Sociedade

O desafio não passa somente por emancipar as mulheres, mas, também, enfrentar a guerra cibernética contra pessoas que se escondem em fóruns, criando fake news, memes e elegendo personas desse grupo

O ciberativismo feminista é uma extensão dos movimentos sociais feministas iniciados nos espaços urbanos. Foto: Marcello Casal/ABr

Os estudos feministas atualmente têm um leque de temáticas para debater, dentre elas, uma possível quarta onda do feminismo. Não é um acordo entre as pensadoras feministas a existência desse fenômeno, podemos aprofundar esse debate em um próximo texto. Contudo, seguiremos a crença, pelo menos nesta escrita, que é possível identificarmos essa nova onda, percebida desde o início dos anos 2000 e é tipicamente latino-americana. Para a professora Marlise Matos (2010) a quarta onda do feminismo passa pela institucionalização das pautas feministas, que, no Brasil, é possível visualizar desde o primeiro dia do governo Lula em 2003 quando criou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) com status de ministério que permaneceu até o golpe contra Dilma Rousseff.

A importância dessa ação se deve ao fato de que a autonomia dada a SPM proporcionou ações concretas de combate à fome, segurança alimentar, física e moradia para as mais vulnerabilizadas. Podemos citar, por exemplo, Lei Maria da Penha, PEC das Domésticas, Lei de Feminicídio e Bolsa Família, que destinava a responsabilidade de saque do valor para as mães.

Matos aprofunda no conceito em sua pesquisa A Quarta Onda Feminista e o Campo Crítico-Emancipatório das Diferenças no Brasil: entre a destradicionalização social e o neoconservadorismo política (2014). A professora reforça a partir de cinco características o conceito de quarta onda do feminismo. A primeira característica é o aprofundamento da concepção de direitos humanos. Os direitos humanos pautados a partir das reivindicações feministas se preocupa com sexo, gênero, cor, raça, etnia, geração, classe social, por exemplo. Esse entendimento é contrário à proposta liberal, que orienta os direitos de maneira abstrata e individual.

A segunda característica apontada por Matos é a ampliação e diversificação das mobilizações sociais e políticas, tomando como exemplo a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), que é composta por mulheres do campo, das cidades, operárias e com legado histórico de protestos contra o capitalismo neoliberal e patriarcado. A terceira característica está ligada ao sidestreaming feminista, ou seja, “uma perspectiva que reforça a discussão sobre discriminação de gênero, mas vai além dela e valoriza igualmente o princípio da não discriminação com base na raça, etnia, geração, nacionalidade, classe ou religião” (MATOS, 2014, p.11). Em outras palavras, é o reconhecimento de outras formas de feminismo que se cruzam e se envolvem das pautas de justiça social, lutas nacionais e globais.

O quarto ponto visto como constitutivo da quarta onda é o mainstreaming feminista, que seria a visibilidade e o destaque para as novas formas de relação com o Estado e de suas muitas instituições. Dessa forma, ocorre a construção participativa de ações transversais, interseccionais e intersetoriais de despatriarcalização das instituições estatais. A quinta e última característica diz respeito à nova forma teórica – transversal e interseccional – de compreensão dos fenômenos de raça, gênero, sexualidade, classe e geração que desdobram-se em ações conjuntas que visam superar as opressões sofridas nessas categorias. Essas ações podem ser construídas em conjunto pelo Estado e pela sociedade civil. É essa concepção que garante a característica da quarta onda como um momento diverso que trouxe para si reivindicações assistidas antes pelos movimentos feministas, mas que se acumulam e trazem o debate da interseccionalidade.

Complemento esse conceito com a característica do ciberativismo, que na perspectiva que quem escreve, é a ferramenta principal de construção da quarta onda do feminismo. O ciberativismo inicia sua atuação em maio de 1993, quando o jornal americano San Jose Mercury inaugurou sua versão online e entrou para a história como o primeiro jornal na web (RIVELLO; PIMENTA, 2008). O movimento zapatista também contribuiu para as primeiras ações do ciberativismo quando em 1994 usou a internet para divulgar suas causas, buscar o apoio da sociedade civil e estabelecer uma rede de solidariedade internacional.

Na época da primeira aparição pública do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), no dia 1° de janeiro de 1994, a internet se limitava a listas de discussão, e-mails e sites feitos para armazenamento de arquivos (RIVELLO; PIMENTA, 2008). Contudo, o maior acesso às redes se inicia no final dos anos de 1990 e blogs feministas como Escreva Lola Escreva ganham notoriedade. A partir dos anos 2000, ocorre uma popularização em massa da internet, se tornando uma ferramenta de interação social, pesquisa e informação. Desde então, o ambiente digital tornou-se parte do mundo físico, já que é a partir dele que os protestos, debates e informações são publicizados majoritariamente. Contudo, não apresenta controle centralizado, dando uma margem mais
elástica tanto para liberdade de expressão, discurso de ódio e visibilidade de diversas temáticas como, por exemplo, de grupos marginalizados ignorados pelo Estado.

Duarte (2016) observa que o feminismo no século 21 se multiplicou em diversas tendências, por isso, atualmente, é mais preciso falar sobre “feminismos”, uma vez que através da atividade cibernética, com feministas blogueiras negras, lésbicas, por exemplo, rompeu-se a hegemonia dos centros de poder cultural. Observamos no ciberativismo a característica da colaboração a fim de “ampliar os espaços de participação em torno de temas, reivindicações e pontos de vista de movimentos sociais (...)” (MORAES, 2018, p.133). Diante da potencialização propiciada pela cibercultura, tal locus se concretizou como mecanismo eficaz ao pleito da autocomunicação de massa (CASTELLS, 2013), fomentando novos tipos de movimentos sociais, em especial através das redes sociais.

A professora escocesa Ealasaid Munro (2013) pontua sobre o ciberativismo, como que a própria internet permitiu uma mudança do feminismo da terceira onda para a quarta onda. Munro aponta que se criou uma cultura de “chamar” as opressões, ou seja, na medida em que aparecem no cotidiano, na publicidade, no cinema, na televisão e na literatura, na mídia e assim por diante, as redes sociais se tornam a ferramenta de exposição dessas ações violentas. As pautas feministas prevalecem e encontraram no ciberespaço um meio de propagação. Reconhecendo que as mulheres são grupos subalternizados por uma cultura patriarcal, englobam o que chamamos de minorias políticas que, desta forma, necessita reivindicar um lugar de fala, o que é potencializado pelas redes.

Munro ainda afirma que a existência de uma quarta onda feminista foi desafiada por aqueles que sustentam que o uso aumentado da internet não é suficiente para delinear uma nova era. