Estamos chegando na metade do ano de 2020 e pela primeira vez em décadas vivemos uma situação de pandemia. Até o momento da produção deste artigo, o mundo registra mais de 6,1 milhões de casos de infectados pelo novo coronavírus, com 371.700 mortes. O Brasil responde por 514.992 desses casos, com 29.341 óbitos. Quando você estiver lendo este artigo, esse número infelizmente estará desatualizado e outras mortes e novos casos terão ocorrido.
Se levarmos em conta a subnotificação, tendo em vista um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que apontou aumento de dez vezes no número de internações por síndromes respiratórias no Brasil em 2020, o excesso de mortalidade por causas naturais e a falta de testagem da população, é bem provável que o número real de casos e mortos no país pelo coronavírus seja muito maior. Em graus distintos, a subnotificação também é uma realidade em muitos outros lugares do mundo.
Esses dados são relevantes para termos a compreensão de como a covid-19 tem sido devastadora e carrega, além de uma onda de mortes, uma espiral que devasta a economia e provoca um novo ciclo de crise que tem potencial para superar a debacle econômica de 2008, causada pelo mercado especulativo imobiliário estadunidense.
No entanto, é necessário destacar que muito antes de termos conhecimento do surgimento do novo coronavírus, na província chinesa de Wuhan, as condições de propagação da covid-19 estavam favorecidas por um modelo de produção baseado na devastação ambiental que fornece gradualmente um estado de degradação ideal para o desenvolvimento de doenças, vírus e enfermidades que podem adquirir caráter pandêmico, como ocorreu dessa vez.
A pandemia é uma manifestação clara do tipo de relação predatória de que os modelos econômicos implementados pela humanidade, calcados na exploração irresponsável dos recursos naturais, são inviáveis. A abordagem dos impactos da pandemia sobre o meio ambiente deve levar em conta duas variáveis de análise, como uma espécie de via de mão dupla.
A primeira é que, curiosamente, a propagação do novo coronavírus trouxe algumas consequências positivas para o meio ambiente, em função da quarentena que deixou grande parte das populações mundiais dentro de suas casas. A suspensão da maioria das atividades industriais reduziu drasticamente os níveis de poluição. Imagens de satélite revelaram uma queda nos níveis globais de dióxido de nitrogênio devido à reduzida circulação de veículos consequente das restrições de mobilidade nas grandes cidades.
Desde 2008, no auge da crise global, pela primeira vez houve redução também nas emissões de dióxido de carbono. Animais puderam circular com mais liberdade em seus hábitats e correram menos riscos da ação humana. Em muitos lugares, observaram-se águas menos poluídas. É bem provável que as emissões contribuintes ao aquecimento global sejam refreadas em 2020.
Diante dessas evidências, muitos estão debatendo o surgimento de um “novo normal” quando a covid-19 arrefecer e a vida começar a retomar a rotina anterior à pandemia, com o fluxo diário de circulação. Nesse “novo normal”, o planeta estaria mais seguro por conta de uma rede de solidariedade e as pessoas dispostas a viver um novo ciclo de consumo, menos predatório e mais consciente. Penso ser cedo para dizer se de fato teremos sociedades mais capazes de refletir acerca da urgência de um mundo organizado em modelos de produção economicamente eficientes e que consigam equilibrar seus mecanismos de acordo com o que a natureza consegue nos oferecer.
Em meio a milhares de mortos, é urgente que líderes mundiais da política e empresariais, cientistas, economistas, gestores públicos e o mundo da cultura e das artes se debrucem, cada qual em seu campo e trocando informações e conhecimentos, sobre como vamos assentar uma nova filosofia de vida que emergirá diante dos escombros causados pelo vírus.
É nessa lógica que abordamos a segunda variável de análise sobre os impactos da pandemia sobre o meio ambiente. Retomando a argumentação do início deste artigo, construímos a nossa vida tomando como referência um modelo de consumo que considera como inesgotáveis os recursos naturais.
Assim como levantamos indicadores positivos de recuperação episódica de paisagens e ambientes naturais durante os processos forçados de quarentena de bilhões de pessoas, mostrando os efeitos deletérios causados por um conceito de progresso calcado na exploração desmedida do meio ambiente, podemos considerar que a covid-19 conseguiu se propagar tão rapidamente justamente devido a um modelo disfuncional, que explora riquezas, gera concentração de renda e bolsões de extrema pobreza. É um círculo vicioso, explicado da seguinte maneira: um modelo insustentável de produção e consumo cria miséria e afeta as populações, biomas e ecossistemas, o que favorece o aparecimento de doenças e vírus em escala global; instalada a pandemia, as pessoas precisam recuar forçadamente, o que leva à melhoria pontual de alguns índices ambientais, muito longe de compensar a destruição acelerada todos os anos.
Hoje, estamos exatamente nesse ponto. Diante da maior crise sanitária do século 21, que atingiu os seis continentes e ainda não tem prazo para acabar, precisamos estabelecer consensos entre todos os setores da sociedade sobre o que faremos quando voltarmos à normalidade. Se voltaremos ao modo de vida anterior à pandemia, precisamos estar conscientes de que seguiremos convivendo com vírus e enfermidades devastadores. A propósito, isso já está ocorrendo. Em paralelo à luta contra a covid-19, a Organização Mundial da Saúde anunciou a descoberta de um surto de ebola na República Democrática do Congo, localizada no centro da África. Epidemiologistas apontam que o ebola é um vírus com letalidade muito superior ao novo coronavírus. Precisamos nos questionar se vale a pena manter tudo como está e correr o risco de convivermos com pandemias concomitantes, com potenciais cada vez maiores de dizimar parcelas da população mundial.
Para enfrentar esse cenário sombrio que se apresenta, precisamos produzir reflexões e entendimentos da realidade sobre o que representa encarar o desafio de criarmos novos padrões de interação com o meio ambiente, novas relações de consumo e um novo marco de desenvolvimento que incorpore a agenda da crise climática e a desigualdade estrutural, tanto em sentido nacional como transnacional.
Um ponto fundamental na compreensão da realidade e da tentativa de criar um pensamento alternativo ao modelo dominante que valoriza a reprodução da riqueza concentrada e a remuneração do capital acima da relação harmoniosa entre o ser humano e o meio ambiente é entender que pandemias, não somente a atual, mas as anteriores e as próximas que venham a surgir, afetam muito mais aqueles que já são vulneráveis. Os indicadores demonstram que a covid-19 mata mais os grupos mais vulneráveis, excluídos do modelo atual de desenvolvimento. O professor Boaventura de Sousa Santos publicou um livro virtual, cuja leitura recomendo, intitulado A Cruel Pedagogia do Vírus, no qual aponta essa preocupação.
Quando as primeiras pessoas foram contaminadas pelo coronavírus no Brasil, muitos cidadãos de classe alta que estiveram nos primeiros epicentros da pandemia no mundo, em especial Itália e Espanha, disseram que se tratava de uma doença universal, que não escolhia alvos. Essa é uma meia-verdade. É fato que, no início, a covid-19, em especial nos países do hemisfério Sul, afetou principalmente pessoas com renda alta que podem fazer viagens turísticas ou a negócios pelos principais destinos mundiais. Não podemos desconsiderar, contudo, a vulnerabilidade muito maior das populações pobres das periferias das cidades e do campo, em especial povos e comunidades tradicionais e a população negra.
É o que ocorre, por exemplo, nas favelas brasileiras e nas comunidades mais afastadas, com menos condições de acesso à saúde e carentes de redes de saneamento básico e descarte adequado de lixo, e, no caso específico da covid, maior dificuldade de obter máscaras e álcool em gel. Até o fim de maio, bairros com favelas e cortiços tinham dez vezes mais óbitos que os da região do chamado centro expandido de São Paulo. Além disso, é nessas áreas periféricas que se concentra a maior parte dos casos subnotificados, muitas vezes por falta de atendimento médico adequado e diagnósticos precisos.
Encarar esse desafio vai além de conscientização e educação da população. É uma tarefa que requer políticas públicas e investimentos massivos na garantia de saneamento básico e equipamentos de cultura e lazer para as pessoas. Espaços de convivência entre a comunidade e o meio ambiente são destruídos, frequentemente, para dar espaço à especulação imobiliária. É o “progresso”, que na prática serve para dar lucro a poucos e colocar muitos outros em uma quarentena eterna, um confinamento sem serviços públicos, água potável e sem o direito a comer e dar conta das necessidades básicas do ser humano em condições mínimas. Relações que são anteriores à pandemia, mas que ajudam a fortalecer as dinâmicas de propagação do vírus.
Outra missão importante para os que pretendem transformar a sociedade, inclusive o campo progressista que encampa bandeiras consideradas à esquerda, é compreender a interseccionalidade entre meio ambiente e as demais questões nacionais. Quando atuamos com firmeza na defesa dos povos indígenas e quilombolas, sobretudo pelo seu direito histórico às terras e ao seu modo de preservação da natureza, estamos defendendo também o direito de todos os brasileiros ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, princípio consagrado na Constituição de 1988.
Quando nos engajamos na luta contra os agrotóxicos, não se trata de uma batalha contra a agricultura, setor importantíssimo para o Produto Interno Bruto (PIB) e a geração de empregos no país. É um alerta para um sistema que desconsidera opções factíveis de produção sustentável e move uma máquina bilionária de produtos nocivos à saúde humana, que quando consumidos podem causar doenças fatais como câncer. Doenças que, em determinadas condições, podem significar comorbidades e ampliar o grupo de risco em uma pandemia, como ocorreu em tantos óbitos em decorrência da covid-19. Portanto, falar da conexão entre a pandemia e o meio ambiente relaciona-se com fatos e condições anteriores e concomitantes ao cenário atual, e que provavelmente subsistirão após superarmos essa situação terrível.
Apesar de um cenário complexo e por vezes desalentador, em meio ao caos é possível observar fachos de esperança. A pandemia e a recomendação de isolamento social fizeram com que muita gente estivesse atenta aos desmandos do governo Bolsonaro e seus aliados.
A mobilização social para barrar a Medida Provisória (MP) no 910 e depois o Projeto no2.633/2020, que visavam institucionalizar a prática da grilagem com mais concentração de terras e riquezas, sob o falso manto da proteção a pequenos agricultores, reuniu personalidades de várias áreas em um movimento muito bacana, que transcendeu a arena parlamentar e levou o debate a segmentos que nunca tinham ouvido nada sobre tais temas. A recente onda de indignação em torno das declarações do ministro Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril, revelando sua faceta de operador de interesses privados contrários ao meio ambiente, em óbvia deturpação de sua missão como agente público, aponta uma centelha de luta maior que aquelas protagonizadas por movimentos e entidades ambientalistas.
Parafraseando Antonio Gramsci, penso que é momento de agir com o otimismo da vontade diante do pessimismo da razão. Para milhões, talvez bilhões de pessoas no planeta, ficou evidente que a culpa pelo surgimento da covid-19 não é apenas dos mercados ilegais de espécies selvagens da China, onde se especula que o primeiro foco do novo coronavírus tenha sido instalado (em que pese o fato de este ser um grave problema a ser abordado pelos países asiáticos e em outros cantos do planeta, remontando a tradições culturais com as quais devemos dialogar). Há uma cadeia de eventos que potencializaram sua expansão, como tentei apresentar aqui neste artigo. Estou convicto de que a batalha por um mundo mais justo, sustentável e harmônico terá um novo capítulo importante depois que vencermos a pandemia.
Nilto Tatto é deputado federal (PT-SP) e coordenador do Setorial Nacional de Meio Ambiente do Partido dos Trabalhadores