Sociedade

Margarida Alves, mulher, nordestina, trabalhadora rural, em plena ditadura militar denunciou todas as violações que encontrou pela frente, mas sua história é pouco conhecida

A Marcha das Margaridas concretiza o legado de Margarida Alves como mulher, camponesa, sindicalista, entre outras dimensões de sua vida. Foto: Roberto Parizotti

Margarida Maria Alves, autora da frase do título1, tinha acabado de completar 50 anos, estava em casa naquele final de tarde. Era 12 de agosto de 1983: a presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande foi assassinada por um pistoleiro encapuzado.

Até recentemente eu não sabia quem era Margarida Alves. Fui apresentada à sua história em 2013, quando passei a trabalhar na Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais e Quilombolas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (DPMR/MDA).

Até entrar no MDA eu acreditava que o Brasil era um país urbanizado. Não. Somos um país essencialmente rural. E, ao acreditar neste país urbano, os conflitos agrários, as lutas camponesas e a própria produção de alimentos aparecem como algo alienado, cindido. Não sabemos quem produz nossos alimentos, não sabemos o conteúdo de nossos alimentos e não sabemos as mortes que estão envolvidas ao consumir esses alimentos. Eu não sabia, ou sabia muito pouco.

Então, me pergunto, o que Margarida Alves falaria se estivesse aqui, do meu lado?

Primeiro, acho que falaria para lembrarmos que ela foi assassinada, e olharia com tristeza os nossos números crescentes de conflitos agrários2. Provavelmente ela esperaria que estivéssemos numa situação melhor depois de 37 anos de sua morte. Mas olha, Margarida, avançamos, a luta se estruturou, tivemos um presidente e uma presidenta que conseguiram, se não mudar a realidade, pelo menos dar voz para as causas que mobilizaram sua vida. Porém, os donos do poder estão aí e, no momento que escrevo este texto acabamos de completar mais de 100 mil mortes por um vírus sobre o qual pouco sabemos.

O que sabemos é que este é um país extremamente desigual, o Censo Agropecuário de 20173 mostrou que a concentração de terras segue crescendo e são nossas populações mais vulneráveis que estão morrendo, são os povos indígenas, são mulheres, são negros, são lutadoras e lutadores do campo e da cidade.

E, como se não bastasse, a polícia mata cada dia mais, a agricultura familiar está abandonada enquanto a fome cresce nas cidades, desapropriações são realizadas em plena pandemia e temos um governo genocida.

Margarida, queria te contar de outro Brasil.

Mas conversando com a Margarida que conheci pelas diversas sementes de sua história, e de outras que me formaram a partir do meu trabalho no MDA, sinto que as Margaridas não querem falar de morte.

Margaridas não têm medo da morte, e isso não quer dizer que não devamos nos cuidar e denunciar. Mas devemos, sobretudo, honrar essas vidas à altura de como elas foram vividas. Margarida Alves disse: “Não fujo da luta!”4

Naquele período, a sindicalista havia conquistado na Justiça a readmissão de trabalhadores em usinas. O enfrentamento dos senhores de engenho que exploravam a mão de obra dos trabalhadores do campo tornou-se uma das marcas de sua atuação como sindicalista. A exigência de carteira assinada, 13° salário, redução de jornada de trabalho e férias, entre outros direitos, levou-a a dar entrada em 73 ações trabalhistas contra os latifundiários da região.5

Margarida Alves foi presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande na Paraíba por 12 anos, uma das primeiras mulheres a ocupar este lugar e provavelmente, naquela época, uma das poucas a ocupá-lo por tanto tempo. Quando foi assassinada, havia 73 ações trabalhistas abertas, mas durante seus mandatos foram mais de seiscentas ações.6

Mulher, nordestina, trabalhadora rural, em plena ditadura militar denunciou de forma constante todas as violações que encontrou a sua frente e, ainda assim, sua história é largamente desconhecida. Aprendemos e reproduzimos a história daqueles que se autointitulam vencedores. Precisamos escolher quais são as histórias e vitórias que cantaremos.

O latifúndio interrompeu o seu corpo, mas não seu legado e sua luta. Neste ano, completam-se 20 anos da primeira Marcha das Margaridas. Margarida Alves foi semente: seguimos vendo as Margaridas que brotam da sua luta.

A Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais (DPMR), onde trabalhei, foi fruto da Marcha das Margaridas. Eu ter conhecido sua história e ter o privilégio de contá-la aqui é fruto das Margaridas espalhadas por este Brasil. Lá foram desenvolvidas ao longo dos anos diversas políticas, sempre em contato direto com os movimentos, com as Margaridas. Se na disputa pelo recurso público, a agricultura familiar, a reforma agrária, os quilombos e povos indígenas eram escanteados, as mulheres não eram nem vistas.

Na mesma perspectiva da invisibilidade do trabalho de doméstico e de cuidados, a participação das mulheres rurais na atividade de produção de alimentos, foi tratada, e em parte ainda é, como ajuda. O homem era caracterizado como o trabalhador rural, foco das políticas.

Porém, a Marcha das Margaridas acontece em 2000, 2003, 2007, 2011, 2015 e 2019 para mostrar que o campo não é composto apenas pelo trabalhador rural, mas que as trabalhadoras rurais existem, são muitas, são diversas e comprometidas com um desenvolvimento rural sustentável e solidário.

Na DPMR, considerávamos que havia um ciclo de inclusão produtiva das mulheres rurais. Nesse ciclo, o primeiro passo era dado pelo Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural, no qual por meio de mutirões se promovia o acesso para as mulheres rurais a diversas documentações. Parte do seu não acesso às políticas públicas se dava por não ter documentos, ou seja, nem reconhecida como cidadã elas eram. Foram quase 3 milhões de documentos emitidos no período de 2006 a 2016.7

Outras etapas dessa inclusão produtiva passavam pelo Acesso à Terra, pela Assistência Técnica e Extensão Rural direcionada para mulheres, pelo crédito, por estratégias de organização produtiva, pelo acesso à infraestrutura produtiva, pela comercialização de seus produtos (Programa Nacional de Alimentação Escolar e Programa de Aquisição de Alimentos) e por sua participação em espaços de decisão (Comitê Permanente de Políticas para Mulheres Rurais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável - Condraf, Comitês de Mulheres nos Territórios da Cidadania, Colegiados Territoriais, Grupo de Trabalho de Gênero da Reunião Especializada de Agricultura Familiar – REAF/Mercosul, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, entre tantos outros).

Margarida, suas sementes geraram frutos e não foram poucos. Parte dessas frentes acabou em 2016, junto com a extinção da DPMR e do MDA, parte resiste a duras penas, mas esse lugar construído das mulheres rurais pode se perder no Estado mas permanece em quem o viveu.

Em 2019 ocorreu 6° Marcha das Margaridas, coordenada pelo Movimento Sindical de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais (Contag, Federações e Sindicatos) e mais dezesseis outras organizações e movimentos, em sua Plataforma Política as Margaridas se apresentam:

Nós, Margaridas, somos muitas em uma: mulheres da classe trabalhadora, mulheres rurais, urbanas, agricultoras familiares, camponesas, indígenas, quilombolas, assentadas, acampadas, sem-terra, assalariadas rurais, extrativistas, quebradeiras de coco, catadoras de mangaba, ribeirinhas, pescadores, marisqueiras, caiçaras, faxinalenses, sertanejas, vazanteiras, caatingueiras, criadoras em fundos de pasto, raizeiras, benzedeiras, geraizeiras, e tantas outras, negras em sua grande maioria. Exploradas e marginalizadas ao longo da história, habitamos os mais diversos territórios, que por sua vez abrigam diferentes biomas, mosaicos de vida e diversidade. Nós fazemos a agricultura familiar! Produzimos alimentos saudáveis para nossas cidades e para a nossa população, garantindo a soberania alimentar e preservação das nossas sementes crioulas, de nossos ecossistemas e da nossa sociobiodiversidade. Somos guardiãs dos saberes populares que herdamos de nossa ancestralidade!”8

Essas Margaridas marcharam em 2019 tendo como lema “Por um Brasil com soberania popular, justiça e livre de violência”,  descrevem a sociedade almejada:

Queremos uma sociedade que garanta a soberania dos povos sobre suas terras e territórios, que promova a produção e o consumo de alimentos saudáveis, a partir do uso e manejo sustentável dos agroecossistemas, que reconheça o trabalho e a contribuição econômica das mulheres para a sustentabilidade da vida. Que promova autonomia, igualdade e liberdade. Queremos construir uma sociedade sem violência, governada por valores de justiça social, solidariedade e da paz. Queremos uma sociedade onde possamos ser ouvidas, onde nossas realidades, anseios, desejos e decisões sejam considerados. Queremos uma sociedade em que nossos direitos sejam reconhecidos, respeitados e garantidos.9

A Marcha das Margaridas concretiza o legado de Margarida Alves como mulher rural, camponesa, sindicalista, entre tantas outras dimensões de sua vida. Em 2019, a Marcha das Margaridas reuniu mais de 100 mil mulheres rurais em Brasília e denunciou o governo genocida, ao mesmo tempo em que apontou o mundo que se deseja construir.

As lutas das mulheres rurais se organizaram e ocorreram de diferentes formas, em diferentes lugares e tempos. Não cabe aqui mapear essas organizações, mas ressaltar que sim, Margarida Alves tem papel chave nesta história.

Tornamo-nos uma força coletiva e solidária, capaz de barrar o abuso de poder daqueles que desejam manter as desigualdades sociais. Acreditamos na nossa força.10

Margarida, te imagino idosa aqui do meu lado. Idosa, mas não cansada. Tudo o que já ouvi e li sobre você passa uma imagem bem longe do cansaço. Talvez o que nos canse seja o medo, não a luta. A luta nos traz vida e talvez você seja uma das melhores expressões disso.

Neste artigo poderia falar dos conflitos agrários e dos assassinatos no campo que se perpetuam, a questão da terra, dos territórios e das desigualdades que estão longe de terminar. Poderia escrever sobre o patriarcado, sobre como as mulheres lutadoras do campo e da cidade são exemplarmente punidas. Poderia falar da luta camponesa e da volta do Brasil ao Mapa da Fome. Poderia escrever sobre como vivemos um governo que promove a necropolítica, sobre como a Previdência, os direitos trabalhistas nos foram saqueados nos últimos anos.

Nada disso pode ser naturalizado. Tudo isso tem que ser dito e tem sido dito. Nem bala, nem fome, nem Covid-19. Nos queremos vivas e vivos.

Aqui não se dará espaço aos seus algozes e às mazelas que a desigualdade e a injustiça provocam. O assassinato de Margarida Alves é o próprio luto que se transforma em luta. Sabemos quem são eles, estão aí, desenvolvendo sua política de morte. Mas aqui celebramos Margarida e sua vida vivida, interrompida, como tantas continuam sendo.

No fim desta conversa com essa Margarida que mora em mim, que recebi como semente de outras Margaridas, me vem a Marcha das Margaridas do ano passado, me vem a convicção de que sociedade desejamos. O canto das Margaridas diz tudo que é preciso ser dito, recorto aqui um trecho:

“Nós que vem sempre suando

Este país alimentando

Tamo aqui para relembrar

Este país tem que mudar!

(...)

Canja na mesa no jantar

Um mínimo para se ter,

Um mínimo para se ter

Direito à paz e ao prazer

É o querer, é o querer das Margaridas”

Que o querer das Margaridas se multiplique, chegue aonde ainda não chegou. Que sua história, luta, voz e coragem possam ecoar neste momento tão difícil. Que a sua morte nos lembre que a vida só vale se a vivermos por inteiro: “não fujo da luta!”.

Raquel G. Rizzi é analista técnica de Políticas Sociais. Bacharel em Gestão de Políticas Públicas e mestre em Mudança Social e Participação Política