Política

Um olhar atento sobre os resultados eleitorais das esquerdas reforça a necessidade de se concertar uma estratégia de unidade, para além do horizonte eleitoral, mirando em exemplos dos países vizinhos

Passados quatro anos do golpe, o resultado eleitoral mostra que a esquerda encolheu. Não alcançou os 30% do eleitorado. Foto: Filipe Araújo/Fotos Públicas

O peso do conservadorismo

Vencida a etapa do golpe de Estado, consumada em 2016 e da fraude eleitoral de 2018, a composição de forças políticas conservadoras tradicionais que hegemoniza a sociedade brasileira colhe um maiúsculo resultado nas eleições municipais em 2020. O segundo turno confirmou as tendências do primeiro, como historicamente ocorre desde a instituição das duas rodadas.

Por sua vez, às vésperas de completar dois anos de governo, Jair Bolsonaro, sem partido, colhe uma derrota eleitoral significativa. Seus aliados mais relevantes, nas duas maiores cidades do país, foram atropelados pelas urnas. Russomano, em São Paulo, ultrapassado por Boulos e França, alcançou um magro terceiro lugar; no Rio, o pastor Marcelo Crivella, a mais simbólica representação de Bolsonaro no pleito, foi soterrado pela votação em Eduardo Paes (DEM).

A aposta do presidente de travar a disputa política ancorado apenas na manipulação do “mito”, na figura do “capo” miliciano não vingou no seu primeiro teste eleitoral. Governar o Brasil se revelou algo mais complexo do que administrar o projeto de poder da Igreja Universal do Reino de Deus ou gerir a especulação imobiliária de Rio das Pedras.

O resultado é que Bolsonaro sai do pleito muito mais dependente dos partidos da direita invertebrada, mais conhecida como “Centrão”, para garantir alguma estabilidade nas suas relações com os demais poderes. As eleições para as mesas das duas Casas do Congresso passam a ser cruciais para alcançar o objetivo de chegar a 2022 como candidato viável à reeleição.

O establishment que apoiou o golpe de 2016 interrompeu o processo democrático ancorado na Constituição de 1988 e abriu caminho para o neofascismo chegar ao poder com Bolsonaro – leia-se o sistema financeiro, o agronegócio, Globo, SBT, Record, Band, Folha, Estadão, Veja, legendas conservadores, segmentos do Ministério Público e do Judiciário... –, virou-lhe as costas e buscou por meio dos seus partidos lançar ou reconstruir bases municipais para pôr de pé uma alternativa de continuidade no poder, que seja capaz de cumprir e aprofundar a agenda neoliberal em curso.

Os estudiosos mais atentos cuidam de estabelecer ressalvas relativizando o impacto das eleições municipais – com sua lógica própria – sobre as eleições nacionais previstas para 2022. É oportuno lembrar que depois de sua mais grave derrota em eleições municipais desde sua fundação, em 2016, o Partido dos Trabalhadores foi ao segundo turno contra todos os percalços, com Fernando Haddad para se contrapor a Bolsonaro, dois anos depois...

Não se pode, porém, negar a relevância das eleições municipais como ponto de largada, sobretudo num país de cultura republicana reconhecidamente deficitária, onde o fato de estar à frente do aparelho de Estado significa ter nas mãos um conjunto de instrumentos e recursos que os adversários não dispõem.

O segundo turno confirmou o perfil do primeiro, como afirmei acima, com alguns aspectos relevantes para o conjunto do espectro político. Consolida um avanço expressivo de forças da direita pragmática ou fisiológica, como queiram – alojadas no PSD, PP, Avante, PP, Patriotas, Republicanos e PROS – que souberam se beneficiar do discurso da antipolítica prevalecente nos últimos anos e trabalharam com competência no sentido de reforçar o que há de mais tradicional e eficiente na cultura política oligárquica no Brasil: os laços pessoais, o compadrio, o favor, o clientelismo. Observados os resultados, o PTB de Roberto Jefferson aparentemente perdeu esse bonde.

Essa posição à direita do espectro político, que para sua própria alegria a imprensa corporativa carimbou como Centrão, mergulhou no Brasil profundo. Alcançou resultados importantes nos pequenos municípios avançando, sobretudo, em áreas tradicionalmente ocupadas pelo MDB e PSDB. Ambos minguaram numericamente, mas embora tenham perdido votos seguem sendo os partidos com maior número de eleitores: MDB com 10,9 milhões, seguido do PSDB, com 10,7 milhões de votos. Registre-se o desempenho do DEM, o partido que ocupa a Presidência das duas Casas do Congresso, e saiu de 5,1 milhões, nas eleições de 2016, para 8,3 milhões reforçados pela avassaladora vitória sobre Bolsonaro-Crivella, no Rio de Janeiro. No país que se move em círculos, a velha Arena muda de casca, como as serpentes. Rejuvenesce para que a ordem excludente, herdada da sociedade escravocrata permaneça.

A vitória de Bruno Covas (PSDB) sobre Guilherme Boulos (PSOL), na disputa pela Prefeitura de São Paulo reposiciona João Dória como principal referência da direita convencional para a disputa contra a extrema-direita liderada por Bolsonaro, na campanha de 2022. Controlando o segundo e o terceiro orçamentos da República, a partir de agora Dória tende a ocupar espaços e tornar irrelevantes pretensões, tipo de Luciano Huck, para representar esse campo do conservadorismo.

