Internacional

Em sua atuação atribuía particular importância a três áreas: as negociações comerciais, as normas internacionais do trabalho e a ação sindical diante das empresas multinacionais

Kjeld jamais se alinhou com alguma orientação que não emanasse das instâncias da CUT ou de suas convicções políticas pessoais. Foto:Arquivo de Família

Kjeld começou sua militância no Sindicato dos Eletricitários de Campinas. Em 1991, quando foi para a CUT Nacional, o peso econômico das categorias profissionais era decisivo na composição da direção da Central. Kjeld não tinha atrás de si nenhum dos grandes sindicatos que hegemonizavam o novo sindicalismo. À primeira vista, isso poderia parecer uma limitação a sua atuação sindical, mas não foi exatamente o que aconteceu.

Ao longo dos anos em que esteve na direção da CUT, Kjeld ocupou sucessivamente os cargos de primeiro-secretário, secretário de Relações Internacionais, tesoureiro e presidente interino. Foi na área de relações internacionais que ele deixou a maior contribuição, dentro e fora do Brasil, com atuação e reflexão sobre temas e problemas que vão muito além do mundo do trabalho. Um olhar sobre o mundo, título de um de seus livros, é um exemplo da amplitude de suas preocupações. Não é exagero afirmar que Kjeld foi um dos dirigentes sindicais mais internacionalistas de sua geração.

Antes de sua eleição para a Executiva Nacional, a CUT decidiu integrar-se às estruturas sindicais mundiais, filiando-se à Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (Ciols) e ao seu ramo regional, a Organização Regional Interamericana dos Trabalhadores (Orit). Essa decisão somente aconteceu após uma larga discussão entre as correntes internas, sendo algumas favoráveis e outras contrárias à preservação da posição de independência da CUT em relação ao sindicalismo internacional. Kjeld tinha consciência das oportunidades e limitações que essa escolha representava para o sindicalismo latino-americano e brasileiro em particular.

Quando chegou à direção da CUT, a entidade estava dividida entre duas tendências básicas, com visões distintas sobre o papel do sindicalismo na sociedade. Do lado das correntes minoritárias estavam os que defendiam que a CUT deveria se ocupar não somente dos interesses econômicos dos trabalhadores, mas principalmente da luta política pelo socialismo. Do lado da corrente majoritária, estavam os que defendiam um perfil claramente sindical da Central. Embora não fossem indiferentes ao papel político do sindicalismo num país com as imensas desigualdades sociais como o Brasil, os dirigentes deste campo privilegiavam as formas de ação e organização estritamente sindicais. Kjeld integrou a corrente majoritária. Nos congressos e plenárias nacionais das quais participou, seja como delegado eleito, seja como dirigente nacional, nunca deixou de afirmar o perfil sindical da Central.

Na conjuntura em que o país então se encontrava, marcada pelos estágios iniciais do pós-ditadura militar, Kjeld considerava equivocada a defesa ideológica de um sindicalismo revolucionário. Ele entendia que uma consciência socialista não poderia impor-se de fora para dentro. Acreditava que a experiência cotidiana da luta por melhores salários e condições de vida, por meio da mobilização e da greve – quando necessárias –, e da negociação e do acordo coletivo – quando possível –, era o caminho a percorrer.

Nem por isso Kjeld poderia ser considerado um “etapista”, como se buscava rotular os setores moderados do novo sindicalismo. Desde o início ele fez questão de se aprofundar nas questões que pudessem dar substância à solidariedade internacional. Kjeld atribuía particular importância a três áreas de atuação: as negociações comerciais (da Organização Mundial do Comércio, OMC, à ALCA), as normas internacionais do trabalho (da Organização Internacional de Trabalho, OIT, à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE) e a ação sindical diante das empresas multinacionais.

Ele nunca deixou de escutar e refletir sobre as opiniões contrárias emitidas pelos companheiros das demais tendências, que segundo ele tinham contribuído decisivamente na criação da CUT – especialmente nos anos gloriosos, de resistência ao autoritarismo e consolidação do novo sindicalismo. Com seu modo tranquilo, ouvindo mais que falando, Kjeld foi conquistando a confiança e o respeito de todos eles. Tornou-se querido e admirado dentro e fora do Brasil, como agora se pode confirmar em sua despedida. Sentiremos saudades do viking tropical que passou pelo sindicalismo brasileiro.

