Política

Possivelmente esses jovens reagem aos ataques à democracia, aos desatinos no enfrentamento da pandemia, às políticas de morte do governo, porque estão no centro das contradições mais agudas do momento

Temos de incorporar à pauta comum a luta antirracista, pelo fim da violência policial contra os jovens negros e de trabalhos sem direitos. Foto: Ricardo Stuckert/SindiPetro

Uma parte significativa do debate político nas últimas semanas tem girado em torno das manifestações de rua contra o avanço do fascismo: a manifestação do dia 30 de maio convocada pelas torcidas de futebol, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a grande mobilização que ocorreu em várias cidades do país no domingo seguinte, 7 de junho, puxada novamente pelas torcidas organizadas e por movimentos de perfil popular como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

A polêmica se deu principalmente sobre a necessidade e oportunidade de fazer manifestações de rua nesse momento tão crítico, pela tensão política extremada (pelo risco de dar pretexto para a convocação de uma intervenção militar) e pelo perigo de propagação do coronavírus pela aglomeração nas ruas; e, agora, pela surpresa quanto ao perfil dos protagonistas, diferente daqueles que normalmente lideram e integram as manifestações de oposição (partidos de esquerda, centrais sindicais, movimentos sociais com redes e lideranças socialmente reconhecidas).

Neste artigo eu gostaria de contribuir com o segundo ponto do debate, que está em curso nesses dias, sobre quem são os protagonistas desses atos e como isso afeta ou pode afetar outros atores do campo da oposição.

As notícias sobre as manifestações do dia 7 de junho chamam a atenção para o fato de que foram compostas majoritariamente por jovens das periferias, negros, trabalhadores de aplicativos, ativistas de coletivos de resistência e luta democrática, ampliando, mas na mesma configuração social, o espectro dos que participaram dos atos do domingo anterior, integrantes de torcidas organizadas. Os comentários feitos saúdam, com certo tom de surpresa e admiração, a “entrada em cena” da juventude dos setores populares na luta pela democracia, louvando também sua coragem e disposição, contrapondo-a à “imobilidade” dos atores institucionalizados da oposição1.

É bem-vinda essa surpresa positiva com o perfil dos que saíram às ruas. É muito bom que as pessoas estejam descobrindo que os jovens da periferia são atores importantes da sociedade brasileira; que eles têm consciência política, que se organizam e se manifestam. É muito importante que se reconheça que muitos desses jovens têm uma visão crítica da sociedade, uma posição contrária ao governo atual, contra a violência policial e outras violências que se abatem cotidianamente sobre seus corpos, como o racismo e o sexismo, assumindo agora uma posição claramente antifascista.

Mas isso não é de hoje; faz muito tempo que os jovens das periferias das grandes cidades do país se organizam, se manifestam e lutam contra essas violências. Isso não deveria ser surpresa, a não ser para quem incorporou certas análises apressadas que concluíram que a periferia se tornou, em bloco, conservadora, presa da propaganda bolsonarista e da ação das igrejas evangélicas. Ou que a juventude, beneficiada por políticas de inclusão, desenvolveu apenas aspirações de classe média e passou a defender valores neoliberais, como o mérito e o espírito empreendedor. Então, quero acrescentar uma pergunta a essa reflexão: Estamos reconhecendo sua presença, enxergando a singularidade dos seus corpos nas manifestações, mas estamos ouvindo sua voz? Estamos enxergando também as bandeiras que eles carregam?

A tentativa de compreender as bases do avanço da direita, desde 2013, ensejou a realização de importantes pesquisas e reflexões que mostraram a disseminação de valores e pensamentos desse espectro na população brasileira, inclusive nos setores populares. Muitas dessas pesquisas ressaltaram o papel de organizações religiosas (como algumas igrejas evangélicas neopentecostais) e redes de opinião articuladas a partir de influenciadores digitais que disseminam tais valores e posicionamentos, descortinando um mundo até então desconhecido para partidos e organizações de esquerda. Contudo, muito da reflexão que se fez a partir desses desvelamentos se transformaram apressadamente em assertivas generalizadoras de que “as periferias” tinham se tornado conservadoras, seu imaginário irremediavelmente preso aos símbolos e valores da direita, base irrefletida do bolsonarismo.

A compreensão desses elementos é muito importante para o entendimento da atual conjuntura, mas não pode ofuscar a existência de outras realidades, ideias, valores e visões de mundo, tão fortes e pujantes quanto aquelas, e que sinalizam na direção contrária, a da afirmação da diversidade, da solidariedade, da necessidade de lutar e resistir contra as desigualdades e violências que pontuam desde sempre o cotidiano dessas populações, e que se articulam contra o racismo e contra a repressão policial.