A “guerra da vacina” caminha para ocupar o centro da disputa entre a direita (Dória) e a extrema-direita (Bolsonaro) na conjuntura, com vantagem para o primeiro, seja agora na virada do ano, quando se registra uma aceleração nos números de infectados e nas taxas de letalidade, seja no início de 2021, quando o país estará na expectativa do início da campanha de aplicação das vacinas.

Como foi noticiado fartamente pelos meios de comunicação, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro suicidou-se na última semana de novembro, como homem público.

Ao mudar sua residência para Washington-DC e assumir como sócio-diretor de uma empresa de consultoria, a Alvarez&Marsal, Moro cuidará dos escombros de empresas, como a Oderbrecht e OAS que, quando juiz, levou à falência. O ex-juiz “imparcial” de Curitiba, para lembrar a expressão de Paulo Henrique Amorim, repete num tempo extremamente breve aquela proeza que assombrou o mundo jurídico: como juiz da 13a Vara, condenou Lula para impedi-lo de se candidatar e disputar a Presidência da República contra Bolsonaro. Eleito Bolsonaro, aceitou alegremente o convite para assumir o cargo de ministro da Justiça do vencedor. Calçando as luvas da Alvarez & Marsal, agora Moro pretende pôr as mãos sobre o dinheiro que resultará da administração da massa falida!

Não imunes a contradições internas, as três forças – DEM, PSDB e MDB – reúnem potencial suficiente para desgastar Bolsonaro, sem partido, e dependente químico da direita mais fisiológica, já nas próximas eleições das duas casas do Congresso.

Cumprida essa etapa, poderão compor a base mais reconhecível como centro-direita capaz de sustentar, sem as excentricidades e os vexames cometidos diariamente por Bolsonaro, a continuidade do projeto neoliberal de liquidação do país, a partir das contra-reformas já realizadas desde o golpe de 2016. Afinal, eles estiveram juntos durante os oito anos do governo FHC e chegaram juntos para a consumação do golpe que derrubou Dilma Rousseff e ofereceu ao país, pelas mãos de Temer, a “Ponte para o futuro”, que nos trouxe ao estado de calamidade em que hoje nos encontramos.

Esse segmento, melhor posicionado e articulado nacional e internacionalmente com os interesses do grande capital será portador de um discurso que vem sendo tecido pela mídia corporativa da “negação dos extremos” para prosseguir no objetivo de interditar as esquerdas da disputa política. E oferecer-se como única alternativa à extrema-direita de Bolsonaro. Se prestarmos atenção aos seus movimentos, vamos concluir que é para esse baile que Ciro Gomes está se convidando... O foguetório da mídia corporativa em torno da derrota do PT nas eleições municipais responde a esse objetivo.

Um olhar para o campo democrático e socialista

Em 15 e 29 de novembro de 2020, os segmentos progressistas do eleitorado brasileiro puniram a estratégia burocrática que ignorou ou subestimou a extensão do cataclismo político provocado pelo golpe de Estado de 2016 e a vitória de extrema-direita em 2018.

Aqueles que deram crédito a essa avaliação, entenderam o golpe como um fenômeno acidental, passageiro, na “nossa frágil democracia...” trabalharam com a convicção de que se tratava de um acidente de percurso e, logo mais adiante, os eventuais solavancos produzidos pela deposição da presidenta eleita, Dilma Rousseff e pela prisão arbitrária e criminosa do ex-presidente Lula, o sistema retomaria seu curso e tudo voltaria ao normal. E entregaram-se à realpolitik, para azeitar a máquina e concentrar-se nas eleições municipais.

Passados quatro anos, desde o golpe, os resultados eleitorais demonstram o equívoco. A esquerda encolheu. Não alcançou os 30% do eleitorado. O que nos obriga a avaliar que o peso do PT no campo das esquerdas nos impõe responsabilidades nas escolhas táticas que assumimos, pelo impacto que podem produzir positiva ou negativamente no próprio partido como no desempenho das demais forças do campo. É evidente que a derrota da tática adotada pelo PT para as eleições de 2020 repercute negativamente no conjunto das forças de esquerda.

Um olhar atento sobre os resultados eleitorais das esquerdas reforça a necessidade de se concertar uma estratégia de unidade, para além do horizonte puramente eleitoral, mirando os exemplos das esquerdas nos países vizinhos – sem veleidades hegemônicas de qualquer natureza – que seja capaz de formular um programa mínimo unificador e uma tática capaz de combater a ofensiva de interdição do campo popular que a direita desencadeou com êxito desde o golpe de 2016.

As experiências de frente de esquerda já no primeiro turno, em Belém com Edmilson Rodrigues/Edilson Moura, em Porto Alegre com Manuela D’Ávila/Miguel Rossetto, em Florianópolis com uma frente ainda mais ampla e algumas outras cidades, independentemente do resultado eleitoral que obtiveram, apontam um caminho inevitável para a superação do exclusivismo e de uma visão sectária que prospera em momentos históricos de defensiva das esquerdas. Mais do que isso apontam um caminho de renovação geracional, étnico e de gênero e de ampliação dos horizontes das pautas que defendemos para enfrentar o neofascismo.

A vitória de Edmilson em Belém e o desempenho de Guilherme Boulos, uma significativa liderança que emerge nas esquerdas brasileiras, em São Paulo, ambos do PSOL, exigem do PT um balanço aprofundado do processo para responder de forma convincente a uma base eleitoral que busca recobrar o elemento distintivo entre esquerda e direita: a participação popular.

E escapar, mais uma vez, dos profissionais do epitáfio que a cada eleição se esmeram em gravar numa lápide sob a qual desejam sepultar para sempre a mais significativa experiência de organização política dos trabalhadores do Brasil: o Partido dos Trabalhadores.

Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo