Cultura

Um empreendimento, concebido antes do golpe militar, sem paralelo em nossa cinematografia, compreendendo no total, até os anos 1980, pouco mais de trinta curtas e médias-metragens

A Caravana Farkas varou o país no final dos anos 1960 e início dos 1970, realizou um projeto, mas abriu-se ao que encontrou pelo caminho. Foto: Reprodução

O Cinema Novo, florão das artes brasileiras, teve uma contrapartida documental. Quase contemporâneo, o Ciclo Thomaz Farkas começaria a se desenrolar no plano do documentário1. Seria difícil aquilatar hoje o impacto e a relevância de suas realizações. Basta atentar para a quantidade de prêmios nacionais e internacionais que amealhou.

Ali deram seus primeiros passos os principais nomes de nosso cinema e foram gravadas dezenas de filmes sobre variados aspectos da vida brasileira. Resultaram 34 curtas e médias-metragens – Brasil Verdade (quatro filmes, 1965) e A Condição Brasileira (dezenove filmes, 1969), completadas por mais alguns avulsos. Até hoje impregnar-se de suas imagens é experiência obrigatória na formação de futuros cineastas.

As circunstâncias em que o lote estreou no início dos anos 1970 tornaram-se uma grande ocasião, dessas cujo anúncio corre de boca em boca. Naquele período de esmagamento das forças progressistas e predomínio da ditadura pelo AI-5, justificava-se sair de casa, pegar o carro e ir pelo meio do trânsito do fim do dia até aos arredores da Maria Antonia, que já tinha sido bombardeada e incendiada. O Mackenzie, vitorioso, permaneceu, mas, tirando ele, toda a população estudantil da região já fora removida à força para a Cidade Universitária, no que eram então os confins de São Paulo. Considerou-se obrigatório assistir os filmes, que, como já se sabia, constituíam um marco da resistência. Para ver todos, em oportunidade única, era necessário frequentar as sessões em três segundas-feiras sucessivas na rua Dr. Vila Nova, começando às 19 horas, bem no auge do horário de pico só para incrementar o nível do sacrifício. Onde? Onde hoje é uma das casas do Sesc, o Teatro Anchieta, em São Paulo.

Um primeiro gostinho já fora servido aos fãs por Brasil Verdade (1965), que aglutina quatro médias-metragens de altíssimo nível: Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares; Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla; Nossa Escola de Samba, de Manuel Horácio Giménez; e Viramundo, de Geraldo Sarno. Mas isso constituía apenas uma amostra, ainda não era nada ante o que viria: agora viria a caudal do Ciclo Thomaz Farkas.

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Foi um empreendimento sem paralelo em nossa cinematografia, compreendendo no total, em sua extensão que iria até os anos 1980, pouco mais de trinta curtas e médias-metragens. Concebido antes do golpe militar com o objetivo de testemunhar a reforma agrária, reajustaria seus alvos e passaria a filmar o país e seus habitantes, especialmente os pobres, com um cuidado que raiava ao etnográfico. O acervo de imagens dos sertanejos e do sertão que flagraram, longe do pitoresco e do piegas, se tornaria inesquecível e realçaria esse complexo simbólico. A produção de todos coube a Thomaz Farkas, que também dirigiu alguns e foi diretor de fotografia de vários.

A eles devemos registros inestimáveis de costumes e rituais, de protocolos de trabalho ou de devoção. Fixaram memórias “ao vivo”: seu impacto visual e cultural teve efeito de revelação para quem os assistiu. Viam-se ali a vida do sertanejo, as cantorias, as procissões e as rezas, a fabricação de instrumentos de trabalho, as caçadas, os plantios, o carpir e a colheita, a labuta no cabo da enxada, o curandeiro e as moléstias, a sociabilidade e o lazer, a fé e a esperança, as tradições, as lendas e crendices, a religiosidade, a criação artística e outros fenômenos de nível simbólico, a perseverança em condições de vida ínfimas.

