Política

Embora tenha sido registrado algum incômodo entre a oficialidade superior da ativa e o presidente, uma variável não pode ser ignorada, a “bolsonarização” dos estratos inferiores da corporação

Governo de militares ou militares no governo? Afinal, são mais de 3 mil da ativa em cargos da administração federal. Foto: Fernando Frazão/ABr

Em depoimento concedido ao Centro de Pesquisa de História Contemporânea (CPDOC/FGV), em 1993, o general Ernesto Geisel, quarto presidente do ciclo ditatorial, definiu o então deputado federal Jair Bolsonaro como um “mau militar” (D’Araújo e Castro, 1997). Utilizando essa mesma expressão para se referir ao atual Presidente da República, Jarbas Passarinho, também oficial do Exército e ministro de várias pastas durante a ditadura, ainda acrescentaria, em entrevista concedida a um portal de notícias em 2011, a informação de que ele só não perdeu o posto de capitão graças à intervenção de um general, integrante do Supremo Tribunal Militar (STM), de quem era amigo. Afirmou também que Bolsonaro irritava muito os militares, porque quando estava em campanha, “em vez de ir ao Clube Militar, como oficial”, ia “pernoitar no alojamento dos sargentos” para garantir sua base eleitoral.

Há não muito tempo, a percepção de Geisel e de Passarinho sobre Jair Bolsonaro era a predominante entre a maior parte da oficialidade superior das Forças Armadas. Em decorrência dos processos disciplinares a que foi submetido e que quase o levaram a ser expulso do Exército, o ex-capitão era visto com ressalvas e a sua popularidade estava mais restrita a praças e oficiais subalternos e intermediários. No entanto, ao longo dos últimos anos, essa situação foi se revertendo e nas eleições presidenciais de 2018, Jair Bolsonaro acabou por receber o voto maciço do conjunto dos militares e o apoio, implícito ou explícito, de suas principais lideranças.

Em artigo “Os militares e Jair Bolsonaro”, publicado na Teoria e Debate, logo após o segundo turno do pleito de 2018, procuramos discutir o que teria levado a essa mudança de postura em um espaço de tempo relativamente curto. Naquele momento pós-eleitoral, com as cicatrizes ainda frescas da derrota das esquerdas e de consolidação da ascensão da extrema-direita, tal questionamento era muito relevante, inclusive porque em boa parte do ciclo de governos petistas, as relações civis-militares pareciam ter chegado a um ponto de equilíbrio, em um contexto de retomada dos investimentos na área de defesa, com o consequente aumento do orçamento do setor, que se traduziu no reequipamento das Forças Armadas, na recomposição salarial dos militares e em projetos que visavam o reerguimento da indústria brasileira de defesa. Nesse contexto, o compromisso da instituição castrense com a democracia parecia estar consolidado e as velhas rivalidades ideológicas do século 20 superadas (Cunha, 2018).

Naquele artigo, apontamos alguns fatores que poderiam ajudar na busca por uma melhor compreensão da questão, a saber: 1) A reinvenção e a ressignificação do anticomunismo, num sentido bem lato, como ideologia mobilizadora de amplos setores militares; 2) o desejo das Forças Armadas de retomar o “prestígio perdido”, o que passava pela recuperação do protagonismo político, gradualmente reduzido a partir do fim da ditadura civil-militar; 3) e, como desdobramento disso, uma série de insatisfações ou demandas corporativas, que iam do desejo de manter ou ampliar privilégios do estamento militar até o descontentamento com os trabalhos da Comissão da Verdade ou com a possibilidade de mudanças nas instituições militares de ensino.

