Economia

A Aliança se propõe a enfrentar o conjunto de desigualdades políticas, sociais, econômicas que produzem e reproduzem a fome, a insegurança alimentar e os padrões de alta concentração da terra

A atenção especial às mulheres se deve à sua importância para a garantia da soberania alimentar. Foto: Arquivo ANPr

A Economia de Francisco e Clara propõe-se a debater e construir "um tipo diferente de economia: aquele que traz vida e não mata, que é inclusivo e não exclusivo, humano e não desumanizado, que cuida do meio ambiente e não o superexplora”. Com o intuito de fazer florescer esta economia o Papa Francisco convocou, a partir de uma carta lançada em 1º de maio de 2019, jovens de todo o mundo para um grande encontro. Voltado para jovens economistas, em sentido amplo, não disciplinar e corporativista do termo, o encontro de pesquisadores, ativistas e empreendedores, visava reunir ecumenismo, ecologia e economia.

A reunião estava prevista para ocorrer de forma presencial em março de 2020 na cidade de Assis, na Itália. Em razão da pandemia da Covid-19, foi adiada e se deu em formato virtual entre os dias 19 e 21 de novembro de 2020 – ficando o encontro presencial para a mesma cidade de Assis em novembro de 2021. Nesse ínterim, foram organizados uma série de atividades, debates e webinars virtuais, assim como iniciados projetos, pesquisas e startups com o intuito de fomentar a construção concreta e colaborativa da Economia de Francisco e Clara. Nestas dezenas de iniciativas que culminaram no evento oficial de novembro último, a interação entre as juventudes foi articulada em torno de doze vilas ou aldeias temáticas pelas quais as juventudes puderam optar. Propositalmente provocativos, os títulos das vilas despertam o interesse e estimulam o "pensamento fora das caixinhas" a partir da disposição de dois elementos cuja economia atual coloca em lados opostos, mas que a Economia de Francisco e Clara entende como complementares: Gestão & Dom; Finanças & Humanidade; Trabalho & Cuidado; Agricultura & Justiça; Energia & Pobreza; Negócios & Paz; Mulheres & Economia; CO2 das Desigualdades; Lucro & Vocação; Negócios em Transição; Vida & Estilo de Vida; e Políticas & Felicidade. Juntas, as doze vilas trouxeram reflexões e soluções para os mais diversos aspectos da economia.

Nos três dias do encontro virtual oficial, as juventudes apresentaram e aprofundaram as discussões dos meses anteriores, bem como propuseram ao mundo novas ideias e configurações a respeito do que deve e pode ser a economia de Francisco e Clara que buscamos construir. À exceção de alguns poucos espaços, todas as sessões foram transmitidas ao vivo e estão disponíveis nos canais da Economia de Francisco no youtube e no canal da Vila Agricultura e Justiça. Importantes figuras do debate público mundial e brasileiro se fizeram presentes, como Muhammad Yunus, Vandana Shiva, Jeffrey Sachs, Leonardo Boff, Vilson Groh, entre outras. Cada uma das vilas apresentou suas trajetórias e alguns dos projetos elaborados pelos jovens. A Maratona foi um dos pontos altos do encontro. Em uma transmissão de 24 horas no ar, um revezamento entre os 115 países envolvidos deu a tônica da diversidade global da Economia de Francisco e Clara. Fez ecoar as vozes, os corpos e sonhos das periferias, bem como as cores das culturas globais.

A participação do Papa Francisco encerrou o encontro com um chamado por ousadia, para "iniciar processos, traçar percursos, alargar horizontes e criar pertenças".

O que construiu a Vila Agricultura & Justiça?

A Vila Agricultura & Justiça foi um dos espaços mais dinâmicos da Economia de Francisco e Clara. Organizou onze dentre os 27 webinars ao longo de 2020 e elaborou onze projetos ligados a temas como reforma agrária, soberania alimentar, encurtamento dos circuitos de produção e consumo de alimentos saudáveis, superação da pobreza rural, reflorestamento, financiamento solidário, promoção de preço justo no sistema agroalimentar, dentre outros. Reuniu 184 jovens de mais de quarenta países. A participação das juventudes brasileiras vem sendo fundamental nessa construção. Com 35 jovens envolvidos, iniciamos e dinamizamos processos locais e regionais no Brasil, assim como buscamos dialogar com diversas organizações sociais ligadas aos temas da luta pela terra, promoção da soberania alimentar e agroecologia e alimentação adequada no campo e na cidade, com ênfase nas periferias.

Provocados pelo nome da Vila, aprofundamos a discussão sobre o que é e o que pode ser uma agricultura justa. O resultado dos diálogos e saberes acumulados até o presente momento está registrado no vídeo elaborado pela Vila e exibido durante a Maratona brasileira. Nosso entendimento de agricultura justa passa, portanto, por uma compreensão ampla e integrada da Casa Comum, da percepção de que os seres humanos fazem parte desse organismo vivo que é o Planeta Terra e de que a oferta de alimentos saudáveis em quantidade, qualidade e preço justo para todos depende de mudanças estruturais no sistema agroalimentar mundial, atualmente controlado por grandes multinacionais. A terra é por nós entendida como direito fundamental em dimensão tripla, pois é ao mesmo tempo terra, teto e trabalho.

Inspirados pelas encíclicas Laudato Si' e Fratelli Tutti e pelas trajetórias de figuras como Ana Maria Primavesi, Josué de Castro, Herbert de Souza e tantos outros lutadores brasileiros, nos dedicamos a pensar a nova economia a partir de temas como reforma agrária e demarcação de territórios indígenas, quilombolas e unidades de conservação da sociobiodiversidade; direito à água; igualdade de gênero; diversidade; saúde humana e da natureza; agroecologia e bem viver; tecnologias e moedas sociais. Também tratamos de políticas públicas endereçadas a questões como: i) a tributação que incentive pequenas associações, cooperativas e demais produtores de alimentos; ii) a regulamentação sanitária que viabilize o acesso aos mercados pelos pequenos produtores e agroindústrias familiares; iii) o fortalecimento da extensão rural pública, gratuita e de qualidade, que respeite a diversidade no campo e o equilíbrio ecológico; iv) compras institucionais voltadas à merenda escolar e ao abastecimento popular; v) pesquisas científicas e inovações tecnológicas para a promoção do bem estar de produtores e consumidores; vi) políticas de crédito e fomento, de estoques e abastecimento, inseridas em um verdadeiro planejamento da safra brasileira, que priorize os alimentos próprios da nossa dieta e cultura alimentares.

Como promover agriculturas justas?

Firmadas as bases que consideramos fundamentais para construir agriculturas justas, foi então possível construir uma agenda que contempla tais fundamentos e joga luz sobre o caminho que está por vir. Aos poucos nossa caminhada convergiu em torno de uma agenda que chamamos de Aliança Mulher Mãe Terra. Essa agenda pretende unir os esforços da vila e foi apresentada como Alleanza Donna Madre Terra no programa Benedetta Economia, da TV2000, por uma das jovens italianas da Vila Agricultura e Justiça.

A Aliança Mulher Mãe Terra enfatiza que “sem mulheres, não há soberania alimentar, nem soberania sobre os recursos genéticos” e firma um compromisso em torno do direito à terra, em especial das mulheres, e da soberania alimentar dos povos.

A atenção especial às mulheres se deve à sua importância para a garantia da soberania alimentar: são elas que reconhecidamente realizam a maior parte do trabalho de proteção das sementes crioulas, o cultivo de hortas e plantas medicinais, o cuidado dos quintais produtivos e o manejo dos animais de pequeno porte. Constituem-se, portanto, como sujeitos ativos no cuidado ambiental e na construção de uma nova cultura com respeito à natureza. A despeito disso, as mulheres rurais e suas crianças estão entre os mais afetados pela fome no Brasil e no mundo. Seu interesse na preservação da terra e das riquezas a ela associadas – águas, ar, sociodiversidade – não configuram, pois uma abstração. Representam, de fato, um esforço de sobrevivência.

A construção já está acontecendo

A Aliança se propõe a enfrentar o conjunto de desigualdades políticas, sociais, econômicas que produzem e reproduzem a fome, a insegurança alimentar e os padrões de alta concentração da terra. Para tanto, visa impulsionar a agenda global do direito à terra e território, da soberania sobre os recursos genéticos e da igualdade de gênero; e construir alianças locais, com ações ligadas à produção e à comercialização dos alimentos saudáveis. Se propõe a reunir em rede ações, pessoas e ideias para fortalecer o que já existe e inspirar novas construções.

A agenda internacional sobre a qual a Aliança pretende incidir em 2021 envolve a Cúpula Mundial da Alimentação, da ONU; o Fórum Geração Igualdade, da ONU Mulheres; e o Fórum Mundial de Acesso à Terra. A ideia é inserir e ecoar, nestes e em outros espaços, as diversas vozes da Economia de Francisco e Clara por meio de intervenções do Papa Francisco que abordem o tema dos direitos das mulheres à terra e de propostas de mudanças nas legislações e políticas públicas que efetivamente promovam desenvolvimento rural sustentável com equidade de gênero.

Já as ações locais que sustentam a mobilização internacional compreendem iniciativas que já estão em curso no Brasil e em outros países do Sul Global e são o anúncio da construção de um novo sistema agroalimentar. Baseiam-se na premissa fundamental do encurtamento dos circuitos de comercialização por meio de atores em rede e de soluções sustentáveis e solidárias que já existem nos territórios, complementadas, acrescidas e impulsionadas por novas soluções a partir da Economia de Francisco e Clara.

No Brasil, quatro delas merecem destaque. A primeira corresponde à rede que conecta grupos de produção e consumo de alimentos saudáveis, envolvendo moedas sociais e outras tecnologias sociais que fortalecem a economia popular e solidária. A segunda trata do abastecimento das periferias urbanas e a eliminação dos desertos alimentares. Envolve ações de agroecologia nas periferias e a estruturação de mercados alternativos e pontos de comercialização de alimentos frescos, saudáveis e a preço justo. A Rede Josué de Castro para a Segurança Alimentar e Nutricional é a terceira iniciativa de referência e visa fortalecer e articular discussões e políticas públicas de segurança e soberania alimentar entre o campo acadêmico, a sociedade civil e os governos dos estados e municípios brasileiros, partindo inicialmente dos estados do Nordeste. Finalmente, a Educação para Vidas Sustentáveis ecoa e fortalece espaços de aprendizagens já consolidados, como escolas rurais, comunidades eclesiais, associações de bairros, universidades, coletivos e movimentos populares que já trilham caminhos por novas economias sintonizadas com a ecologia integral proposta pelo Papa Francisco.

Entendemos, portanto, que o desenvolvimento das capacidades plenas das mulheres e o alcance da soberania alimentar requer que as políticas de acesso à terra estejam articuladas de forma integrada e integral com a estruturação de vias alternativas de comercialização de alimentos. Igualmente, faz-se necessária uma perspectiva ampliada dos sistemas agroalimentares, articulados a processos educacionais e de formação para a cidadania. Assim, mulheres e famílias do campo, das florestas e das águas se conectam com mulheres e famílias das cidades em redes de compartilhamento de alimentos, saúde, solidariedade, cultura e vida.

Assim, a força da Aliança Mulher Mãe Terra da Economia de Francisco e Clara é a sua capacidade de idealizar e articular esforços globais e locais para a reversão das desigualdades históricas e estruturais que se abatem sobre a vida das mulheres e impactam a todos na Casa Comum, catalisando, a partir do Brasil e da América Latina, essa mudança fundamental na direção de uma economia humana e ecológica.

Lilian de Pellegrini Elias é mestre e doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp. Integra a Vila Agricultura & Justiça da Economia de Francisco e Clara

Luiza Dulci é economista e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura pela UFRRJ. Integra a Vila Agricultura & Justiça da Economia de Francisco e Clara

Lea Vidigal é advogada e professora, mestre e doutoranda em Direito Econômico na Universidade de São Paulo. Integra a Vila Agricultura & Justiça da Economia de Francisco e Clara

Andrei Thomaz Oss-Emer é bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Educador na Escola São Francisco de Assis, rede de educação SCALIFRA-ZN. Integra a Vila Agricultura & Justiça da Economia de Francisco e Clara

Ariel Molina é agroecólogo, doutorando em Botânica (INPA). Integra a Vila Agricultura & Justiça da Economia de Francisco e Clara