Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o estado de pandemia do novo coronavírus. Nas semanas seguintes, face ao quadro de calamidade dos países europeus, com hospitais lotados e filas de caminhões transportando os corpos da covid-19, tivemos uma ideia do que enfrentaríamos com a chegada da pandemia na América Latina. Em 30 de abril, o número oficial de mortos na região ultrapassou a casa dos 10 mil; em 31 de maio, saltou para mais de 50 mil. Àquela altura, a taxa de transmissão e o número de mortes diárias na América Latina eram superiores aos da Europa e dos Estados Unidos. Segundo a OMS, desde então nos tornamos o epicentro da covid-19.
Uma enorme distância nos separa dos países capitalistas centrais. A Europa reconstruiu o seu sistema de saúde pública depois da Segunda Guerra, com ajuda financeira dos EUA, num contexto de disputa pela hegemonia mundial. Nem as políticas de privatização dos anos 1990 nem o austericídio que se seguiu nas décadas posteriores foram capazes de eliminar essa importante conquista social, que se firmou como um dos pilares da reconstrução europeia. O acesso à saúde pública predomina na maior parte daqueles países, inclusive na Inglaterra, berço do liberalismo.
Apesar de os países europeus se encontrarem mais preparados do que nós para enfrentar a pandemia, vimos com perplexidade o coronavírus se alastrar pelo continente antes de nos alcançar. Inicialmente Itália e Espanha, em seguida demais países da Europa Central e Setentrional, França, Alemanha, Inglaterra – as mais fortes economias do velho continente –, foram caindo diante da covid-19. A União Europeia, com seu tradicional figurino ortodoxo e neoliberal, hesitou demasiadamente para apresentar um plano de ajuda aos países mais afetados e não se antecipou aos estragos de uma crise sem similar desde a Segunda Guerra Mundial. É difícil prever o tamanho do ressentimento que isso deixou na Itália, um dos países fundadores da Comunidade Econômica Europeia (1957) e um dos mais afetados pela covid-19.
Na América Latina, nunca tivemos nada que se equiparasse àqueles países em termos de saúde pública. Nossas políticas nessa área, como de resto nas demais áreas sociais, se caracterizam pela carência de recursos financeiros, descontinuidade das ações administrativas e falta de prioridade política por parte dos governantes. Somos muito menos equipados em número de hospitais especializados, unidades intensivas, recursos humanos e financeiros para enfrentar a pandemia. Entre outras razões, isso se deve ao fato de que as classes dominantes latino-americanas sempre se insurgiram contra as tentativas de construção de um estado de bem-estar social nos moldes dos países desenvolvidos. Na ótica dessa gente gananciosa, a reprodução da força de trabalho prescinde dos cuidados com a saúde e a educação da população.
No século passado, as oligarquias se opuseram com unhas e dentes a todos os governos que ousaram imprimir, através de reformas estruturais, um conteúdo social ao desenvolvimento econômico. Neste século, as mesmas elites reacionárias se voltaram contra os governos progressistas que tentaram resgatar, em outro contexto histórico, aquela tradição democrática, nacional e popular, garantindo direitos à saúde e à educação pública de qualidade para todos.
Com a volta do neoliberalismo e a descontinuidade dos experimentos progressistas, a chegada da pandemia na América Latina nos encontra desarmados para enfrentar a covid-19. Entre nós, os desafios epidemiológicos da doença se combinam com os problemas estruturais que caracterizam nossas sociedades, a começar por uma desigualdade social que, além de ser moralmente inaceitável, é altamente prejudicial ao desempenho econômico da região como um todo. Em que pese a redução da pobreza extrema observada nas duas últimas décadas, a América Latina continua sendo a região mais desigual do planeta. Isso explica por que a taxa de mortalidade pela covid-19 por aqui é muito superior nas classes populares, cujas famílias estão morrendo, desamparadas, nas filas dos hospitais, em suas casas ou nas ruas.
Além da pobreza, a raça também constitui um fator de risco na região. Um estudo realizado pela Universidade de Cambridge, em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo, concluiu que as chances de as pessoas negras morrerem em decorrência das complicações da covid-19 no Brasil são 47% maiores que a dos brancos. Por aí se pode ter uma ideia de como o coronavírus está escancarando as desigualdades sociais que existiam antes de sua chegada à região.
O principal grupo de risco nos países ricos são os idosos, sobretudo os que apresentam comorbidades como diabetes, hipertensão etc. A segunda causa de morte na América Latina está associada a fatores étnico-raciais e renda. Por aqui, as principais vítimas da doença são os povos indígenas, os negros e os pobres. Apesar da subnotificação (e imprecisão) dos dados, olhando as imagens terrivelmente chocantes dos sepultamentos coletivos de Manaus ou dos corpos abandonados em Guayaquil, no Equador, se pode ter uma ideia da origem social, étnica e racial da maioria dos mortos por essa tragédia na América Latina.
Desde as primeiras semanas de maio a epidemia está se alastrando num ritmo crescente, superior ao previsto pelos especialistas. A taxa de transmissão da doença já é superior à da Europa e dos Estados Unidos. Brasil, Chile e Peru são os países que mais preocupam; o Equador e a Colômbia também dão sinais de descontrole da transmissão do coronavírus. Ao longo do mês de maio, a aceleração da pandemia no México tornou-se igualmente preocupante. Juntos esses países representam mais de 95% dos casos confirmados de covid-19 na América Latina.
São nulas as possibilidades de países latino-americanos implementarem políticas de cooperação para conter o avanço da pandemia. Os atuais governos de direita e extrema-direita desprezam a unidade latino-americana e há muito abandonaram os tratados de integração regional da Unasul e Celac. O Mercosul sobrevive, cambaleante, destituído de dimensão política e afastado dos temas sociais, condenado à inoperância pelos governos de direita que majoritariamente compõem esse bloco. O desmonte desses organismos não só representa uma ameaça à soberania regional como também desarma os países latino-americanos diante de crises externas, como a da covid-19.
Em 2008, quando fomos atingidos pela crise financeira mundial dos países centrais, os organismos regionais tiveram um importante papel de coordenação das políticas de defesa do emprego e promoção do desenvolvimento, propondo políticas anticíclicas e programas sociais para enfrentá-la. Em face da crise atual, nos ressentimos da cooperação regional para planejar e coordenar ações comuns de saúde pública e combate ao coronavírus. Na ausência desses organismos, também a recuperação econômica no pós-pandemia tende a ser mais prolongada, especialmente se considerarmos a recessão, a perda de postos de trabalho, o empobrecimento da população e o endividamento das empresas,que ficarão no rastro da pandemia.
As respostas desses governos à pandemia têm variado de um país para outro. Grosso modo, podemos agrupá-los segundo: a) o maior ou menor alinhamento com as orientações da OMS; ou b) a orientação política à direita, centro e esquerda dos atuais governantes.
Brasil, Argentina e México, as três maiores economias e populações latino-americanas, são significativos da correlação entre orientações técnicas e ações políticas de seus governantes. Em 31 de março, o Brasil contava 159 mortos pela covid-19, contra 28 do México e 24 da Argentina. O número de mortes no Brasil era cerca de cinco vezes maior do que o dos outros dois países. Em 30 de abril, o Brasil pulou para 5.466, o México para 1.732 e a Argentina, 214. O Brasil seguiu à frente, mas agora com um número de mortos três vezes superior ao México e 25 vezes maior que a Argentina. Em 31 de maio, o Brasil chegou a 28.834 mortos, o México 9.779 e a Argentina 528, ou seja, a diferença com o México se manteve três vezes superior, e coma Argentina saltou para 54 vezes.
No caso desses três países, fica evidente a existência dos nexos entre a posição política, a orientação técnica e o resultado alcançado no combate à pandemia. A Argentina, país governado por uma frente progressista liderada pelo peronismo, tem seguido as recomendações da OMS e apresentado os melhores resultados de contenção da doença. Do lado oposto, tendo à frente um governante de ultradireita, o Brasil tem menosprezado as orientações técnicas e apresentado os piores resultados. O México, que pode ser considerado uma espécie de progressismo tardio, hesitou inicialmente em adotar as recomendações da OMS, e somente voltou atrás quando os casos da covid-19 explodiram.
Obviamente, não se pode extrapolar essa correlação para o conjunto da região. Paraguai e Uruguai, as duas menores economias relativas do Mercosul, são os países do bloco que apresentam o melhor desempenho. O perfil populacional de ambos, diferentemente do que acontece com Brasil, México ou Argentina, conta a favor da contenção da pandemia. Em 31 de maio, o Uruguai tinha 22 mortes pela covid-19, e o Paraguai, 11. Os dois países são governados por partidos de centro-direita. O Uruguai, pelo Partido Nacional (Blanco), e o Paraguai, pelo Partido Colorado. Além do tamanho da população, a evolução política e social de ambos pode tê-los ajudado na forma de enfrentamento do coronavírus.
Por ser um país mediterrâneo, o Paraguai possui uma tradição autárquica que remonta aos anos posteriores à independência. Essa tradição, que levou o escritor Roa Bastos a descrever o seu país como uma “ilha cercada de terra por todos os lados”, pode ter contribuído para manter o isolamento do Paraguai durante a crise do coronavírus. Imediatamente depois de a OMS anunciar o estado de pandemia, e muito antes de o governo do Brasil cogitar fazê-lo, o Paraguai decretou o fechamento de suas fronteiras. Decisão que se revelou fundamental para a contenção do coronavírus e proteção da população paraguaia.
O Uruguai também tem se revelado um caso exemplar. Ao contrário da maioria dos países latino-americanos, o governo de centro-direita desse país não decretou quarentena obrigatória. Independentemente disso, a população observou os cuidados de distanciamento social recomendados pela OMS. Nesse caso, além do peso populacional, o perfil educacional da população tem feito diferença. As origens do seu sistema público de saúde e educação remontam à primeira década do século passado, lançadas no governo José Batlle (1903 a 1907 e 1911 a 1915). O presidente Pepe, como era carinhosamente chamado pelos uruguaios, projetou as bases de um Estado Social avant la lettre, garantindo assim um sistema de saúde público, conquista que os direitistas que lhe sucederam não conseguiram destruir até hoje.
Outros casos interessantes são o Chile e o Equador, ambos governados por partidos direitistas. Antes da chegada da pandemia, os governos desses países se encontravam colocados literalmente nas cordas pelas manifestações sociais de oposição às políticas neoliberais. Com o isolamento social e o consequente arrefecimento das manifestações de rua, seus governos se safaram temporariamente. Em ambos, os casos da covid-19 estão se alastrando deforma preocupante. Em 31 de maio, o Equador contava 3.334 mortes, enquanto o Chile se aproximava de 1.000 mortes. Os governos desses países resistiam a adotar as regras da OMS; mantendo-se aferrados aos princípios neoliberais, priorizam a economia ao invés da saúde. Tanto Sebastián Piñera quanto Lenín Moreno priorizaram a economia diante dos primeiros sinais da pandemia, minimizando seus efeitos sobre a população. A crise nesses países, especialmente no Chile, tem tudo para evoluir para uma tempestade perfeita no período da pós-pandemia, combinando a insatisfação social com a crise política, a recessão econômica e o desemprego, e acabar sendo turbinada pela retomada das manifestações de rua contra os presidentes direitistas que, mesmo antes da pandemia, já tinham perdido a autoridade para comandar seus países.
Cuba é um caso especialíssimo. Em 30 de maio, o país contava 2 mil casos confirmados e 82 mortos, números bem abaixo dos apresentados por seus vizinhos. Com 488 mortos, a República Dominicana é o caso mais preocupante do Caribe. O sistema público de saúde é uma das grandes conquistas da Revolução Cubana. Ele foi concebido por Che Guevara e está baseado numa medicina preventiva. Do médico de família à pesquisa de ponta, o programa de saúde coletiva daquele país é considerado o mais eficaz da América Latina. A estratégia de combate da covid-19 na Ilha consiste na massificação dos testes. A ideia é identificar a tempo os casos assintomáticos e isolá-los antes que a transmissão se propague. Em Cuba, a luta contra a covid-19 se trava de porta em porta. É uma guerra de movimento, diria Gramsci, de localização e destruição das trincheiras inimigas. Os casos identificados passam a ser monitorados e os pacientes que desenvolveram a doença são tratados com antivirais fabricados nos laboratórios cubanos. O Ministério da Saúde Pública de lá não comete a charlatanice de recomendar medicamentos milagrosos para a população. Nenhum outro país da região, de tamanho, população e PIB aproximados, tem apresentando até agora os mesmos resultados positivos. Convém lembrar que em meio à devastação geral causada pela pandemia, os EUA mantiveram o criminoso bloqueio a Cuba, proibindo o país de importar equipamentos que poderiam fazer a diferença entre a vida e a morte. Essa atitude covarde contrasta com a abnegação de milhares de médicos cubanos – ou médicos latino-americanos formados nas universidades de Cuba – que se encontram atualmente na linha de frente do combate a covid-19 em dezenas de países espalhados pelo mundo. A diferença é que esses médicos contraíram o vírus da solidariedade, fundamento de uma revolução que os EUA não conseguiram destruir depois de mais de meio século de bloqueio.
Antes de concluir estes comentários sobre a situação da covid-19 em alguns países da América Latina, deixo um registro sobre o Brasil. No princípio de junho, quando escrevo este artigo, o país já ultrapassou os 30 mil mortos e caminha para ser o segundo do mundo em número de vítimas fatais, superado apenas pelos EUA. Um presidente que não reúne as mínimas condições para o exercício da Presidência da República em tempos normais – quanto menos agora – é o principal responsável pela calamidade que se abateu sobre o povo brasileiro.
Ao sabotar as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), assim como pelos seus próprios ministros da Saúde, Bolsonaro expôs a população a uma “gripezinha” que já causou a morte de milhares de brasileiros. Segundo a OMS, o país ainda não alcançou o pico da curva de infectados e não deveria estar planejando formas de flexibilizar o isolamento. De acordo com estudos do Imperial College London, a continuar no ritmo de mortes diárias, podemos chegar a 125 mil mortos (ou mais) até agosto próximo. No Brasil, a pandemia da covid-19 se mistura e se confunde com a pandemia política, e o poder Executivo é o epicentro da crise.
O governo Bolsonaro ameaça a ordem democrática, sabota as medidas de isolamento social, dissemina notícias falsas, estimula manifestações nazifascistas, constrange os membros da Suprema Corte, alia-se à banda mais reacionária, corrupta e fisiológica do Congresso Nacional, defende o AI-5, desmata a Floresta Amazônica, ataca o setor cultural, científico e educacional, emula lideranças nazistas execráveis, extermina a população indígena, divulga símbolos supremacistas, homenageia a bandeira dos EUA, faz apologia da tortura, cria desavenças com a China, defende o armamento da população, expulsa diplomatas da Venezuela, desrespeita jornalistas, ameaça a liberdade de imprensa, desacata as mulheres, insulta os homossexuais e, cinicamente, minimiza as mortes de milhares de brasileiras e brasileiros.
Enquanto o presidente Bolsonaro não for afastado o Brasil não vai virar essa página tenebrosa da história. Que as lideranças políticas, sociais, intelectuais e religiosas tratem de se entender a tempo de impedir que um presidente neofascista, transmissor de ódio e intolerância, destrua o pouco que restou da nossa democracia.
Renato Martins é professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila); foi presidente do Fórum Universitário Mercosul de 2015 a 2019