Serviram de primeiras armas para estreantes talentosos e dedicados, que se tornariam cineastas de primeira plana, dando chance a iniciantes, desarvorados em meio à implantação da ditadura, que a muitos deles, inclusive o produtor, atingiu. Exerceram influência única sobre o desenvolvimento da cinematografia brasileira, quando a Caravana Farkas, que varou o país entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, realizou um projeto, mas também abriu-se ao imprevisto, ao que encontrasse pelo caminho.

Seu núcleo puro e duro foi constituído por Sergio Muniz, produtor executivo do ciclo, Geraldo Sarno, Maurice Capovilla, Paulo Gil Soares, Eduardo Escorel e Affonso Beato, que seria diretor de fotografia de Glauber Rocha e faria carreira internacional como parceiro de Pedro Almodóvar. Francisco Ramalho Jr. participaria, como também Guido Araújo, o das Jornadas de Cinema da Bahia. Jorge Bodansky chegou a fotografar uns poucos. Vlado Herzog começou na equipe mas não continuou, porque foi assumir estágio na BBC de Londres.

As marcas dos filmes do ciclo nas artes desde então e até hoje, tanto no cinema quanto no teatro, na canção popular, no gibi, no videogame, na novela e nas minisséries de TV, são indeléveis. Quem os tinha visto à época sabia que nada havia de semelhante anteriormente e logo percebia que davam filhotes.

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Sim, havia referências para tanto, pois eles se louvavam na grande tradição do documentário político como arma de militância, a serviço das causas populares. Fora do Brasil, inspiraram-se na obra de Dziga Vertov, Jean Rouch, Joris Ivens, Chris Marker. Aqui mesmo no continente, havia a Escola de Santa Fé na Argentina, liderada por Fernando Birri (diretor do famoso filme Tire Dié – 1958), que esteve em São Paulo várias vezes e foi ao mesmo tempo mestre e inspiração para os nossos. Podemos acrescentar os nomes de outros grandes documentaristas latino-americanos, como o também argentino Fernando Solanas, o cubano Santiago Alvarez e o chileno Patricio Guzmán.

Apesar de ter sua carreira interrompida, dificultada e em muitos casos inviabilizada pela ditadura, um dia, muito mais tarde, Thomaz Farkas e Sérgio Muniz poriam mãos à obra na recuperação dos filmes em vídeo. A primeira grande exposição do ciclo completo, passados três decênios de incubação, intitulou-se Caravana Farkas e ocupou o Centro Cultural Banco do Brasil (1997), com um catálogo cuidadíssimo, que incluiu depoimentos e pesquisa exaustiva.

Mas tem mais. Quando dos festejos do IV Centenário de São Paulo, Thomaz Farkas filmara, mas sem som, um show da Velha Guarda, criada e liderada por Almirante, no dia 25 de abril de 1954.

Reencontrados os seis minutos do filminho com imagens móveis mas mudas meio século mais tarde, estrearia em 2004 com som na exposição “São Paulo, 450 Anos” realizada pelo Instituto Moreira Salles (IMS) na Galeria Sesi em 2004, que exibiu a iconografia da cidade desde os desenhos da época colonial, anteriores à invenção da fotografia, até os mais recentes.

A sonorização foi iniciativa do IMS, que convocou José Ramos Tinhorão, fonoaudiólogos e leitores de lábios, e mais a reserva técnica da casa, para restaurar o som. Na exposição, viu-se e ouviu-se Pixinguinha, a flauta de Benedito Lacerda, a perícia de João da Baiana no prato-e-faca, Donga com sua indefectível gravata lavallière, o próprio Almirante e muitos mais. Todos de terno, impecáveis em sua elegância, verdadeiros dândis que eram, tocando, cantando e tracejando firulas “no pé”.

Para nossa sorte, existe um portal chamado “Canal Thomaz Farkas”, que traz biografia, filmografia, ficha técnica de cada um dos filmes do Ciclo, afora indicações sobre como e onde encontrá-los: ali mesmo. Regale-se. https://www.thomazfarkas.com/

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate