Política

A manipulação do poder Judiciário e do Ministério Público, de Moro e Dallagnol, foram fundamentais para a repetição da farsa de usar a corrupção com finalidades meramente políticas

A identificação construída entre PT e corrupção viabilizou o golpe de 2016, sem que existisse contra a presidenta qualquer acusação de corrupção. Foto Marcello Casal/ABr

A história do Brasil desde a Colônia até hoje foi marcada a ferro e fogo pela presença da corrupção. Já nos instantes iniciais da colonização portuguesa ela aparece escancarada. Como uma doença endêmica, a corrupção, infelizmente, faz parte da história brasileira. Do mesmo modo, a desigualdade social contamina cruelmente toda a história nacional. O Brasil foi e é país de enormes desigualdades sociais. Um dos mais desiguais entre todas as nações do mundo.

Corrupção e desigualdade social possuem laços estreitos não só o Brasil, mas no mundo. Basta olhar para o cenário internacional e observar a umbilicalconexão entre países corruptos e nações socialmente desiguais. As nações mais corruptas são as mais desiguais e as nações mais desiguais são as mais corruptas. Desnecessário indicar exemplos para confirmar a íntima correlação entre corrupção e desigualdade social.

A afirmação do enlace simbiótico não implica que corrupção e desigualdade ocupem idêntico lugar na relação. A corrupção sozinha não aparece como capaz de produzir desigualdade. Pelo contrário, a corrupção resulta quase sempre da profunda desigualdade existente na sociedade. A distribuição muito desigual de recursos e de poder na sociedade gera condições propícias para o advento e instalação da corrupção. A desigualdade é a mãe da corrupção e não ao contrário. Assim, o grande problema nacional, inclusive para equacionar e enfrentar de modo efetivo a corrupção, é a enorme desigualdade social, nascida com a escravidão negra e existente desde sempre no Brasil. A desigualdade social marca o país, cria corrupção e faz proliferar privilégios, eles também umbilicalmente ligados à corrupção.

Por que então a corrupção passou a ser tratada hoje como o maior problema brasileiro? Sem dúvida, tal inversão foi produzida, delibera e metodicamente, pelo agendamento e pela construção narrativa da corrupção como principal problema nacional. A corrupção existe. Ela corrói há muito tempo no Brasil as bases do Estado democrático, republicano, eficiente e compromissado com o interesse público. O aprofundamento da democracia exige combater de maneira rigorosa a corrupção para que o Estado esteja a serviço da população, do interesse público, e não aprisionado e sabotado por interesses privados, acionados por aqueles que detém poder e recursos.

Mas nem sempre o tema da corrupção está ligado ao efetivo enfrentamento da corrupção. Na história do mundo e do Brasil são inúmeros os exemplos de usos heterodoxos do tema da corrupção. Alguns exemplos mais recentes no Brasil podem ser facilmente recordados: sua utilização para aniquilar Getúlio Vargas em 1954; seu uso para criar dificuldades ao governo JK, inclusive na construção de Brasília; sua instrumentalização para derrubar o presidente João Goulart e seu acionamento para legitimar o golpe civil-militar de 1964. Longe de negar a existência de episódios de corrupção, o que fica evidente em tais exemplos é a manipulação do tema da corrupção com fins escancaradamente de disputa de poder político e não com qualquer preocupação efetiva com o combate à corrupção. Ou seja, em todos os casos, o suposto enfrentamento da corrupção não passou de mero pretexto para viabilizar propósitos políticos.

Outras utilizações heterodoxas abundam na história nacional. Dois exemplos envolvem a fabricação de presidentes. Neste caso, Jânio Quadros e Fernando Collor precisam ser lembrados. Neles, a corrupção foi usada para viabilizar a construção de candidatos e de vitórias eleitorais. A emblemática vassoura de Jânio Quadros para varrer a corrupção e o mítico caçador de marajás Fernando Collor denunciam como políticos podem ser produzidos pela mídia para ocupar o lugar de paladinos da luta contra a corrupção, sem nunca terem nenhum compromisso real com tal empreendimento. As histórias, anterior e posterior deles, desmontaram a farsa. Também aqui, o uso do tema da corrupção se mostrou abusivo e sem nenhuma veracidade. Pior, além do total descompromisso dessas figuras com qualquer enfrentamento da corrupção, o país pagou caro a incompetência político-administrativa de seus desgovernos, apoiados pelas classes dominantes.

Ativar o passado, em um país que despreza sua história e maltrata sua memória, serve para demonstrar que não há nenhuma novidade no uso e abuso político do tema da corrupção. O seu acionamento desavergonhado com objetivos bem distantes do efetivo e necessário enfrentamento desta questão tem sido recorrente na tradição política brasileira. O uso sistemático dessa repetida estratégia política pelas classes dominantes, que não têm nenhum interesse efetivo com a superação da corrupção, pois vivem desses expedientes e dos imensos privilégios, característicos de países muito desiguais.

A reiterada utilização política do tema da corrupção corrompe a vida política nacional e representa uma ameaça constante à frágil democracia brasileira. Quando existe qualquer ameaça, por pequena que seja, ao controle do poder pelas classes dominantes recorre-se ao tema da corrupção para derrotar e/ou derrubar as forças políticas que destonam da visão conservadora, mesmo que as primeiras vítimas de tal investida sejam a democracia e as liberdades públicas.

Desde 2005, o Brasil vive mais um capítulo dessa lastimável telenovela, sem lembrar dos trágicos capítulos anteriores, nos quais não houve enfrentamento da corrupção. A rigor, tais capítulos causaram graves prejuízos para a nação e para a maioria da população brasileira. A partir daquele ano foi se conformando na grande mídia um “jornalismo de campanha”. Algo paradoxal: sob a roupagem aparente do jornalismo se desenvolveu uma verdadeira campanha, que visava desqualificar o PT, suas principais lideranças e a esquerda. Mais uma vez, mobiliza-se politicamente o tema da corrupção para resolver a incapacidade das classes dominantes de vencerem as democráticas eleições presidenciais, como havia ocorrido em 2002 e como iria acontecer em 2006, 2010 e 2014. A grande mídia, ainda que camuflada como jornalismo, assumiu o papel político de fazer oposição aos governos petistas, buscando sistematicamente identificar à esquerda e, em especial o PT, com a corrupção.

O sistema político brasileiro possui características que o aproximem perigosamente da complacência e convivência com a corrupção. Ela termina perpassando quase todos os partidos. Alguns mecanismos existentes – como a prática do caixa dois para financiar campanhas eleitorais, bastante caras no país; o financiamento empresarial de campanhas; as alianças fisiológicas submetidas à lógica do “toma lá, dá cá” sem nenhum compromisso programático; a prática de loteamento político dos cargos públicos, inúmeras vezes sem respeitar as competências exigidas pelo trabalho; dentre outros – tornam a atuação política vulnerável às tentações da corrupção. Apesar do sistema político corroído, nada justifica que políticos abandonem os comportamentos éticos e o compromisso com os interesses públicos, privilegiando escusos ganhos privados.

Alguns políticos do PT sucumbiram às tentações do sistema político corrompido. O mesmo ocorreu com políticos de quase todos partidos, o que demonstra a necessidade democrática urgente de uma profunda reforma política, que corrija tais mecanismos potencialmente corruptores e acabe com certos privilégios inaceitáveis dos políticos profissionalizados. A grande mídia, confirmando sua função de aparelhos ideológicos das  classes dominantes, encobriu a corrupção de políticos de certos partidos, a exemplo do PSDB e outros, e centrou seu ataque cotidiano à esquerda, com destaque ao PT. Ele passou a ser referido, todo tempo, como o grande responsável pela corrupção no Brasil, entronizada como o grande problema nacional. O PT que havia se apresentado no cenário político nacional como um partido democrático de esquerda, comprometido com a superação das desigualdades sociais e com uma postura firme postura ética anticorrupção, pagou muito caro por ter sido consequente com tal atitude. Ele subestimou o estrago que a campanha política cotidiana da grande mídia de associar sua imagem com a corrupção lhe causou.

De 2005 em diante, toda grande mídia, com pouquíssimas exceções, atuou politicamente sob o manto do “jornalismo de campanha”. Inúmeras pesquisas científicas desenvolvidasem diversas universidades e institutos de investigação demonstram como funcionou esse deliberado e contundente “jornalismo de campanha”. Foram infinitas capas de revistas, manchetes de primeira página em jornais diários, “reportagens” em todos os veículos, tempos imensos e inusuais em programas televisivos e radiofônicos, inclusive acionando de modo inescrupuloso informações e notícias falsas, quando achavam necessário para desqualificar o PT e incriminar lideranças, a exemplo de Lula. A desumana perseguição e o implacável linchamento a Lula e sua família configuram uma das maiores e mais vergonhosas campanhas políticas já executadas pela pequenez da grande mídia no país em todos os tempos.

A identificação construída entre PT e corrupção criou condições para viabilizar o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016, que retirou a esquerda do governo federal e derrubou a presidenta Dilma Rousseff, sem que existisse contra ela qualquer acusação de corrupção. Não importava, o tema da corrupção, mais uma vez, era pretexto. Ele criou o clima político de polarização e ódio que facilitou e tornou possível a fabricação do golpe; a cassação da candidatura de Lula em 2018, com base em processo jurídico manipulado com esta finalidade; e, por fim, a ascensão da extrema-direita ao poder federal.

A manipulação do poder Judiciário e do Ministério Público, de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, foram fundamentais para a repetição dessa farsa de usar a corrupção com finalidades meramente políticas. Mais uma vez, a “grande mídia” construiu falsos heróis para intervir na política contra os interesses nacionais e populares.

Novamente a farsa do combate à corrupção serviu para as classes dominantes retomarem o poder, sacrificando a democracia e colocando no governo federal a extrema-direita, com suas milícias, seus fundamentalismos, seu fascismo, sua violência simbólica e física, sua corrupção deslavada, sua agressão aos direitos da população, sua irresponsabilidade no combate à pandemia, sua incompetência em governar o Brasil, sua submissão vergonhosa aos interesses estrangeiros, aos Estados Unidos e a Donald Trump e, enfim, seu ataque ao que resta de democracia e de civilidade no país, na busca da implantação de uma ditadura, único projeto real de Messias Bolsonaro e Paulo Guedes para o Brasil. É preciso estar atento e forte para não deixar outra vez que o tema da corrupção sirva à destruição completa da democracia no Brasil.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade Federal da Bahia. Ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia