Política

No ambiente da velha política, por contraposição a ela, explodem novos temas e formas inovadoras de fazer política, que navegam na contramão e confrontam o conservadorismo

A cultura, o feminismo, o antirracismo e os direitos à cidade em campanha marcada pela novidade política e beleza estética. Foto: Facebook/M. Marighella

Grato a todos que leram, comentaram, gostaram e desgostaram do esboço número um. Trato agora de alguns aspectos só tangencialmente tecidos no escrito anterior. Primeiro, talvez seja mais interessante observar na análise as contradições e tensões inscritas nos acontecimentos. E não elaborar uma articulação coerente que configure de modo linear tais acontecimentos, dando-lhes um sentido claro e inequívoco, como pretendia Descartes e sua racionalização do mundo.

A realidade comporta bem mais contradições e tensões que trilhas de sentido unívocas e lineares. A realidade comporta múltiplas relações que a conformam. O conhecimento, mesmo o que se pretende rigoroso e sistemático, apenas é capaz de reter e dar sentido a uma parcela delimitada destas relações. Seu esforço é identificar relações que imprimem marcas profundas aos acontecimentos. Muitas dificuldades turvam tal empreendimento. Como distinguir as relações mais cruciais, aquelas que mais influenciam a constituição do acontecimento? Os critérios para orientar tal procedimento não são nada simples. Como correlacionar relações e acontecimentos? As conexões podem ser muitas e nem sempre evidentes. Enfim, os acontecimentos são bem mais complexos e carregados de relações do que nossas possibilidades de conhecer e de produzir conhecimentos substantivos sobre acontecimentos.

Não cabe aqui desenvolver tal reflexão. Ela só adquire sentido para afirmar que ao invés de tentar costurar visões coerentes e claras de acontecimentos, talvez seja mais rico para o processo de conhecimento rastrear as complementariedades, contradições e tensões que tecem os acontecimentos. A racionalização que despreza as arestas perde junto com elas muitos dos sentidos inscritos nos acontecimentos.

No esboço anterior sugerimos a presença, entre os vencedores das eleições de 2020, dos partidos de adesão ao poder vigente, a exemplo do PP e do PSD, e de partidos mais conservadores e ideológicos, como o DEM. Ou seja, tem-se a vitória da velha política da direita brasileira. Ela se distingue da extrema-direita de Messias Bolsonaro e seu bando. Diferenciados em diversos aspectos e identificados em inúmeros outros, inclusive de fazer parte do mesmo governo federal, ainda que tenham pequenos atritos facilmente superados pela concordância canina com o (ultra)neoliberalismo de Paulo Guedes, em tudo contrário aos direitos da população brasileira e aos interesses nacionais. O retorno da política, em sua versão mais arcaica, afasta o país, pelo menos momentaneamente, do perigo de uma ditadura escancarada, conforme o projeto sempre perseguido por Messias Bolsonaro e seus milicianos, fundamentalistas, pastores, fascistas, negacionistas, militares, terraplanistas e afins.

O golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições antidemocráticas de 2018 geram o clímax da antipolítica. Ela foi confeccionada cotidianamente pela “grande” mídia e pela operação Lava Jato. Com isso, o ambiente político se viu invadido por offsiders. Em 2020 parece haver certa reversão desse panorama de antipolítica e offsiders. Mas sua superação parcial ocorre em detrimento da grande política, como diria Gramsci, com a ascensão da pequena política fisiológica tradicional das classes dominantes brasileiras. O risco da pequena/velha política se consolidar e silenciar conquistas ocorridas até 2016 não pode ser descartado.

Surpreendentemente neste ambiente de vigência da velha política, por contraposição a ele, explodem interessantes novidades: novos temas e formas inovadoras de fazer política, que navegam na contramão e confrontam o conservadorismo. As candidaturas coletivas, por exemplo, saltaram de 13, em 2016, para 257, em 2020, conforme levantamento realizado pelo Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Não que o número já possa abalar os procedimentos tradicionais da política. Mas o crescimento espetacular aponta para uma tendência de modificação e expressa o mal-estar com alguns dos processos vitais da política vigente: as diversas possibilidades de burla da efetiva representação. Nada casual que 67,3% das candidaturas estejam em três partidos de esquerda: PSOL (99), PT (51) e PCdoB (23). Nada desimportante que tal fenômeno não se restrinja apenas aos partidos de esquerda, mas tenha invadido os partidos ambíguos ideologicamente, de adesão a qualquer poder constituído e mesmo aos partidos de direita e de extrema-direita declarados. O cientista político Guilherme Russo chegou aos seguintes dados com base no TSE, além dos anteriormente citados: PDT (11), PSB (9), Rede (8), PV (8),  DEM (6), Podemos (5), PSL (5), Cidadania (4), MDB (3), Avante (3), PP (3), Solidariedade (2), PL (2), PROS (2), PCB (2), PSD (2), PTB (2), Patriota (1), DC (1), PMB (1), PTC (1) e PMN (1). Ou seja, as candidaturas coletivas estiveram presentes em nada menos que 25 partidos brasileiros, em 2020.

Muitas das candidaturas coletivas, em especial aquelas com maior visibilidade, colocaram em cena temas políticos nada convencionais: cultura, meio-ambiente, gênero, questões raciais, temáticas LGBTQI+, agricultura familiar, alimentos orgânicos, dentre outras temáticas agendadas. Assim, não apenas são agendadas publicamente modalidades coletivas de participação político-eleitoral, mas se introduz no âmbito do cenário político temas que normalmente ocupam lugar secundário na atividade política profissional convencional.

Malgrado a sensação de que o resultado eleitoral das forças democráticas poderia ser mais amplo, dada a cruel combinação entre pandemia, maltratada irresponsavelmente, e o pandemônio, que tomou conta do país desde o golpe de 2016, acavalando crises sanitária, econômica, social, ambiental, educacional, ética e cultural. Malgrado sobreviver à dramática conjunção entre pandemia e pandemônio, o avanço da direita conservadora, a derrota da extrema-direita e a sobrevivência nacional da esquerda, as eleições de 2020 trouxeram lampejos não desprezíveis de questionamento e atualização do campo da política no Brasil.

No caso de Salvador, cabe destacar duas campanhas vitoriosas. A de Laina Pretas por Salvador, do PSOL, que incluiu no próprio nome, inscrito no TRE, a designação de pretas por Salvador. A campanha vitoriosa reúne Laina Crisóstomo, formalmente a vereadora eleita, Cleide Coutinho e Gleide Davis. As três co-vereadoras dividirão o gabinete e o mandato para, coletivamente, decidir as deliberações. A outra candidata eleita combina a bela tradição de luta da família Marighella e com perspectivas inovadoras nas modalidades de fazer política e nos temas colocados em cena por Maria Marighella, atriz, gestora cultural, mãe e mulher. A cultura, o feminismo, o anti-racismo, a infância, a memória e os direitos à cidade ganharam centralidade em uma campanha marcada pela novidade política e beleza estética, feita por fora das tendências do PT e das candidaturas priorizadas pelo partido. O protagonismo feminino parece notável no refazer atual da política e da política de esquerda contemporânea.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade Federal da Bahia. Ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia