Política

Um conjunto de mitos sobre as Forças Armadas brasileiras tem passado incólume, há décadas, sem exame e sem contestação na história do país, se enraizando no senso comum

Bolsonaro e Pazuello não conseguem oferecer ao país um plano para enfrentar a Covid-19 com começo, meio e fim. Reprodução Youtube

Foi construído um consistente conjunto de mitos sobre as Forças Armadas brasileiras que tem passado aparentemente incólume, de uma geração a outra, sem exame e sem contestação na história do país e fincou raízes profundas no senso comum. O desgoverno Bolsonaro talvez contribua com o Brasil, ao revelar cotidianamente o embuste e desmoralizá-las.

“Os militares são preparados”

Para quê?

“Já foi dito que o problema central das Forças Armadas é seu desemprego estrutural. Não havendo ameaça externa convincente, atribuir-lhes o papel exclusivo de defesa externa seria condená-las ao desemprego, seria tirar-lhes a justificativa da própria existência”. (CARVALHO, 2005).

O indispensável ensaio de José Murilo de Carvalho, incluído no volume  Forças Armadas e Política no Brasil busca apontar saídas para esse impasse estrutural na identificação e análise das transformações econômicas, políticas, sociais e tecnológicas que o país viveu no último meio século e aponta:

“Tais mudanças abriram espaço para abrigar, como em parte já abrigam, amplos setores das Forças Armadas, dando-lhes uma atividade que as vincule solidamente à sociedade e lhes permita ao mesmo tempo exercer o papel de agentes de defesa da soberania nacional e não de guardas milicianos da ordem.” (CARVALHO, 2005).

O que assistimos hoje no Brasil, com o governo de extrema-direita, francamente, é o desperdício dessa oportunidade histórica que o desenvolvimento do país nos ofereceu. Tudo em nome do reforço de uma ideologia do atraso e da segregação que aparta, há décadas, as Forças Armadas dos desafios concretos do cidadão comum na sociedade brasileira, de tal forma que seus efetivos não guardam vínculos materiais ou identificação cultural com o povo brasileiro.

O último conflito armado real que mobilizou o país contra uma “ameaça externa” se deu entre 1864 e 1870 para destruir uma nação vizinha: o Paraguai. Foi definida por muitos historiadores como um grande “açougue”, uma guerra de extermínio. Ao final, em 8 de abril de 1870, o Paraguai contou centenas de milhares de vítimas da Guerra Grande. Calcula-se algo em torno da metade de sua população à época e aproximadamente 90% da população masculina adulta. A rendição não cessou o massacre de crianças e mulheres, sob o comando do valente Conde D’Eu.

A guerra acabou, pelo menos para os vencedores, há 150 anos, portanto. Neste século e meio, desde então, as Forças Armadas consumiram seu tempo e potencial bélico em reprimir e dizimar as rebeliões populares, no próprio Brasil. Assim foi em Canudos e no Contestado para lembrar dois exemplos mais conhecidos, ou mais recentemente, no vale do Araguaia, no sul do Pará, nos anos 70 do século 20. O que confirma uma realidade irrecusável: à falta de inimigos externos, a mira dos fuzis das Forças Armadas se voltou contra o próprio povo brasileiro.

Há as exceções que confirmam a regra: a anexação do Acre, no princípio do século 20, conduzida pelo gaúcho Plácido de Castro e seus guerrilheiros apoiados por seringalistas e selada pela diplomacia de Rio Branco, com o tratado de Petrópolis. Ali não houve, como se sabe, o envolvimento de tropas das Forças Armadas regulares.

Outra exceção relevante foi o envio, sob alguma pressão popular, dos “pracinhas” da FEB para combater, como forças auxiliares dos exércitos dos EUA na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1942, contra o nazifascismo.

“Os militares são disciplinados”

Não há necessidade de nos estendermos sobre esse mito. O capitão reformado que infelizmente ainda hoje ocupa a Presidência da República, apesar de mais de cinquenta pedidos de impeachment, engavetados na Câmara dos Deputados, é como todos sabem, um exemplo de disciplina… Ainda tenente, Jair Bolsonaro foi para a reserva aos 33 anos com a patente de capitão, em 1988, acusado de planejar atentados contra unidades do Exército para protestar contra os baixos soldos da tropa. Sobre ele, o general Geisel, o quarto ditador dos anos de chumbo, deixou uma definição: “um mau militar”. Expurgado do Exército, dedicou-se a partir daí à carreira política, como parlamentar, por 28 anos. Não conseguiu aprovar um único projeto de lei.

“Os militares são profissionais”

O turbulento século 20 foi pontilhado por intervenções militares. Algumas delas até alimentadas por ideais progressistas.

Desde o movimento tenentista que promoveu os levantes de 1922 (Forte de Copacabana); o 5 de julho de 1924 em São Paulo, quando foi bombardeado o próprio Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo; em 1926 a Coluna Prestes; em 1930 a deposição do presidente da República Washington Luís e a conquista do poder pela Aliança Liberal, Vargas à frente; em 1932, a tentativa frustrada de restauração, liderada pelos barões paulistas do café; em 1934 a nova Constituição; em 1935 o levante da Aliança Nacional Libertadora; em 1937, o golpe do Estado Novo; em 1938, a tentativa derrotada dos integralistas e a consolidação de Vargas. Em 1945 um golpe palaciano depôs Vargas; em 1946 foi elaborada a nova Constituição que prometia o encontro do Brasil com a democracia liberal, duraria dezoito anos. Em menos de duas décadas, Vargas foi levado ao suicídio em agosto de 1954; JK foi eleito em 1955; parcela dos militares armou um golpe para impedir sua posse; e outra se antecipou com um contra-golpe, desferido pelo general Lott, no 10 de novembro, para assegurá-la. Nos seus cinco anos de mandato ocorreram dois levantes de oficiais da Aeronáutica, em Jacareacanga (PA) e em Aragarças (GO). JK passou a faixa presidencial ao eleito Jânio Quadros que renunciou oito meses depois de assumir o mandato. Seu vice, João Goulart, foi impedido de tomar posse como mandava a Constituição, por uma tentativa de  golpe, detida a meio caminho pela mobilização popular liderada por Leonel Brizola a partir do Rio Grande do Sul. O cabo de guerra entre as forças golpistas e as forças populares favoráveis ao vice-presidente legítimo resultou num acordo pelo alto que converteu o regime presidencialista num parlamentarismo de ocasião, que duraria pouco mais de um ano. Em janeiro de 1963, o povo brasileiro, por meio de um plebiscito, restituiu os poderes presidenciais a Jango. Abriu-se assim o capítulo final do período histórico que encerraria a experiência democrática selada com o golpe de abril de 1964.

Todas essas quarteladas e golpes, sem exceção, contaram com o apoio  ou foram dirigidas por militares. As corporações armadas consolidaram ao longo do século 20 uma auto-imagem, uma cultura de que se constituem na reserva moral da nação e, portanto, por um misterioso desígnio divino, têm o direito de exercer tutela sobre a sociedade e o Estado.

Essa recuperação histórica talvez nos ajude a responder a uma pergunta: O que fazia exatamente um general lotado no gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal durante as turbulências que se seguiram ao golpe de 2016 que derrubou a presidenta legítima Dilma Rousseff?

Reproduzo aqui para a informação do leitor, alguns pontos de uma recente – e surpreendente! – manifestação do coronel R-1 Marcelo Pimentel J. de Souza (REVISTA FÓRUM):

“2)... Se uma general da ativa faz política (é/era o que eles fazem/faziam – os generais Pazuello, Ramos, Braga Neto, Rego Barros, respectivamente ministros da saúde, secretaria de governo, casa civil e “porta-voz”) qualquer militar, de coronel a soldado pode fazer também;”

“4) O dever do militar das Forças Armadas NÃO é governar (independente de sua visão político-ideológica, e é livre para tê-la) nem muito menos tutelar o poder político civil”;

“5) O lugar de militares e de forças armadas é no “fundo do palco” não protagonizando as lutas políticas normais e legítimas de uma sociedade”;

“6) pra ajudar a resolver “polarizações” não se deve aderir a um dos polos, muito menos estimular, apoiar ou criar um”.

A manifestação do coronel Marcelo Pimentel nos remete a figuras como Lott, Estilac Leal, Horta Barbosa, cuja memória foi sepultada pelos vencedores do golpe de 1964.

“Os militares são competentes”

Em quê?

O general Eduardo Pazuello é um ícone da competência dos militares. Está à frente do Ministério da Saúde de um país que contabiliza 212 mil mortos pela Covid-19 e não consegue apresentar à sociedade um plano de vacinação contra o mal. Isso num país que ao longo de 40 anos elaborou com seus técnicos e sanitaristas um Plano Nacional de Imunizações e se tornou referência para o mundo.

“A existência do PNI possibilitou a manutenção da aquisição centralizada de vacinas, uma medida que constitui instrumento importante para a promoção da equidade, possibilitando que os municípios mais pobres do país cumpram o mesmo calendário vacinal que os municípios mais ricos. O PNI também propiciou o desenvolvimento de um parque produtor nacional, atualmente responsável por 96% das vacinas oferecidas à população pelo Programa. A política de utilização das vantagens econômicas decorrentes do mecanismo de compra centralizada, combinada com o esforço pelo desenvolvimento tecnológico da produção nacional tem possibilitado a rápida incorporação de novas vacinas, como aconteceu, recentemente, com a vacina oral rotavírus humano (2006), a vacina pneumocócica 10 valente (2010), a vacina meningocócica C (conjugada) (2010), a vacina pentavalente – vacina adsorvida difteria, tétano, pertussis, hepatite B (recombinante) e Haemophilus influenzae tipo b (conjugada) (2012) – e a vacina contra poliomielite inativada”.

“Os êxitos alcançados pelo PNI renderam reconhecimento e respeitabilidade por parte da sociedade brasileira e fizeram dele um programa de Saúde Pública de referência para vários países. O apoio da população às ações de vacinação foi indispensável para o sucesso das ações do Programa, sendo diretamente responsável pelo alcance de coberturas vacinais adequadas tanto nas ações de rotina como nas campanhas de vacinação. Em 2012 a campanha de vacinação contra poliomielite para menores de cinco anos de idade alcançou uma cobertura de 98,9% da população alvo apesar de a doença já ter sido eliminada do país. Outras campanhas exitosas, em anos recentes foram a da rubéola, em 2008 quando foram vacinadas 67 milhões de pessoas e a da influenza pandêmica, no ano de 2010, responsável pela vacinação de 96 milhões de brasileiros. A última campanha de seguimento para manter o sarampo eliminado, em 2011, alcançou uma cobertura de 98,5%, com a vacinação de 16,7 milhões de crianças de um a sete anos de idade. Nas campanhas contra a influenza sazonal, as coberturas alcançadas pelo Brasil são bastante elevadas, comparativamente às de outros países. Em 2011 a cobertura dessa vacina atingiu 86% da população-alvo”. (JARBAS BARBOSA SILVA JÚNIOR, 2013).

Esse é o serviço de saúde pública construído durante anos pela sociedade brasileira que Bolsonaro/Pazuello estão destruindo. O general intendente, terceiro ministro da Saúde, em dois anos de governo, apresentado ao Brasil como especialista em logística é um embuste! E embusteiro é quem o nomeou! Não conseguem, ambos, oferecer ao país um plano para enfrentar em 2021 a Covid-19 com começo, meio e fim e recorrem à enganação e à fraude para responder a uma interpelação do STF. Desmascarada neste momento pelo fracasso do edital para compra de seringas!!!

O Brasil ultrapassa 200 mil mortos. Mais do que nunca, nesse início de 2021 é necessário defender o SUS e suas duas principais âncoras para enfrentar a pandemia: a Fiocruz e o Instituto Butantan como instituições de pesquisa em saúde pública que se desdobram para lutar contra o coronavírus e contra Bolsonaro simultaneamente em defesa da saúde dos brasileiros.

Não há hipótese de vacinação em massa como será necessário, sem ampliar emergencialmente o orçamento destinado ao SUS para seguir salvando as vidas dos cidadãos e cidadãs brasileiras contra a irresponsabilidade criminosa de um governo que insiste em manter a agenda de cortes de recursos destinados aos serviços essenciais à população mais pobre do país, recomendadas pelas reformas neoliberais.

Como fortalecer o SUS? A resposta não é complexa, mesmo para o cérebro dos gorilas que assaltaram o Ministério da Saúde. Com orçamento e aprimoramento da gestão. “Só um Sistema Único de Saúde (SUS) mais forte pode salvar vidas e criar ambiente para recuperar a economia.” (PADILHA). Agora querem tirar R$ 35 bilhões do atual orçamento do Ministério da Saúde, quando o Brasil precisa de vacina já para todos! Por um SUS mais forte, melhor equipado e com o orçamento adequado para cumprir suas funções e proteger a saúde dos brasileiros!

Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é ex-presidente da Fundação Perseu Abramo