Então, é importante que esses jovens se façam visíveis no centro da cena política. E também que se reconheça que eles têm formas de se organizar, de expressar sua visão de mundo e se manifestar, um modo de fazer política, de convocar para a luta, diferente daqueles reconhecidos pelos partidos de esquerda ou pelos movimentos sociais mais consolidados. Isso também não é de hoje. Há tempos esses mesmos partidos e movimentos identificam o distanciamento e se perguntam como podem estabelecer conexões, fazer pontes, “voltar às bases”, para incorporar esses atores em suas estruturas ou frentes de mobilização.

Sem nenhuma condição de realizar uma análise dessas relações, gostaria apenas de fazer um alerta: evitar colocar esses atores em um campo oposto ao da esquerda e da tradição dos movimentos sociais, porque isso não é verdadeiro. Seus integrantes partilham experiências e repertórios com os movimentos sociais, com os partidos de esquerda e ao mesmo tempo com associações e organizações comunitárias de variados tipos, entre elas organizações religiosas dos mais diferentes matizes, inclusive as evangélicas neopentecostais, tanto quanto as de matriz africana.

Esses jovens se formam e formam seus pensamentos e valores, na escola pública, que frequentam, agora, pelo menos até o ensino médio e, em parcela significativa, até a faculdade, passando pelos cursinhos populares. Formam seus valores, pensamentos e vínculos, evidentemente, na família, nas igrejas e na “comunidade”, o que envolve tanto as relações de vizinhança quanto a “cultura de rua” e associações comunitárias, de autoajuda e prática solidária. Também se relacionam com as entidades assistenciais e ONGs que desenvolvem trabalhos de suporte para sua formação e inclusão social; com as pastorais juvenis de diferentes igrejas; e ainda com os movimentos por moradia, saúde, educação, pelo uso do espaço público, presentes nas periferias (não, eles nunca deixaram de existir). Aprendem a se organizar e se manifestar coletivamente nos grupos por afinidades, como as torcidas de futebol, as rodas de capoeira e outras práticas de autodefesa, os grupos culturais, o hip-hop, os inúmeros coletivos culturais, os saraus, os slams, os cineclubes; e também nos movimentos estudantis, secundarista principalmente, que também demonstram um novo perfil social e formas de manifestação, com as revoltas das catracas e as ocupações das escolas...

Os temas, os valores, as formas de organização e as bandeiras da esquerda não são estranhos a esses atores juvenis das periferias. O contrário é que, infelizmente, parece ser verdade. Apesar de ver, porque há mais de uma década eles nos mostram, muitos de nós não enxergam que eles formam coletivos com pautas e modos de organização e expressão muito potentes, embora diferentes daquelas consolidadas no campo dos partidos e movimentos de esquerda2. Não é à toa que eles se mantêm críticos e com distanciamento com relação a essas instituições, não por discordarem de suas pautas, mas porque as suas pautas e modos de ser e fazer continuam não sendo incorporados pelos partidos e movimentos; muitas vezes são até, mesmo, desqualificados, minimizados ou no máximo ironicamente tolerados. Isso também não é de hoje. Há muito tempo existe essa tensão.

Então por que a sensação, real, de novidade, de que essa presença nesses últimos acontecimentos coloca um fator novo na cena política do país? A novidade não é o posicionamento político, radicalmente crítico, a expressão pública de denúncias e de demandas politicamente posicionadas, nem mesmo a disposição de luta desses jovens das periferias; mas sim o fato de eles serem os principais protagonistas de manifestações nas avenidas centrais da cidade e com toda a mídia noticiando, de um modo relativamente positivo. Tanto a mídia conservadora como a alternativa reconheceram o protagonismo desses jovens na luta por democracia, reconhecendo-os como atores políticos, com uma luta organizada e com bandeiras explícitas, e não como indivíduos desorganizados, sem bandeiras e sem lideranças, massa de manobra de interesses escusos, ou pior, vândalos que fazem as manifestações políticas transformarem-se em desordem.

E esse é um fato político importante, que exige mesmo muita reflexão.

Por que foram eles os principais protagonistas? Em grande medida porque partidos de esquerda e centrais sindicais não estavam presentes, pelo menos não como convocadores e organizadores, por receio da pandemia e das possíveis repercussões aventadas de endurecimento da repressão; não quero entrar na polêmica sobre a oportunidade ou não das manifestações nesse momento e não creio que avançaremos muito se ficarmos fazendo um debate sobre coragem ou covardia.

Acho mais importante pensar que talvez, além da coragem, esses jovens predominantemente negros da periferia, dos diferentes lugares que ocupam na nossa sociedade, assumiram esse papel central nas manifestações, na reação ao avanço do fascismo, aos ataques à democracia, aos desatinos no enfrentamento da pandemia, a todas as políticas de morte desse governo, porque talvez eles estejam no centro das contradições mais agudas do momento que estamos vivendo.

São eles que, desde sempre, sofrem a violência da desigualdade, que oblitera as possibilidades de inclusão; que desde o golpe têm sentido ameaçados os sonhos recentemente fortalecidos de inclusão educacional e que, na pandemia, estão reconhecendo a face mais perversa da desigualdade quando ela se atualiza pela dificuldade de acompanhar aulas e atividades educacionais pela internet porque, apesar da maioria estar conectada, o acesso e a qualidade dessa conexão ainda é profundamente mal distribuída.

São eles que, desde sempre, suportam as jornadas e cargas mais pesadas dos trabalhos desqualificados e precários, e que, agora na pandemia, se expõem às mais desumanas exploração e desproteção, como, por exemplo, os trabalhadores de aplicativos, revelando as falácias da ilusão de se engajarem como “empreendedores em uma economia moderna que preserva a liberdade e autonomia”.

São eles que sofrem cotidianamente o preconceito e a violência nos espaços públicos, tanto nas atividades de trabalho como de lazer, onde são tratados como vândalos e desviantes antes de qualquer prova, nas ruas, nos transportes públicos, nos estabelecimentos comerciais, nos shoppings e nos estádios.

São eles que sofrem desde o berço a violência avassaladora do racismo, traduzido em toda a sorte de interdições, preconceitos e aniquilamentos, simbólicos e físicos, e que transforma os jovens negros das periferias nas vítimas de um verdadeiro genocídio em nosso país, recebendo o impacto mais cruel da desumanização, como lembra Felipe Freitas, nos explicando a tese de Fanon3. Desumanização que também se agrava com a pandemia, e com a irresponsabilidade do governo de enfrentá-la, de muitas maneiras: pelo número de vítimas da covid-19 nas periferias, em função das condições de vida e moradia, que impõem dificuldades de isolamento não previstas nas orientações de prevenção oficiais, e principalmente, porque, como trabalhadores precários e sem proteção, e sem um programa de renda efetivo, não podem deixar de trabalhar e circular nos transportes públicos lotados das grandes cidades; pelo recrudescimento da violência policial que, sempre presente, cresce na mesma medida que a instalação do “autoritarismo furtivo” (apud André Singer4) em nosso país.

A crueldade que reside no descaso com a vida das crianças, dos jovens e das mulheres negras, é desvelada pela pandemia quando expõe o contraste entre, de um lado, as medidas protetivas e a importância da solidariedade e, de outro, a postura das elites e da classe média branca que não se importam minimamente em propiciá-las aos trabalhadores e prestadores de serviços com quem se relacionam.

Nesse sentido, embalados talvez pelos acontecimentos nos Estados Unidos, o estopim desse sentimento de indignação veio também pelos dramáticos casos recentes resultantes dessa violência cotidiana, que vitimaram Miguel, 5 anos, João Pedro, 14 anos, João Vitor, 18 anos,  e Rodrigo Cerqueira, 19 anos, entre tantos outros, numa lista tão extensa que é impossível enumerar. Mas como tantas outras pessoas já escreveram, esses são casos simbólicos da necropolítica atual e, apesar de serem mais alguns entre milhares de acontecimentos que se acumulam há tempo demais no país, eles detonaram uma percepção coletiva do absurdo  do racismo, um sentimento de “basta!”, do que não é mais possível tolerar, e que foi um dos principais motes para a saída dessas pessoas às ruas no último domingo, apesar de todos os riscos.

Além de saudar a postura dos jovens presentes, combativa, radical e acolher a crítica que eles fazem aos partidos, de agradecer pelo adensamento das fileiras que se dispõem a lutar pela democracia, precisamos ouvir o que eles estão dizendo e reivindicando. Temos de incorporar as suas pautas e demandas, temos de incorporar nas nossas agendas as questões que emergem do modo como eles são tratados cotidianamente no trabalho, nas instituições e no espaço público, submetidos à violência da desigualdade, do racismo e da polícia. Temos de dizer junto com eles que não é mais possível suportar a política de morte que o governo Bolsonaro leva ao paroxismo.

Vidas negras importam e têm sido dizimadas pelas instituições oficiais e extraoficiais, têm sido desconsideradas, desprotegidas, desamparadas, desumanizadas. E essa bandeira, essa luta cotidiana, também não é de agora, é de muito tempo. Há muito tempo tem sido empunhada, por diversas organizações, coletivos e movimentos, amalgamada na denúncia do genocídio da juventude negra. Mas essa bandeira continua não entrando com centralidade nos documentos e programas das frentes democráticas, e nem mesmo dos partidos de esquerda5. Se queremos mudar nossa relação e nos conectar de outro modo com esses jovens, com os atores da periferia, temos de ajudar a carregar suas bandeiras, incorporar à luta em defesa da democracia  e contra o fascismo, a pauta  antirracista, pelo fim da violência policial contra os jovens negros, pelo fim da exploração dos seus corpos jovens na exaustão de trabalhos sem direitos

Helena Wendel Abramo é socióloga, com dedicação a pesquisas e políticas de juventude, desde 1990. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo