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A chapa Biden-Harris conseguiu o maior número de votos na história. Foi o pleito com a maior participação. Porém, das urnas emerge um cenário mais complexo do que as celebrações indicam

Biden mencionou que seria um candidato de transição, e Harris representa a passagem para o futuro do partido. Fotos Públicas

A vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata, sobre o republicano Donald Trump, que buscava sua reeleição nas eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos (EUA), tem sido celebrada como um marco para a retomada e fortalecimento da democracia. O contraponto programático, e até mesmo pessoal, oferecido pela chapa composta por um político de longa e conhecida carreira em Washington, DC, Biden, que sempre buscou uma proposta bipartidária (o que os americanos definem como o “walk accross the aisle”) e uma representante da nova geração do partido, Kamala Harris, mulher, negra, filha de imigrantes, é apresentado simbolicamente como exemplo de que é possível mudar.

Esta imagem foi reforçada por Biden em seu discurso na noite de sábado 7 de novembro, ao retomar as palavras-chave do ex-ocupante da Casa Branca, Barack Obama (muito ativo na campanha), a quem serviu como vice: “Yes, we can” (sim, nós podemos). De fato, a chapa Biden-Harris conseguiu o maior número de votos na história das eleições, 75 milhões com a contagem em andamento. Este foi o pleito com a maior participação de eleitores registrados, mais de 65%, em uma votação realizada presencialmente e pelo correio. Porém, das urnas emerge um cenário mais complexo do que as celebrações indicam. É possível fazer um breve balanço das eleições e apontar cenários sobre vencedores, perdedores e empates.

No que se refere aos vencedores, o mais óbvio foi Joe Biden, não só por ter conquistado a Presidência, mas por ter sido capaz de sobreviver ao longo processo democrata de primárias e aos movimentos muitas vezes autofágicos do partido. As habilidades de conciliação e negociação de Biden foram utilizadas não só para atrair republicanos moderados para sua campanha, mas também para aparar arestas internas significativas entre as correntes democratas. Tais correntes, em grossas linhas, podem ser divididas entre moderados e progressistas liberais: na primeira estariam incluídos Biden, Harris, Obama, e na segunda, Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Alexandra Ocasio-Cortez (AOC).

Esta segunda corrente também possui importantes divisões. Enquanto a antiga geração, capitaneada por Sanders e Warren, buscou desde o início declarar seu apoio a Biden, criando uma frente única intrapartidária, a linha simbolizada por AOC (mas certamente não a ela restrita) demonstrou relativa insatisfação. A exposição de rachas em questões como meio ambiente e temas sociais, sintetizados no “novo acordo verde” e no “defund police” (ou seja, retirar o orçamento das polícias) a luz dos protestos raciais, foram instrumentalizadas pela campanha de Trump.

Tal instrumentalização, e o uso de termos como “socialismo/comunismo” para se referir a essas políticas, o fato de que os democratas desejariam reescrever a história dos EUA, atingem diretamente os eleitores mais religiosos e mais conservadores, e mesmo uma classe média de centro. Biden procurou distanciar-se dessas pautas apontadas como “radicais”, que, inclusive, nunca fizeram parte de sua agenda interna ou externa no partido, o que permitiu que caminhasse ao centro. Com isso, pôde mobilizar tanto o eleitorado democrata mais tradicional, em linhas de gênero, raça e classe, como recuperar parte dos votantes da classe trabalhadora industrial, urbana, de classe média.

Se o fantasma da desunião foi afastado no pleito do Executivo, evitando-se repetir o cenário de 2016 que levou à derrota da então candidata Hillary Clinton no Colégio Eleitoral, o mesmo não ocorreu nas eleições do Legislativo. Embora tenham mantido o controle da Câmara dos Deputados, os democratas não conseguiram uma vitória decisiva, e o Senado se encontra indefinido, apresentando empate. A definição somente ocorrerá em janeiro de 2021, com o segundo turno em cadeiras chave na Georgia. Independentemente do que venha a ocorrer nessas disputas, é patente a necessidade de um repensar da agenda democrata por parte de algumas de suas lideranças mais jovens que, como citado, encontram em AOC a sua referência.

Na Georgia e na Casa Branca, mais dois nomes surgem como vencedores: Stacey Abrams e Kamala Harris. No contexto dos protestos raciais do Black Lives Matter, Abrams representa uma etapa avançada dos movimentos dos direitos civis contemporâneos que atinge o núcleo de muitos dos problemas norte-americanos: o acesso à representatividade e à participação em pleitos eleitorais. Nos EUA não basta apenas pedir que o eleitor compareça às urnas, mas fornecer condições para que ele possa exercer o seu direito ao voto. E como garantir o direito ao voto? Com elementos básicos de cidadania que parecem já existir, mas que muitas vezes não estão disponíveis em comunidades mais pobres: acesso a documentos de identidade, cabines e locais de votação presenciais, votação pelo correio. A mobilização do eleitorado afro-americano foi decisiva para a vitória de Biden nas primárias e o acompanhou até a eleição de de 3 de novembro.

No caso de Kamala Harris, a vitória é a da mulher, filha de imigrantes no alto escalão do governo. Biden mencionou que seria um candidato de transição, e Harris representa a passagem entre o passado, o presente e o futuro do partido, já visando a sucessão de 2024 (e as eleições de meio de mandato de 2022). Embora pareça clichê repetir o perfil de Harris, é um movimento inédito que não deve ser subestimado e um avanço em termos de política de reconciliação social. Contudo, basta recordar da eleição de Obama em 2008, e da mesma euforia a ela atrelada, para lembrar a fragilidade da coalizão que levou o primeiro presidente afro-americano ao poder.

Essa fragilidade revelou-se em 2016 com a eleição de Donald Trump que surge como o principal perdedor, assim como o trumpismo. Apesar de algumas análises afirmarem que o trumpismo continuará sem Trump à frente da Presidência, é questionável a durabilidade do movimento sem a possibilidade de mobilização permanente que o cargo estava oferecendo. Outro ponto é que Trump não é a causa, mas sim um sintoma das polarizações.

Trump se distanciou das correntes moderadas do partido que este ano se uniram em torno de Biden (no Republicans for Biden), e que agora condenam o presidente por não aceitar a derrota. Para que o trumpismo sobreviva seria necessário que essa parcela de eleitores e movimentos dentro do partido fosse majoritária e isso não está claro: dos 48% de votos que Trump obteve, quantos são os mais radicais? E não necessariamente estes eleitores mais radicais se manterão associados ao ex-presidente podendo migrar para outros líderes de extrema-direita que professem a mesma agenda.

Nesse sentido, chegamos aos “empates”, que primeiramente se referem aos Partidos Democrata e Republicano, que somente se manterão viáveis eleitoralmente caso gerenciem de forma mais equilibrada suas contradições internas. Adicionalmente, os partidos precisam compreender melhor a heterogeneidade do eleitorado, em particular dos votantes de origem hispânica, cuja diversidade se mostrou no apoio dividido entre os dois candidatos, dependendo do estado.

Em segundo lugar, podem ser mencionadas as coalizões de extrema-direita nos EUA e globais. Embora a perda da liderança de Trump possa vir a ser sentida, outros símbolos e movimentos permanecem ativos, à medida que os problemas que os geram não foram eliminados: xenofobia, misoginia, fundamentalismos religiosos nascem da sensação de perda de lugar no mundo, da crise e exclusão e do preconceito, que já existiam antes de Trump e continuarão existindo.

Em terceiro, há “empate” para as instituições e a Constituição que se encontram imersas em agendas conspiratórias e ameaças de judicialização diante de fraudes não comprovadas. As instituições se demonstram resilientes? Sim, mas já interpenetradas por motivações políticas, vide a nomeação, e confirmação, ainda em período eleitoral da juíza Amy Coney Barret de perfil ultraconservador para a Suprema Corte, que acentuou o desequilíbrio neste órgão entre conservadores, liberais e moderados. Mais uma vez assistiu-se a uma eleição cercada de polêmicas, com dificuldades operacionais e na qual poderia ter acontecido, de novo, a distorção entre Colégio Eleitoral e voto popular, devido ao voto indireto e à desproporcionalidade entre os estados mais e menos populosos.

Por fim, chega-se a mais um empate: como será o mundo e a política externa dos EUA com Biden? Certamente aqui serão observadas alterações táticas: maior ênfase no multilateralismo, reconstrução de laços com aliados, principalmente os europeus, cooperação nos regimes de meio ambiente e direitos humanos (retomada do Acordo de Paris, defesa de direitos sociais e civis de forma secular), um potencial ajuste no combate global à pandemia do coronavírus, e a reconfiguração das relações sino-americanas. Nesse contexto, mantém-se, com outro estilo, a tradicional projeção de poder geopolítica e geoeconômica vigente desde 1945, simbolizada na Pax americana.

Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais na Unifesp e dos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas Unesp/Unicamp/PUC-SP e em Economia Política Internacional na UFRJ. Pesquisadora do Nerint/UFRGS e do CNPq