário aos valores e princípios que constituem as sociedades contemporâneas. A democracia se sustenta na participação efetiva de milhões de pessoas anônimas

Não podemos permitir que a amnésia coletiva torne-se comum no cotidiano histórico da sociedade. Foto: Arquivo/ABr

No intuito de refletir sobre a conjuntura atual que modificou as relações sociais a partir do desenvolvimento das redes digitais e a facilidade de disseminação das informações, vivemos um paradoxo: de um lado temos os equipamentos e a tecnologia capazes de conectar em tempo real as pessoas e, de outro, a falta de controle quanto à veracidade das informações disponíveis.

Com intenção de estabelecer uma ligação possível, faz-se necessário compreender que a evolução e a transformação experimentadas pela humanidade nas últimas décadas tendem a aumentar e se consolidar cada vez mais.

Nessa perspectiva, de acordo com Bauman (2001) vivemos a era da modernidade líquida. Isso significa dizer que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos, logo, não há estabilidade ou mesmo segurança.

É nesse mundo fugidio e sem controle no qual nos encontramos que entra na arena social um novo elemento: a pandemia global do coronavírus (covid-19). Fomos surpreendidos por algo novo e diferente e essa mudança desconstruiu nossos referenciais, crenças, modelos e valores.

A realidade apresentada por Bauman (2012) fez emergir algumas questões estruturais que necessitam ser conhecidas, pois podem auxiliar na compreensão da problemática que ora se apresenta.

O autor relata que as mudanças experimentadas na sociedade podem estar associadas ao fenômeno apontado por Castells (1999) ao considerar que as últimas décadas trouxeram consigo, também, além de avanços comportamentais e sociais, as evoluções tecnológicas.

Essas mudanças se tornaram instrumentos fundamentais à contemporaneidade, haja vista que as redes sociais permitem interação imediata entre diferentes conteúdos, assuntos, informações, sem a exigência de utilização de espaços físicos.

É nesse novo mundo de conectividade, informações, dados, bytes, que a sociedade busca um caminho para a explicação de fenômenos da realidade. Pode-se dizer que muitas explicações racionais não foram capazes de fornecer respostas a essas inquietações.

Historicamente, em momentos de crise a sociedade buscou soluções personalizadas e identificáveis na figura de alguém que se apresentava como alternativa para a solução do problema: surge a figura do herói.

Diante dessa constatação, o presente trabalho visa, a partir da construção coletiva da civilização grega, refletir sobre a realidade social e política contemporâneas.

À primeira vista pode parecer ultrapassada a tentativa de compreender a realidade atual por meio de uma concepção de mundo desenvolvida há mais de 2 mil anos.

Optou-se por essa proposta ao considerar a constituição da sociedade moderna cuja origem encontra-se na civilização greco-romana. Por isso, constata-se que ao longo da história humana na Antiguidade, o homem ansiou permanecer presente através de seus atos e ações na vida da polis1 mesmo após sua morte.

Esse desejo de perpetuar-se no mundo, isto é, fazer-se lembrado, é um dos anseios primordiais para fugir ao esquecimento, construir sua própria história e inscrever-se na imortalidade do tempo com seus feitos sendo narrados por diferentes gerações na oralidade das festividades e rituais sagrados.

No desejo de compreender a ideia de arquétipo primordial2 deve-se levar em consideração a necessidade de construção de uma nova realidade que se exprime na cidade e instaura uma ordem cosmológica à semelhança do que acontece no cosmos.

Esse era o pensamento no qual memória, esquecimento, trabalhos, punição e redenção, violência, desafio à ordem vigente são elementos essenciais que nortearão a vida dos heróis míticos da Grécia Antiga3.

Dentre esses o mais famoso foi Héracles. Semideus grego, Héracles4 foi o maior dos heróis por ter realizado os doze trabalhos que consistiam em tarefas consideradas impossíveis para qualquer mortal realizar.

Ao cumprir com êxito todos os trabalhos, ele foi o único herói que alcançou a imortalidade junto aos deuses olímpicos. Essa imortalidade realizou-se por suas ações, seus feitos, isto é, o pleno cumprimento das tarefas impostas.

O mérito de Héracles consiste justamente em ir além das adversidades e de superar aquilo que parecia impossível realizar.

Não houve intervenção divina em suas ações, ao contrário, enfrentou a ira de deuses e deusas para cumprir os trabalhos.

O mito de Héracles celebra a vitória do labor humano sobre as adversidades e provações, festeja a engenhosidade, força, determinação e persistência. Algo tão humano e efêmero.

Esse era entendimento daquela época. A valorização do ser humano como sujeito de grandes feitos e capaz de grandes gestos comparáveis à própria divindade.

Este, assim como os demais mitos, carrega em seu cerne a construção social como principal elemento de sua constituição.

Os mitos adquirem sua importância porque, diante de anseios por respostas acerca da existência humana e suas relações com o mundo, estabelecem a partir da figura do herói uma possibilidade material de solução de determinada demanda.

No mundo grego a mitologia explicava os fenômenos naturais e sociais. Tudo refletia a harmonia existente no cosmos.

Havia uma ligação intrínseca entre todos os fenômenos e situações da vida diária. Não apenas considerando o indivíduo, mas a coletividade na qual ele estava inserido.

A vida estava subordinada aos desígnios dos deuses. A vontade divina orientava o funcionamento tanto da natureza quanto da vida humana e suas relações. O homem era mero servo desse poder sobrenatural e restava-lhe apenas se conformar e aceitar a fatalidade de seu destino. Até mesmo os heróis estavam destinados a seguir a vontade dos deuses. Os heróis em diversas situações desafiavam o determinismo divino, sendo muitas vezes punidos ou ameaçados por suas escolhas.

A conclusão da tarefa realizada explicitava o caráter de submissão ou de desafio frente à determinação divina, o que na maioria das vezes provocava a ira dos deuses e trazia para o herói grande sofrimento.

Interessante notar que a comunidade aguardava ansiosa pelo retorno do herói, pois isso significava que ele obteve sucesso e os problemas foram solucionados.

O retorno era o apogeu no qual a situação fora vencida por uma pessoa escolhida que era responsável por muitas vidas e histórias.

Por isso a vida dos heróis foi marcada por grandes vitórias, perigos e tragédias. As comunidades daquela época permaneciam acomodadas e confiantes em seus escolhidos (heróis), como instrumentos de solução fácil dos problemas e demandas.

Mesmo com proximidade e similaridade em muitos aspectos, o herói da Antiguidade é muito diferente do herói/mito presente em nossos dias.

No século 21 as batalhas são realizadas no universo digital, a disseminação de informações contribui para uma falsa percepção de segurança e conhecimento, além de permitir a construção de um ideal de herói/mito associado a alguém fora do sistema que visa corrigir ou mesmo abolir sua existência perniciosa.

O que significa estar fora do sistema?

Na situação apresentada significa estar fora da política, não acreditar nas contribuições da ciência, estabelecer pseudoinimigos e por fim utilizar a narrativa que a novidade somente será possível se todo o sistema for destruído e implementado um novo em seu lugar.

Face ao exposto, pode-se pensar numa ligação entre mito do herói, memória coletiva e realidade atual.

Dúvidas ou questionamentos podem surgir, pois, à primeira vista, parece algo difícil de compreender e mais ainda sem qualquer ligação.

Mesmo num cenário adverso ou de desconfiança existe possibilidade de estabelecer conexões.

Iniciemos a reflexão com a percepção de que existe um elo estabelecido a partir do caráter social e coletivo da memória, uma vez que o mito externa uma realidade comum aos diferentes sujeitos.

Pode-se dizer que a memória é um ativo social, ainda que seja manifestação diferente em cada indivíduo, há um elemento que permite uma ligação entre sujeitos.

Assim, a consciência jamais está encerrada em si mesma, não é vazia nem solitária. Somos arrastados em inúmeras direções, como se a lembrança fosse uma baliza que permitisse nos situarmos em meio da variação constante dos contextos sociais e da experiência coletiva histórica. Isso talvez explique por que razão, nos períodos de calma ou de momentânea imutabilidade das “estruturas” sociais, a lembrança coletiva tem menos importância do que em períodos de tensão ou de crise – e aí, às vezes se torna “mito”. (HALBWACHS, 2006, p. 13)

Ao falar de memória o autor estabelece uma importante conceituação na qual a construção para esse termo é coletiva e social, em detrimento de percepção singular que muitas vezes parece indicar certa individuação e ser apenas pertinente a determinado sujeito.

Segundo Halbwachs (2006, p. 69), “diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes”.

Como observado, as lembranças, conteúdo da memória, podem ser evocadas porque o indivíduo faz uso da consciência que atualiza essa lembrança e possibilita que ele reinterprete o fato ocorrido no passado, dando-lhe nova significação, mas sempre a partir de sua vivência social.

Não é possível realizar essa busca sem a inserção na coletividade. Ao realizar esse processo, o sujeito utiliza a intuição sensível que acontece no momento presente e se liga aos eventos e fatos exteriores.

Halbwachs (2006, p. 57) lembra que:

Embora as causas que determinam a recordação dessas lembranças não dependem ou dependem apenas imperfeitamente de nós, isso não acontece porque sejam inconscientes, mas porque em parte são exteriores a nós e sobre cada uma delas exercemos apenas uma influência muito pequena.

Outra autora que também analisa a memória a partir dos fatos sociais é Santos (2012), e ela irá discutir também o que chamou de amnésia coletiva, que é exatamente o rompimento com a tradição e com o passado através das novas tecnologias de disseminação da informação de maneira cada vez mais rápida, o que contribui para o estabelecimento de um tempo no qual não haveria mais vinculação entre as experiências humanas.

Pensar a memória como arcabouço no qual o aprendizado é retido perde seu sentido num mundo cada vez mais globalizado, tecnológico e rápido, onde as mudanças ocorrem com tamanha velocidade que a impressão é que acontecem em tempo real.

O tempo, nessa perspectiva, seria independente e regulador das ações humanas, que estariam subordinadas ao ciclo de mobilidade.

Outro fator que contribui para a amnésia coletiva é que os documentos, artefatos e a própria escrita que em alguma medida preservam o passado, o fazem, mas não em sua totalidade. Há uma limitação que “reproduz apenas parte do que foi vivenciado anteriormente”. (SANTOS, 2012, p. 23)

Não seria temerário afirmar que o binômio memória/esquecimento encontra-se em permanente confronto na tentativa de elucidar o caminho adequado para a constituição de um mundo no qual a inserção dos indivíduos aconteça de acordo com a liberdade tutelada por um sistema externo ao sujeito que defina as condições nas quais a realização individual possa ocorrer.

Nessa direção, um período histórico da vida brasileira que se prestará à nossa reflexão está ligado aos anos posteriores ao golpe civil militar de 1964, que instaurou no Brasil um momento novo com forte intervenção do Estado na vida das pessoas, afetando diretamente os costumes, as práticas, as ações e os relacionamentos sociais como um todo.

Sob o argumento de segurança nacional que deveria combater os inimigos do regime, contra os quais todos os esforços deveriam convergir, instaura-se no país forte aparato repressivo.

Esse regime fará uso da informação como principal instrumento contra aqueles considerados subversivos. Instaura-se uma grande rede nacional de comunicação, que terá como principal ação a vigilância permanente de todos os cidadãos.

No intuito de contar com a colaboração das pessoas e para angariar simpatia e adesão, propagandas são elaboradas e veiculadas solicitando apoio da população para evitar ações e atividades que permitissem a produção, distribuição de materiais considerados ofensivos e subversivos sob a ótica do regime.

Outro elemento fundamental foi a proibição de quaisquer manifestações públicas contrárias ao governo. Esse pensamento de controle social atingiu todas as esferas da vida pública do país, principalmente as universidades.

Diante de tamanho aparato repressor, não seria temerário afirmar que foi criada uma teia informacional através de agências, departamentos, escritórios que tinham a missão exclusiva de vigiar e observar tudo e todos diuturnamente a fim de garantir o controle social.

O sistema repressor utilizou-se dos mecanismos do Judiciário para conferir legalidade às suas ações e projetos. O Judiciário foi um forte braço do governo, pois dava a ele, regime, status de legalidade e transparência em suas ações repressoras.

Há uma transferência no imaginário coletivo, pois o regime passa a ocupar o lugar do herói que deve garantir a ordem, a segurança.

Naquela época esse foi o destinatário da confiança social. As pessoas acreditavam estar combatendo o mal.

Após apresentar um breve momento da história do país, outro momento necessita de um olhar por também fornecer elementos para a explicação do termo herói.

O período histórico recente se refere às eleições de 2018 no país, pois houve uma personificação mista entre herói e salvador da pátria, nos moldes do período de ditadura militar, que ganha evidência na pessoa do candidato de extrema-direita que saiu vencedor do processo eleitoral.

Muitas pessoas em nossos dias saem às ruas e pedem a volta daquele período, numa crença de que esse seja o caminho para apaziguar a sociedade, contudo se esquecem de mencionar qual o custo exigido e efetivado pelo regime ditatorial no Brasil.

Por isso mesmo é fundamental garantir que não se percam no esquecimento esses fatos históricos.

É preciso não permitir que a amnésia coletiva ou o esquecimento tornem-se comuns no cotidiano histórico da sociedade.

Um exemplo real do que pode acontecer está evidenciado no conflito institucional no qual estamos imersos. Não há perspectiva fácil no horizonte.

Recordar é algo inerente a todo ser humano, por isso mesmo a narrativa daquele período histórico encontra-se em permanente discussão pois, de um lado, familiares e sobreviventes do golpe militar de 1964 mantêm a lembrança permanente num trabalho hercúleo para manutenção da memória, e de outro, o aparato repressor visa o esquecimento rumo ao silêncio.

Nesse caso, o silêncio é a pior atitude, pois leva à omissão e ao conformismo.

Percebe-se assim o paradoxo entre a ideia de um mito (herói) para esse momento da vida política do Brasil porque, guardadas as devidas proporções, não haverá solução fácil que se origine das mãos de uma única pessoa.

O regime democrático exige a participação de todos no processo. Basta verificar a etimologia da palavra democracia para compreender que não existem heróis ou mitos.

Será preciso considerar que num Estado democrático a figura do herói/mito é algo anacrônico e contrário aos valores e princípios que constituem as sociedades contemporâneas.

Não podemos nos esquecer do nosso compromisso com a verdade e transparência, ainda que muitos não desejem a mitigação desse período da história brasileira.

Por isso mesmo, ao final do presente trabalho, não poderia me omitir em respeito à memória de todos que se sacrificaram e se levantaram contra o regime.

Nessa direção é mister resgatar a memória de tantas pessoas que perderam a vida, foram torturadas, presas.

Essa será uma tarefa fundamental para que a história não seja apagada e caia no esquecimento institucional.

É necessário lembrar que democracia não se vincula a heróis ou mitos, mas se sustenta na participação efetiva de milhões de pessoas anônimas que contribuem diariamente para a construção da sociedade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

________. Ensaios Sobre o Conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012,

  1. 83-154.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, 12. ed. Petrópolis: Editora Vozes,v. III,2002,p. 89-147.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. São Paulo: Paz e Terra, v. 3, 1999, p. 411-439.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória Coletiva e Teoria Social, 2.ed. São Paulo: Annablume, 2012.

Azilton Ferreira Viana é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) da UFMG, pesquisador e militante de Direitos Humanos, em especial na temática LGBT