Política

Subestimar as classes dominantes, não observar as movimentações estadunidenses e iludir-se com o “esquema militar” de Jango são as raízes do nefasto golpe que durou 21 anos, responsável maior pelo atraso do país

Inicialmente subestimado pela esquerda na época, o golpe civil-militar de 1964 mostrou-se trágico. Reprodução

“Que nenhum cidadão seja assaz opulento
para poder comprar outro, nem tão pobre
para ser constrangido a vender-se”.
(Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social)

Meu estado de espírito sintetiza estes
dois sentimentos: otimismo e pessimismo e os
supera –sou pessimista com a inteligência,
mas otimista com a vontade. Em cada
circunstância, penso na hipótese pior, para
pôr em movimento todas as reservas de
vontade e ser capaz de abater o obstáculo”.
(Antonio Gramsci, Cartas do Cárcere)

O Brasil, historicamente, tem um déficit democrático. Moldado na usurpação do território indígena e na escravidão negra, nunca perdeu o viço autoritário da lógica da Casa-Grande. Apesar de grandes conflitos e revoltas que permearam o país ao longo do tempo: Cabanagem, Praieira, Palmares, Canudos, Revolta da Vacina entre outras, a solução derradeira, era a continuação dos status quo anterior, sem concessões para os vencidos.

A colonização de vastas partes das terras pelo sistema das capitanias hereditárias, acrescida posteriormente por um amplo esquema de grilagem, consubstanciou a forma senhorial-coronelista na formação do campo brasileiro, cujos reflexos se encontram ainda hoje. A dificuldade atroz de se realizar um mínimo de reforma da estrutura fundiária brasileira está na raiz das grandes disputas “pelo alto”, que demarcaram o país desde o Império.

O papel desempenhado pelo exército português, composto em sua maioria por degredados e nativos, na garantia da unidade do território, foi sem dúvida um feito notável, haja vista que a antiga colônia espanhola se dividiu em várias partes formando o atual conjunto de nações da América do Sul, Central e o México, já o império português, não.

Árbitro dos interesses da Coroa, posteriormente do Império e dos senhores das terras, o exército português foi se transmudando em exército brasileiro, pós-Declaração da Independência. Sua estrutura de comando compôs-se dos descendentes de portugueses nascidos aqui, e seu extrato inferior, por brancos pobres, mulatos, indígenas e negros. Sendo o ápice da “integração” a Guerra do Paraguai, com os “voluntários da pátria”.

A quartelada que derivou na Proclamação da República pelos marechais Deodoro e Floriano foi um dos mais claros exemplos de resolução de conflitos entre frações de classe em disputa, sem a participação do povo. Segundo Aristides Lobo (1838-1896), um republicano, “o povo assistiu bestializado à Proclamação da República”.

A Constituição Republicana, de 1891, produzida em grande parte pela lavra de Rui Barbosa, fortaleceu o papel de arbitragem das Forças Armadas e não avançou um milímetro na questão fundiária. Tanto que o período até 1930 ficou conhecido como a “política do café com leite”. Alternando-se no governo os produtores de café paulistas e os produtores de leite das Minas Gerais.

Esse pacto só foi rompido na chamada Revolução de 1930, liderada também por um terrateniente gaúcho: Getúlio Vargas (1882-1954).

Seguindo a lógica das classes dominantes brasileiras, Vargas inicia o maior período de modernização-conservadora do periférico capitalismo brasileiro, sem mexer no campo e inicia as bases da industrialização – dando a largada para a constituição do “moderno” Estado brasileiro.

E a esquerda brasileira com isso?

Incipiente no cenário político da época, os círculos anarquistas e socialistas por inspiração da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, fundaram em 1922 o PCB, cujo nome por extenso era Partido Comunista do Brasil. Sem peso político e completamente descolado do emergente operariado e inexistente no campo, o partido foi mero observador dos acontecimentos de 1930.

O mesmo não se deu com aquele que viria a ser por toda a sua história seu maior líder: Luís Carlos Prestes (1898-1990).

Oriundo das fileiras do Exército brasileiro, o também gaúcho Prestes, no posto de capitão, galvanizou as insatisfações de parte da tropa com o pacto paulista-mineiro e no espírito da sublevação dos “18 do Forte” protagonizou a marcha da coluna militar, que cruzou dezenas de milhares de quilômetros do território brasileiro. Sem sofrer uma derrota. Esse feito de características épicas ficou marcado na história brasileira como a Coluna Prestes, a coluna invicta.

O prestígio adquirido pela coluna não foi o bastante para motivar outros setores da incipiente sociedade civil da época a se sublevarem contra a ordem estabelecida culminando com o exílio na Bolívia de Prestes e outros líderes.

Incapaz de mexer na superestrutura do poder, os episódios dos “18 do Forte”, a marcha da coluna e a insatisfação com baixos soldos na ocasião vieram a dar no que chamamos hoje de “tenentismo”. A revolta da baixa oficialidade do Exército. O primeiro embrião de insatisfação das classes médias na trajetória do país.

Incontestável líder dos militares insatisfeitos, Prestes foi chamado por Vargas para ocupar o papel de chefe militar no movimento que culminou na chamada Revolução de 30. Discordando do que chamou de aliança tenentista-dissidência oligárquica, Prestes recusa a tarefa e lança um manifesto. Ele declarava-se socialista e afirmava que a “mera troca de homens no poder não atenderia às reais necessidades da população brasileira”.

Ouso dizer que a recusa de Prestes e a cooptação dos tenentes sedimentaram o poder tutelar dos militares sobre a nação, cujo espectro perdura até os dias atuais.

Para corroborar essa ideia, lembremos da alvissareira criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL) no início do ano de 1935. Criada por um grupo de intelectuais e militares progressistas, a Aliança para qual acorreram centenas de milhares de simpatizantes foi posta na ilegalidade por Vargas, em menos de seis meses.

A proscrição da ANL veio em um período de franca radicalização dos comunistas, que sob a liderança Prestes deflagraram o movimento militar de 1935,que pela atomização do PCB na época não ultrapassou os limites de alguns quartéis – salvo em Natal, Rio Grande do Norte. Liderada pelo então cabo do Exército Giocondo Dias (1913-1987), a revolta resistiu bravamente por três dias.

Apartados da verdadeira disputa pelo poder, reprimidos e colocados à margem do processo político cotidiano, os setores da esquerda brasileira radicalizaram o discurso e diminuíram sobremaneira a sua já pequena influência na sociedade. Essa aridez de representatividade só começou a ser rompida nos idos de 1945 e 1947, já com o PCB sob o comando de Prestes galvanizando os ares democráticos advindos da derrota do nazifascismo e pela vitória do exército soviético na Segunda Grande Guerra.

A falta de uma cultura democrática, a permanência da lógica de “soluções pelo alto”, o sufocamento midiático do pensamento dissonante e a letargia dos incipientes movimentos populares levaram a proscrição do PCB e a consequente cassação de seus mandatos sem nenhuma resistência social.

A tutela militar

Capturados pelo americanismo, pós-FEB, a maioria do alto comando militar brasileiro rompe com Vargas, força sua destituição e impõe a candidatura do marechal Eurico Dutra (1883-1974), com o apoio do próprio Vargas, como sucessor.

Começa aí o espectro que, como uma espada de Dâmocles, continua pairando sobre as cabeças da sociedade brasileira.

A volta de Getúlio Vargas ao governo, derrotando o brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), candidato da UDN, “nos braços do povo”, enfureceu os setores derrotados. Vargas começou a enfrentar resistências desde o início de seu mandato. Ao assumir posições mais progressistas, viu se constituir um verdadeiro consórcio midiático bombardeando diariamente as ações do governo.

Perseguido e humilhado pela quase inexistente resistência a sua proscrição o PCB, cai na clandestinidade e publica o célebre “Manifesto de Agosto”.

A radicalização do PCB o coloca em franca oposição a Dutra e a Getúlio – recém-eleito, no pleito de 1950. Ao assumir o governo, agora pelo voto popular, aparece um Vargas renovado. Empreende uma lógica de governo nacionalista-modernizante. Investe na industrialização – via substituição de importações e dá início a construção daquela que ainda hoje se mantém como a principal empresa nacional – a Petrobras.

Acossado pelos militares, pelo  udenismo e pela mídia, Vargas, após o “crime da rua Tonelero” que vitimou o major da aeronáutica Rubens Vaz, “segurança” de Carlos Lacerda (1914-1977), é levado ao suicídio.

A perplexidade e revolta popular criada com o sacrifício de Getúlio surpreendeu a todos os setores, inclusive o PCB. A massa enraivecida, quebrou carros da imprensa, depredou redações e “empastelou” até redações de jornais comunistas, pela franca oposição que estes faziam ao então presidente.

A reação popular de agosto de 1954, foi na opinião de vastos setores políticos e acadêmicos, o fato central que interrompeu a lógica golpista militar-midiático-empresarial, por 10 anos.

Freada a insatisfação popular, o jogo de poder se deu com a assunção ao governo do vice-presidente Café Filho (1899-1970), que articulado com as forças conservadoras foi um agente ativo na conspiração contra Vargas.

Nas eleições de 1955, as forças conservadoras lançaram a candidatura do ex-líder tenentista Juarez Távora (1898-1975), líder tenentista, convertido ao udenismo, pós-Vargas, de quem foi um fiel escudeiro antes de 1945. Certos da vitória nas urnas, a reação viu-se derrotada pelo mineiro Juscelino Kubitschek (1902-1976), tendo como vice o herdeiro político de Vargas, João Goulart (1919-1976).

Isolado e fragilizado, o PCB apoiou a chapa Juscelino-Jango e serviu de pretexto para que as forças conservadoras que perderam o pleito por meros 5% dos votos tentassem “impugnar” com o apoio de alguns quartéis a chapa vencedora.

A conspiração contra Juscelino só não teve êxito por conta da ação empreendida pelo marechal legalista, Teixeira Lott (1894-1984), que ocupando o Ministério da Guerra colocou os tanques na rua e garantiu a posse dos eleitos.

Nesse período, mais precisamente em 1956, o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev apresentou no 20º Congresso do partido o seu relatório, no qual o foco central eram os crimes e abusos cometidos pelo então líder máximo do Movimento Comunista Internacional, Josef Stalin.

O relatório promoveu um debate acalorado nas hostes do PCB, ao mostrar os erros propugnados pelo “culto à personalidade” e pela visão acrítica que o partido tinha do que ocorria na URSS.

A tentativa infrutífera de interditar o debate abriu fraturas na organização, ocasionando a saída de muitos comunistas do partido. Destacando-se entre eles o ex--militar Agildo Barata (1905-1968), um dos remanescentes da quartelada de 1935.

A denúncia do “culto à personalidade” pôs a nu o autoritarismo e o mandonismo nas fileiras do PCB, causando questionamento até sobre a figura de Prestes. Até então seu mais representativo líder.

Na esteira da crise do anti-stalinismo e respirando os ares democráticos do governo Juscelino, o partido resolveu atualizar sua linha política, com a aprovação da Declaração de Março de 1958. Ao romper com a linha isolacionista do chamado Manifesto de Agosto de 1950, pela primeira vez o PCB coloca a importância do aprofundamento da democracia, como caminho para o socialismo.

Foi no período JK que o PCB viveu a sua mais longa permanência sem perseguições policiais. Vivia-se em um estágio de semi-legalidade: sua imprensa funcionando a pleno vapor e seus dirigentes atuando de forma completamente aberta. Inclusive Prestes.

Cavalgando o discurso “contra a corrupção” e o excesso dos gastos e do endividamento público, propugnado por Juscelino com a construção de Brasília, elege-se para a Presidência da República o popularesco líder udenista Jânio Quadros (1917-1992).

Pela primeira vez depois de várias tentativas, o udenismo consegue empalmar o comando central da nação. Foi um curto período, pois com sete meses de governo Jânio renuncia, na vã ilusão de voltar ao governo “nos braços do povo”, ou dos militares... não deu em nada.

Antecipando-se a solução natural: a posse do vice-presidente eleito, os militares resolveram intervir no processo, obrigando o governador gaúcho, Leonel Brizola a empreender a memorável campanha da legalidade, que garantiu a posse de Jango.

Nesse ínterim, a esquerda brasileira viveu grandes crises. O PCB até então “soberano” nesse campo, viu nascer de suas fileiras o PCdoB – agrupamento que contou no seu nascedouro com expressivos nomes que compunham historicamente as direções do velho PCB.

Vicejaram ainda as Ligas Camponesas de Francisco Julião e as nascentes Política Operária, a Polop e a AP. A Polop, formada em 1961 por jovens independentes e oriundos das juventudes do PTB e PSB, e a AP de orientação católica nascida a partir de grupos vinculados a JUC e JOC: universitários e operários católicos. Todos questionando o que intitulavam “excesso de moderação” do PCB.

O governo João Goulart, de início parlamentarista, foi eivado de crises políticas desde o seu começo. Ao vencer com folga o plebiscito convocado para a restauração do presidencialismo, em 1963, Jango e seus aliados, dentre eles o PCB, tiveram a doce ilusão que era chegada a hora do “passo adiante”.

Cabe um parêntesis. No final de 1962, o jovem sociólogo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), produziu um ensaio de 52 páginas intitulado: Quem Dará o Golpe no Brasil, que prenunciou o golpe civil-militar de 1964. Apesar da então subestimação de todas as forças de esquerda da época, mostrou-se tragicamente verdadeiro.

Não apostar na construção democrática, subestimar as classes dominantes, não observar as movimentações estadunidenses e acima de tudo iludir-se com o “esquema militar” de Jango são as raízes do nefasto golpe que durou 21 anos e é sem sombras de dúvidas o responsável maior pelo atraso brasileiro, que ainda perdura nos dias atuais.

Alberto Cantalice é membro do Diretório Nacional do PT e diretor da Fundação Perseu Abramo