Esse envolvimento, explícito ou discreto, de lideranças castrenses da ativa e da reserva com a campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro fez com que a opinião pública, já desde antes do pleito, passasse a associar naturalmente as Forças Armadas ao atual presidente da República. Com isso, mesmo com sucessivas declarações de comandantes militares, como o general Eduardo Villas Bôas, de que a eleição do ex-capitão não significaria a partidarização ou a politização das FA, consolidar-se-ia certa percepção de que elas seriam as “fiadoras” do novo governo ou mesmo – pelo menos na percepção de muitos setores ao centro do espectro político – um instrumento de contenção de posturas mais extremadas de Bolsonaro e de seu círculo mais próximo.

Nesse sentido, no final de 2018, uma das perguntas urgentes que se colocavam era sobre como as FA – que como instituições do Estado não poderiam, pelo menos em tese, ter vínculos políticos com governos, partidos ou organizações – se comportariam em relação a um governo chefiado por um de seus ex-integrantes e que contaria com a presença de importantes lideranças oriundas dos quartéis em sua linha de frente.

Governo de militares ou militares no governo?

Um ano e meio depois do início do governo, essa vinculação entre as Forças Armadas e o presidente da República parece ainda mais estreita, com quase 3 mil militares da ativa – sem contar os da reserva – ocupando cargos nos vários escalões da administração federal. No primeiro escalão, há nove ministérios chefiados por oficiais das Forças Armadas da ativa ou da reserva e mais um comandado por um oficial da Policia Militar, o maior número desde o governo do marechal Castelo Branco (1964-67), que chegou a ter doze ministros de origem castrense. Boa parte desses ministros militares faz parte do que podemos chamar de “Grupo do Haiti”, ou seja, oficiais que atuaram em posições de comando na Missão da ONU naquele país, dentre eles os generais Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, e Luiz Eduardo Ramos, atual ocupante desse mesmo cargo (Ver Rodrigues e Maciel, 2019).

Nos últimos meses, o presidente tem cada vez mais recorrido à prática de ampliar a participação dos militares em seu governo sempre que estoura alguma crise – via de regra, causada pelos arroubos verbais ou posições e iniciativas equivocadas do próprio Jair Bolsonaro ou do “núcleo duro” ideológico do bolsonarismo – e/ou aumentam as contestações ao governo por parte de setores da sociedade ou de outras instituições da República. Configura-se, dessa forma, uma estratégia de, de um lado, tentar reforçar o respaldo que ele possui entre os militares, como contraponto à crescente perda de apoio no restante da sociedade e, de outro, de explorar certa imagem pública cultivada pelas FA, de que elas seriam dotadas de grande capacidade técnica e gerencial, mesmo em áreas que não constituem suas atividades-fim.

Assim, apesar da forte presença de oficiais das FA no governo desde a posse do presidente, essa tendência de militarização da administração federal se acentuaria efetivamente a partir do segundo semestre de 2019, à medida que crises políticas e/ou de gestão em várias áreas se avolumavam, consolidando-se ainda mais após o início da pandemia da covid-19 e os episódios envolvendo as saídas dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro do governo. Antes disso, nos primeiros meses de governo, chegou a haver alguns choques entre o grupo de ministros fardados e o chamado “núcleo ideológico” ou “radical” do bolsonarismo, que tem entre seus expoentes dois dos filhos do presidente, Carlos e Eduardo Bolsonaro e se alinha às ideias de Olavo de Carvalho. A demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo, em junho de 2019, após tentar exercer maior controle sobre a área de comunicação do governo – comandada por Fabio Wajngarten, integrante do grupo “olavista” e bastante próximo de Carlos Bolsonaro –, ilustra bem as tensões existentes entre os grupos que compõem a base de sustentação de Jair Bolsonaro (Amado, 2019).

Ainda no primeiro semestre de 2019, assistiu-se também a atuação do vice-presidente Hamilton Mourão e de outros militares do grupo palaciano procurando conter os ímpetos mais radicais dos “ideológicos” – como o chanceler Ernesto Araújo, o deputado Eduardo Bolsonaro e o assessor internacional da Presidência Felipe Martins – em episódios como a possível intervenção armada na Venezuela, sob o pretexto de levar “ajuda humanitária” ao povo venezuelano, ou a discussão sobre a transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. Tais posturas pareciam confirmar a crença existente em boa parte dos articulistas da grande imprensa – e mesmo entre acadêmicos e lideranças políticas – de que os militares poderiam formar um contraponto moderado e racional às tendências mais extremadas do presidente e de seu círculo mais próximo.

Escalada autoritária e o recurso ao fantasma do “inimigo vermelho”

A imagem de moderação núcleo fardado do governo começaria a ruir ou, no mínimo, a ser relativizada nesses primeiros meses de 2020. A crise política que se esboçava desde o fim de 2019 seria amplificada pelas respostas (ou pela ausência de) do governo à pandemia da covid-19, pelos arroubos autoritários do presidente e por seu apoio a atos antidemocráticos, por ataques à imprensa, pelo derretimento da popularidade do governo e pelo confronto de Bolsonaro com o Legislativo e, notadamente, o Judiciário. Essa crise fez com que as pretensas distinções entre os “militares moderados” e os “ideológicos” se diluíssem e que posições fortemente autoritárias – algumas no limite do golpismo – fossem manifestadas publicamente pelo grupo fardado, em total alinhamento com o presidente da República.

Um bom exemplo é o artigo de opinião intitulado “Limites e Responsabilidades” (O Estado de S.Paulo, 14/05/2020), assinado pelo vice-presidente da República, em que o general Hamilton Mourão critica simultaneamente a imprensa, pelo que ele considera uma cobertura parcial da crise sanitária e das medidas tomadas pelo governo; o Legislativo, o Judiciário e os governadores dos estados, por tomarem decisões e iniciativas que iam de encontro ao que era defendido por Bolsonaro, no que ele classifica como “usurpação das prerrogativas do Poder Executivo”; e personalidades “que tendo exercido funções de relevância em administrações anteriores” faziam “apressadas ilações” e “críticas levianas” ao governo, prejudicando assim a imagem internacional do Brasil. Poucos dias depois, assumindo uma postura mais extremada, o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, classificaria, em nota oficial, de “inconcebível” e “inacreditável” a possibilidade do Supremo Tribunal Federal solicitar a apreensão do celular do presidente, a partir de uma queixa-crime movida por partidos de oposição, advertindo que tal pedido poderia “ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Para além do círculo palaciano, inúmeros militares da reserva e da ativa também começaram a se manifestar, individual ou coletivamente, em apoio a Jair Bolsonaro e aos ministros fardados, à medida que o confronto com o STF se acirrava. E em muitas dessas manifestações públicas, um velho fantasma voltaria a ser mencionado implícita ou explicitamente, ao lado das recorrentes exaltações da corporação militar, da defesa dos valores morais da nação e do combate à corrupção e às “instituições corruptas”: o da “ameaça subversiva” personificada no “inimigo vermelho”. Como assinalávamos em “Os Militares e Jair Bolsonaro”, o anticomunismo funciona, desde o final da década de 1930, como uma ideologia aglutinadora e mobilizadora para as Forças Armadas, notadamente o Exército. Revigorada e com nova roupagem, essa ideologia – que após o fim da Guerra Fria parecia ter ficado restrita a pequenos grupos formados, principalmente, por militares da reserva – voltaria a ter certo peso nos quartéis, nos últimos anos. A partir da ideia da necessidade de lutar contra um difuso “marxismo cultural” infiltrado nas diversas instituições, o “novo” anticomunismo define de maneira bastante fluida o que é “comunismo”, ampliando assim o espectro do “inimigo” a ser combatido (Ver também: Pinto, 2019).

O próprio vice-presidente, em outro artigo de opinião publicado n’O Estado de S. Paulo, dessa vez sobre as manifestações contrárias ao governo ocorridas em 31 de maio, classifica os manifestantes como “baderneiros” e critica – enxergando nisso, inclusive, certo viés conspiratório – os que as consideraram manifestações pró-democracia, dentre os quais lideranças políticas, representantes do Judiciário e a imprensa, advertindo que “a prosseguir a insensatez, poderá haver quem pense estar ocorrendo uma extrapolação das declarações do presidente da República ou de seus apoiadores para justificar ataques à institucionalidade do país” (O Estado de S.Paulo, 03/06/2020). Na mesma sintonia, após as fortes reações negativas às suas declarações sobre o pedido de apreensão do celular de Bolsonaro, entendidas como uma ameaça de ruptura institucional, o general Augusto Heleno agradeceria a solidariedade recebida de companheiros de farda afirmando que “a esquerda radical tem síndrome de golpe, elucubra e lê mal”.

Além disso, na escalada autoritária do governo Bolsonaro, a posição dúbia das Forças Armadas e das lideranças castrenses em relação à evocação constante do artigo 142 da Constituição Federal pelo presidente da República e por seus apoiadores acaba por ser mais um elemento de instabilidade. Esse artigo estabelece que as FA “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem" e serve de base, por exemplo, para a atuação das FA na segurança pública através das chamadas Operações GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Porém, desde 2013, grupos de extrema-direita, que nos anos seguintes tornar-se-iam a base do bolsonarismo militante, dão uma interpretação mais elástica ao artigo 142 Constituição, utilizando-o para defender uma “intervenção militar constitucional”.

Com a intensificação dos conflitos entre Bolsonaro, o STF e o Congresso, essa “intervenção militar constitucional” passou a ser uma das principais palavras de ordem dos atos pró-governo que vêm ocorrendo desde março, com os manifestantes defendendo um “autogolpe” do presidente contra os demais poderes, com o apoio das FA. A ideia do “autogolpe”, com base no artigo 142 da CF, ganhou ainda mais repercussão com a divulgação, por ordem do STF, do vídeo da já (tristemente) célebre reunião ministerial de 22 de abril, pois nela o próprio presidente acena com essa possibilidade ao dizer que “nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”.

Essa interpretação extremamente elástica do texto da CF, que atribuiria às FA o papel de “poder moderador” em caso de conflito entre os Poderes é majoritariamente rechaçada nos meios jurídicos e acadêmicos. No entanto, há autores que defendem que a ambiguidade da redação do artigo 142, resultado das pressões militares durante o processo da constituinte e de uma transição democrática inconclusa, permitiria sim “o golpe de Estado constitucional” e que “por isso mesmo, nenhuma democracia que se preze o insculpiria em seu texto constitucional” (Zaverucha, 2020).

Ao não se posicionar claramente contra tal interpretação, limitando-se a comentários e declarações genéricas sobre o seu compromisso com a democracia, as Forças Armadas acabam por passar para a sociedade a percepção de que essa possibilidade não está descartada. Isso é agravado pelo fato de inúmeros oficiais superiores da reserva, inclusive alguns integrantes de círculos próximos ao governo, se manifestarem publicamente nesse sentido. Além disso, a reação à recente decisão, em caráter liminar, do ministro Luiz Fux, do STF, sobre o artigo 142 ilustra bem a posição dúbia dos militares, em especial do grupo palaciano, sobre a questão.

Em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que solicitava que o STF delimitasse o alcance das normas jurídicas que tratam do papel constitucional das Forças Armadas, o ministro manifestou-se liminarmente que não há margem na CF para que se interprete que as FA possam intervir no funcionamento dos poderes da República e nem que os poderes Legislativo e Judiciário devam se submeter ao Executivo, deixando claro que “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário” (STF, 2020).

Tendo causado forte incômodo entre o núcleo fardado do governo, que a considerou uma afronta ao Executivo, a decisão de Fux recebeu resposta imediata, através de uma nota oficial. Assinada por Jair Bolsonaro, pelo general Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo – a quem os comandantes das três Forças estão subordinados – essa nota afirma que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas como a tomada de poder, mas “também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis ou por conta de julgamentos políticos”, ressaltando que, na própria liminar, o ministro Fux “bem reconhece o papel e a história das FFAA sempre ao lado da Democracia e da Liberdade”.

No mesmo dia em que o ministro Fux concedia a liminar, a revista Veja publicava uma entrevista com o general da ativa e ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, na qual ele declarava que era “ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático”, advertindo a seguir que a oposição também não deveria “esticar a corda”, no que foi considerado por inúmeros analistas e parlamentares como uma ameaça velada.

As Forças Armadas na encruzilhada

Nas últimas semanas, segundo várias matérias e artigos de opinião publicados na grande imprensa, a associação entre as FA e o presidente da República estaria começando a causar certo incômodo entre os oficiais superiores da ativa, com o crescimento da percepção de que tal associação poderia vir a cobrar um alto preço da instituição militar.

Parece claro que uma eventual debacle do governo poderia arrastar junto com ela a imagem positiva que as Forças Armadas vêm conseguindo manter junto a setores expressivos da população desde o fim da transição democrática, em um processo bastante distinto do que ocorreu em países vizinhos. Em pesquisa recente realizada pelo Instituto da Democracia, há sinais de que a imagem das Forças Armadas vem sendo corroída, com a queda de sete pontos no sentimento de confiança da população na instituição, desde 2018 (de 33,9 para 27%). A mesma pesquisa indica que 58,9% dos entrevistados não consideram a forte presença de militares no governo como algo positivo para a democracia (Mendonça, 2020). Esse desgaste das FA também pode ser mensurado pela elevação do tom das críticas aos militares na grande imprensa, mesmo por parte de articulistas conservadores (Ver Pereira, 2020).

No entanto, é importante ressaltar que mesmo que, de fato, tenha começado a ocorrer tal incômodo entre a oficialidade superior da ativa, uma variável que não pode ser ignorada é a “bolsonarização” dos estratos inferiores da corporação, ainda que não se vislumbre no horizonte, neste momento, nenhuma possibilidade de quebra de hierarquia militar. O presidente da República ainda mantém a prática, vinda desde a época em que era deputado federal, de dialogar diretamente com os praças e oficiais subalternos, que historicamente constituem sua principal base eleitoral e a presença constante de Bolsonaro em formaturas e cerimônias militares demonstra a disposição do presidente em cultivar o apoio desses segmentos.

Outro processo de “bolsonarização” que também começa a se tornar motivo de preocupação é o das polícias militares estaduais, definidas na constituição como forças auxiliares e reservas do Exército. Esse fenômeno ficou explicitado na greve de policiais no Ceará nos primeiros meses do ano e no tratamento diferenciado dado pela PM às manifestantes contra e pró-governo em diversos estados. A possibilidade de rebeliões pontuais contra ordens de governadores da oposição começa a aparecer no horizonte, o que poderia gerar a necessidade de utilização das FA para contê-las. Dentro do atual contexto, isso poderia vir a ser um forte elemento de instabilidade, inclusive pela imprevisibilidade do comportamento do presidente e da reação das FA em uma questão como essa.

O cerco jurídico contra os grupos bolsonaristas mais extremados, o caso Queiroz e as diversas investigações que envolvem os filhos do presidente aumentam a dependência de Bolsonaro em relação às FA como um todo, para além do grupo palaciano ou dos clubes e associações de militares da reserva, tradicionalmente ultraconservadores, que não se furtam a lançar constantes manifestos contra a “subversão”, em suas múltiplas formas, e em apoio ao presidente. Isso se traduz não só na já mencionada crescente participação de militares da ativa em diversas funções de governo, mas também em vantagens pecuniárias, como o aumento de algumas gratificações, que se somam à ultrabranda reforma da Previdência dos militares (que acabou por ser muito mais uma reestruturação da carreira, com ganhos salariais inclusive, do que uma reforma propriamente dita).

A partir dessas diversas variáveis, estrutura-se a questão que é central neste momento, por impactar sobremaneira o cenário político: até que ponto as Forças Armadas estão dispostas a desgastar sua imagem pública e a sua própria institucionalidade – expondo-se inclusive, numa situação limite, à quebra da hierarquia – para sustentar Jair Bolsonaro e seu círculo mais próximo? Nos próximos meses, os desdobramentos das ações em curso no STF sobre a difusão de fake news e o financiamento de atos antidemocráticos e, principalmente, o inquérito que envolve o senador Flávio Bolsonaro e o ex-policial Fabrício Queiroz podem definir para que lado penderá esse pêndulo.

Porém, quaisquer que sejam os próximos movimentos nesse tabuleiro, parece certo que as FA sairão desse processo desgastadas e, talvez, com algumas fraturas internas, só restando saber qual será o grau desse desgaste. De qualquer forma, a crescente politização dos militares nesses últimos anos e a sua aproximação com posições de extrema-direita, flertando perigosamente com o autoritarismo, contribuiu para derrubar algumas convicções até agora fortemente presentes nos estudos acadêmicos sobre as FA e nos meios políticos: a de que os mecanismos de controle civil sobre as Forças Armadas vinham se consolidando gradativamente e que tal processo era irreversível; a de que o anticomunismo havia se tornado algo residual entre os militares e de que as disputas ideológicas do século 20 estavam superadas; a de que a tradição intervencionista das FA tinha ficado no passado e de que o “partido fardado” tinha encerrado o seu ciclo e; por último, a de que o compromisso dos militares com a democracia e com as regras do jogo político democrático era um fato inquestionável.

Constata-se assim que 35 anos após o fim do período ditatorial, ainda há um forte déficit de cultura democrática nas FA que, embora tendo raízes históricas profundas, está diretamente ligado ao processo inconcluso de transição da ditadura para a democracia. Em quase uma década e meia de governos de centro-esquerda, essa questão não foi devidamente enfrentada e, por isto, deve se constituir como ponto central de qualquer plataforma progressista nos próximos anos.

Fontes e referências bibliográficas

AMADO, Guilherme. “Por que Santos Cruz foi demitido”. Época, 13/06/2019.

CUNHA, Paulo Ribeiro da. “Militares na política ou política entre os militares: uma falsa questão?”. In: BARBOSA, Jefferson Rodrigues et alli. Militares e Política no Brasil. São Paulo, Expressão Popular, 2018.

D’ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (Orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1997.

MENDONÇA, Ricardo. “Aumenta rejeição a ideias golpistas, mostra pesquisa”. Valor Econômico, 15/06/2020.

MOURÃO, Hamilton. “Limites e responsabilidades”. O Estado de S. Paulo, 14/05/2020.

___________________. “Opinião e princípios”. O Estado de S. Paulo, 03/06/2020.

PEREIRA, Merval. “Mais iguais”. O Globo, 13/06/2020.

PINTO, Eduardo Costa. “Bolsonaro e os quartéis: a loucura com método”. Texto para discussão 006, IE-UFRJ, 2019.

RODRIGUES, Gilberto M.A. e MACIEL, Tadeu M. “Pacificação à brasileira? O paradigma de Caxias, a Minustah e o governo de Jair Bolsonaro”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 6, n.2. Jul./dez. 2019.

STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.457”. Brasília, 12/06/2020.

ZAVERUCHA, Jorge. “Forte presença militar no Estado reflete fragilidade da democracia no Brasil”. Folha de S. Paulo, 23/05/2020.

Adriano de Freixo é doutor em História Social (UFRJ) e professor do Instituto de Estudos Estratégicos (Inest) da Universidade Federal Fluminense (UFF). É organizador, com Rosana Pinheiro-Machado, do livro Brasil em Transe: Bolsonarismo, Nova Direita e Desdemocratização (Editora Oficina, 2019)