A conduta cada dia mais delirante do ex-capitão frente às demais instituições do Estado brasileiro e o fracasso econômico de Guedes têm resultado no afastamento dos setores liberais que viram nele a oportunidade de liquidar os direitos dos trabalhadores, assegurados nas constituições desde os anos 40 do século passado; de destruir os serviços públicos de saúde e educação; de privatizar e promover a entrega dos recursos naturais do país a empresas estrangeiras, particularmente o petróleo do pré-sal.
Talvez a saída de Moro tenha demarcado o momento em que certos setores dessas elites liberais, uma vez alcançados aqueles objetivos, tomaram a decisão de afastar-se e guardar uma prudente distância com relação aos traços mais repugnantes da conduta de Bolsonaro e seus milicianos. O desconforto, ainda que apenas quanto aos aspectos formais, tem sido expresso em reiterados editoriais nos grandes veículos de comunicação.
Saíram daquela posição de tapar o nariz diante do mau cheiro que exala dos gabinetes do Palácio do Planalto, exibida durante todo o período de votação das reformas, para expressar seu incômodo diante do desempenho dos protagonistas na ribalta deste circo de horrores que contribuíram para montar.
Os liberais brasileiros, porém, não superam, um traço aparentemente congênito, a falta de apego aos princípios... democrático-liberais que apregoam! Registre-se o recente editorial de O Estado de S. Paulo empenhado em insultar a inteligência de seus leitores ao comparar o ex-presidente Lula, a mais importante liderança popular do país, que sempre respeitou as regras da democracia... liberal..., com o ex-capitão que ajudaram a eleger, no pleito fraudado de 2018 e que atenta cotidianamente contra ela.
Há, entre eles, quem afirme que as Forças Armadas podem vir a se curvar à pior espécie de caudilhismo. Vejamos. O ex-capitão presidiu a reunião de 22 de abril, aquela cuja ata pode ser resumida, para proteger os ouvidos das gerações futuras do convívio com a baixeza, numa única frase: “Vou interferir e ponto final!”, ao tratar da mudança de comando da Polícia Federal. Estava sentado entre dois generais. Para não nos conceder o benefício da dúvida.
É prudente, portanto, não alimentar ilusões sobre o compromisso das Forças Armadas com a defesa da Democracia e da Constituição. Na história da República, a trajetória não recomenda otimismo. Os “Tenentes” que nasceram como um movimento urbano, de classe média baixa, contra as oligarquias rurais, nos anos 1920, sustentaram uma ditadura de 1930 a 1945. Foram protagonistas diretos ou ofereceram base armada para todas as tentativas de golpe, frustradas ou não, ao longo do século 20. Mais tarde, seus remanescentes lideraram uma ditadura de mais de duas décadas (1964/1988), quando voltamos a ter uma nova Constituição.
Hoje, os fardados honram a tradição. Apartados dos problemas reais do povo brasileiro, firmemente ancorados na convicção de que encarnam as virtudes morais da pátria contra a leniência dos paisanos, comportam-se como uma casta à parte e acima da sociedade.
Desde os primeiros dias do atual governo, esse comportamento tem sido alimentado com benefícios concedidos por Bolsonaro. Desde o aumento dos soldos, por meio das gratificações, até a generosidade da reforma da Previdência, que para a caserna se constituiu num prêmio.
A presença massiva de militares da reserva e requisitados da ativa nos postos de governo funciona como um valor agregado. Como um efeito visual, simbólico para a sociedade. Sinaliza quem nesses dias exerce de fato o poder político no país.
O ex-capitão representa a desforra dos remanescentes dos porões – os heróis do tipo Curió – contra os generais que, depois de operar o aniquilamento sumário das esquerdas, já no declínio do regime, adotaram a estratégia da “abertura lenta, gradual e segura” e da Anistia de 1979, para proceder uma retirada da cena política sem baixas a lamentar, depois de mais de duas décadas de ditadura.Deixaram atrás de si um rastro de denúncias de corrupção, tortura e, por fim, o esgotamento econômico do país.
Os atuais herdeiros da turma dos porões, o fã-clube de Brilhante Ustra e Sílvio Frota, levam mais uma vez as Forças Armadas a por o pé numa armadilha de duplo laço: para evitar, no curto prazo, novas derrotas no Parlamento e, mais adiante, o impeachment do trapaceiro que reverenciam como líder, devem se aproximar e negociar com o Centrão a recomposição do governo. O que significa em termos práticos abrir espaço para a escória do sistema político que fingiam combater.
Essa composição política antes desprezada pelo ex-capitão, é reconhecida no parlamento por ser heterogênea, movida por interesses de curto prazo, cujo caráter é a provisoriedade, ou seja, não oferece respaldo seguro nas batalhas parlamentares e, por último mas não menos importante, trata-se de uma força política real, mas onde “...tudo que é sólido se desmancha no ar...” A pergunta inevitável é: esse apoio durará tempo suficiente até que as corporações com capital disponível se interessem em investir numa economia a caminho da depressão, alimentada por uma crônica instabilidade política?
O outro laço dessa armadilha são as milícias. Os atuais chefes militares que dão suporte a um reconhecido aventureiro estão convertendo as Forças Armadas em escudo das milícias e terminarão por associar sua imagem a forças de delinquentes armadas, estimuladas abertamente pelo presidente da República & filhos, que escapam a qualquer norma ou controle do Estado e conduzem seus negócios explorando os extratos mais pobres da sociedade na base do terror e da extorsão.
Ao fim dessa tragédia em que foi mergulhado o país desde o golpe de 2016 e aprofundada pela fraude eleitoral de 2018, as Forças Armadas sairão, com ou sem o golpe que agitam para chantagear a sociedade, como em outros momentos históricos recentes, associadas à violência e à corrupção e não à defesa da democracia e das instituições que juraram defender.
Pedro Tierra (Hamilton Pereita) é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abram