Embora sendo herdeiro da tradição social-democrata dos países nórdicos, Kjeld tinha restrições às importações de modelos políticos. Assim como outros companheiros da direção nacional, ele acreditava que nem a experiência dos países socialistas – então em franco processo de degenerescência burocrática –, nem a dos países da social-democracia europeia – pelas diferenças econômicas, políticas e culturais em relação a nós – serviriam como modelo para o Brasil. Kjeld apostava no poder da classe trabalhadora brasileira de encontrar um caminho próprio, superior àquelas experiências históricas e ajustado às nossas realidade e cultura latino-americanas.

De fato, os desafios colocados para a classe trabalhadora brasileira começavam a se complicar. Tutelada pelas Forças Armadas – que se unificaram para garantir a impunidade dos crimes praticados durante a ditadura –, a transição conservadora conseguiu separar as lutas pelas liberdades coletivas e individuais, apoiadas pelos partidos da oposição liberal, das lutas pelos direitos econômicos e sociais, defendidos pelos partidos de esquerda, particularmente pelo PT.

A CUT, os movimentos sociais e os partidos de esquerda se viram isolados na luta pela igualdade. A agenda do neoliberalismo se impôs inicialmente nos governos Collor/Itamar, e depois nos governos FHC. Quando Kjeld chegou à Executiva Nacional, a sede da CUT funcionava no Edifício Martinelli, nas proximidades da Bolsa de Valores de São Paulo, onde o patrimônio nacional era vendido na bacia das almas por meio das privatizações. Dali Kjeld assistiu o desmonte do setor elétrico, o “seu” setor profissional, assim como o de tantos outros setores econômicos atingidos pelas privatizações. Para a classe trabalhadora, o flagelo social do neoliberalismo se manifestou por meio do desemprego, do subemprego e da informalidade.

Kjeld conseguiu então o apoio do Centro de Solidariedade da AFL-CIO e, com dados processados pela Fundação Seade, escreveu, em parceria com um dos autores desse artigo, o livro Mapa do Trabalho Informal na Região Metropolitana de São Paulo contendo os resultados de uma pesquisa que fizemos sobre o inchaço do setor informal na região metropolitana e os desafios que isso representava para o sindicalismo. O gosto pelo estudo e pela pesquisa fazia parte de sua vida e o diferenciava de companheiros e companheiras de sua geração.

Desde logo, Kjeld compreendeu que a sua atuação sindical, nacional e internacional, deveria ser uma ferramenta de resistência ao neoliberalismo e ao seu programa de desconstrução da Nação, da democracia e dos direitos sociais dos trabalhadores. Foi por aí que ele foi abrindo o seu caminho não só no sindicalismo como também na administração pública – como secretário de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo – e no mundo político, como assessor do PT, diretor da Fundação Perseu Abramo e colaborador do Instituto Lula.

Kjeld era um autodidata que sabia se apoiar nos trabalhos da assessoria interna e externa ao mesmo tempo em que estabelecia relações construtivas em torno de suas linhas de trabalho. Lia muito e começou a escrever com afinco, gerando uma farta obra, com artigos de opinião, material de formação, livros e, com muito orgulho, uma tese de doutorado em Relações Internacionais, defendida no IRI/USP, em 2016, sob o título “Análise de Política Externa Brasileira: continuidade, mudanças e rupturas no governo Lula”. O fato de ter conseguido fazer, no meio de todas suas outras atividades, essa trajetória acadêmica, de passar com toda sua experiência profissional e já com certa idade da graduação para o mestrado e doutorado, demonstra também uma força de vontade e determinação exemplares; para não falar de uma paciência ímpar para assistir as aulas de “jovens especialistas” em Relações Internacionais, com pouquíssima experiência prática quando comparadas à dele.

Kjeld esteve em inúmeros países. Conhecia e acompanhava a evolução política e sindical da América do Sul, Central e Caribe, nosso entorno de atuação mais próximo e imediato; era respeitado na AFL-CIO, dos EUA, assim como na CLC do Canadá e CSN do Quebec; reconhecido na Cosatu, da África do Sul; admirado na KCTU, da Coreia do Sul; prestigiado nas centrais europeias: DGB, da Alemanha; CGIL, CISL e UIL, da Itália; CCOO e UGT, da Espanha; CGTP-IN, de Portugal; CGT e CFFT, da França, LO, da Noruega, Suécia e Dinamarca, FNV da Holanda... a lista não tem fim.

Sua atuação internacional tinha um propósito objetivo: fortalecer a solidariedade internacional, e, para isso, ele achava que era preciso não só revigorar, mas também democratizar as organizações sindicais e os organismos internacionais. Mais vozes do Sul e mais posições de liderança nas estruturas internacionais ocupadas por sindicalistas vindos dos países periféricos era o caminho a percorrer. Ao mesmo tempo, Kjeld investiu grande parte de seus esforços nas relações sindicais Sul-Sul, apostando no programa de intercâmbio com a Cosatu, da África do Sul, e a KCTU, da Coreia do Sul, com apoio da Fundação Friedrich Ebert, da Alemanha. Dedicou-se também a ampliar o escopo de atuação do movimento sindical internacional ao participar ativamente do Fórum Social Mundial e atividades similares.

Desde o seu surgimento no início dos anos 1980, a CUT foi reconhecida e aclamada pelas centrais sindicais dos países desenvolvidos, especialmente europeus, como uma potencial aliada das lutas sindicais internacionais. A atuação das empresas transnacionais no Brasil era um motivo particular de preocupação do novo sindicalismo, que nasceu precisamente do confronto com essas empresas. Nem sempre, porém, a defesa do emprego, dos salários e das condições de trabalho unificava os sindicatos do Norte e do Sul. Os trabalhadores desconheciam a realidade mundial das transnacionais em que trabalhavam. Kjeld tinha consciência da necessidade imperiosa do sindicalismo internacional promover este intercâmbio, favorecendo ações concretas de solidariedade. Para alcançar esse objetivo ele contou com a ajuda do TIE, entidade europeia de apoio ao movimento sindical para o intercâmbio de trabalhadores das empresas transnacionais, e estimulou as Confederações da CUT por ramo de atividade econômica a seguir o mesmo caminho.

Mesmo as centrais mais amigas da Europa às vezes censuravam certo radicalismo por parte da CUT, considerado por alguns como uma espécie de “doença infantil do novo sindicalismo”. À época não estávamos familiarizados com o que hoje se denomina “colonialidade do poder e do saber”, conceito que desnuda as múltiplas formas de dominação política, econômica, social e cultural sobre o Brasil e a América Latina. Nem por isso deixávamos de reagir a tais censuras. A chegada de um dirigente “dinamarquês” à Secretaria de Relações Internacionais da CUT foi saudada por alguns companheiros europeus como um sinal de “amadurecimento” do novo sindicalismo. “Finalmente”, podem ter pensado alguns desses companheiros, “agora teremos um dos nossos em uma das centrais sindicais mais importantes da América Latina”. Ledo engano. Kjeld jamais se alinhou com alguma orientação que não emanasse das instâncias de decisão da CUT ou de suas convicções políticas pessoais. Não faltam exemplos dessa postura de compromisso político e de lealdade com a classe trabalhadora brasileira.

A introdução das cláusulas sociais nos acordos comerciais bilaterais e multilaterais é um desses episódios em que o assédio que ele sofreu por parte das centrais do Norte não foi menor. O argumento principal dos governos e de uma parte do movimento sindical dos países desenvolvimentos a favor das cláusulas sociais se baseava em princípios fortemente liberais. A ideia central era evitar, por meio da introdução da cláusula social nos acordos comerciais, que os países em desenvolvimento exercessem a concorrência desleal no comércio mundial recorrendo a práticas antissindicais e antissociais. Em tese, isso beneficiaria a todos. Obviamente, a jogada consistia numa armadilha contra os países do Sul, e daria margem para toda sorte de medidas protecionistas contra o Brasil.

As cláusulas sociais contaram com o apoio quase unânime das centrais sindicais dos países desenvolvidos. Posteriormente, o tema foi incorporado na agenda da OMC, dada a importância que adquiriu naquela conjuntura econômica internacional. Kjeld, já então secretário de Relações Internacionais, não queria azedar as relações da CUT com os europeus. Ao mesmo tempo, era indisfarçável que por trás daquelas cláusulas existiam posições protecionistas e paternalistas, potencialmente prejudiciais aos interesses dos países em desenvolvimento. Para não bater de frente com os aliados, Kjeld defendia a agenda que mais tarde viria compor os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, como combate ao trabalho infantil e à fome, defesa da educação básica e valorização da mulher, iludindo a defesa das cláusulas sociais ao gosto do sindicalismo internacional. Ao fim e ao cabo, graças a essa administração política do problema, a CUT finalmente se posicionou, sob a orientação do Kjeld, contra as cláusulas sociais sem gerar nenhuma espécie de atrito com os seus aliados históricos. Por trás dessas movimentações, sem alarde ou bravatas, estava a atuação serena do Kjeld.

Com relação à proposta norte-americana de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), se passou algo similar. A posição inicial da Organização Regional Interamericana do Trabalho (Orit) sobre a Alca era pra lá de ambígua. O último estágio das negociações do tratado comercial viria a ser co-presidido pelos governos dos EUA e do Brasil. FHC tinha orientado o Itamaraty a prosseguir nas negociações, apesar dos imensos riscos que um acordo assimétrico como a Alca representava para o Brasil. Considerando as resistências iniciais do sindicalismo regional de se manifestar claramente contra as negociações, Kjeld se articulou com as centrais canadenses contrárias ao acordo (CLC e CSN, do Quebec), com sindicatos dos EUA afiliados a AFL-CIO e com as centrais sindicais mais combativas da América Latina e Caribe.

As discussões internas na CUT tampouco eram fáceis. O próprio Kjeld estava reticente no início, mas após avaliar todos os elementos da proposta se posicionou contrário. A seu pedido elaboramos duas cartilhas de formação com o objetivo de subsidiar as discussões nos sindicatos de base. A primeira delas intitulada “Alca: a globalização nas Américas: comércio livre, mas trabalhadores nem tanto” (1997) e a segunda “Mercosul, com ou sem direitos: você decide” (1998). Ao mesmo tempo, Kjeld nos orientou a atuar junto às organizações da sociedade civil agrupados na Aliança Social Continental e participar da elaboração do documento “Alternativas para as Américas” (2002), escrito conjuntamente por representantes de redes sociais em favor da integração dos povos e movimentos populares de diferentes países da América do Norte, Central e do Sul.

Mobilizações massivas contra a Alca foram realizadas, entre outros países, no Brasil, Chile, Canadá, México, Argentina, Cuba, Costa Rica entre 2000 e 2002. Em cada encontro ministerial e presidencial da Alca, quando os presidentes e chefes de Estado se reuniam para debater a agenda do livre comércio, se organizavam manifestações de protestos. Algumas memoráveis, como em Montreal, no Quebec, em abril de 2001. Quando Lula tomou posse como presidente, em janeiro de 2003, a armadilha deixada por FHC estava a ponto de ser acionada, com reduzido prazo para a adesão do Brasil ao tratado. A resistência do movimento sindical e social continental, articulada com ampla participação do Kjeld nos anos anteriores, contribuiu para que o recém-empossado governo Lula se opusesse ao acordo. Em seguida, Lula declarou que a Alca era um acordo de “Anexação da América Latina”. Quando empossado, orientou o chanceler Celso Amorim a desmontar a armadilha.

Kjeld nunca deixou de reivindicar que a voz sindical tivesse seu peso na elaboração das políticas dos partidos políticos e que o movimento sindical pudesse, a partir da sua experiência, participar das lutas gerais por uma sociedade mais justa, democrática e com direitos para todos. Ou seja, que o movimento sindical não fosse somente um trampolim para lideranças individuais ou uma correia de transmissão. Em sua passagem pela administração pública, como secretário de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo, ele conseguiu dar concretude a essa postura. Posteriormente, Kjeld foi diretor da Fundação Perseu Abramo (FPA) de 2013 a 2016 e continuou ligado à instituição mesmo depois de deixar a direção. Fez contribuições para as produções do grupo de análise da conjuntura da FPA, como colunista da Teoria e Debate, com artigos para o portal, para os livros e gravações semanais do podcast. Até o final continuou produzindo textos sobre política internacional publicados pela instituição.

Uma de suas últimas atuações no tabuleiro internacional foi integrar, como secretário-executivo, o Comitê em Defesa de Lula e da Democracia no Brasil, presidido pelo ex-chanceler Celso Amorim. Nessa frente de atuação Kjeld buscou, com o afinco e a dedicação de sempre, articular o apoio internacional, particularmente do movimento sindical, em favor do ex-presidente Lula. Mesmo debilitado pela doença, não deixou de se engajar na luta pela justiça e a verdade. Anteriormente, como colaborador do Instituto Lula, ele ajudou na concepção e preparação de eventos internacionais, como o Encontro com Intelectuais Sul-Americanos (2012, SP), o seminário Desenvolvimento e Integração da América Latina (2013, Santiago do Chile), e o colóquio Unasul / Instituto Lula sobre Cadeias Produtivas na América do Sul (2015, SP), promovidos pela Iniciativa América Latina do Instituto Lula.

Kjeld deixará saudades nos amigos e amigas que conquistou pelo mundo afora. Nós, que tivemos a oportunidade de trabalhar com ele, desenvolvemos uma relação de amizade e guardaremos boas recordações desses anos de convivência. Kjeld foi um lutador como poucos, firme e intransigente na defesa da classe trabalhadora. Um companheiro admirado e respeitado por todos, dentro e fora do Brasil. Que seu exemplo de vida sirva de inspiração às novas gerações.

Kjeld Aagard Jakobsen, presente!

Renato Martins é professor de Sociologia e Política da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila - [email protected])

Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC - [email protected])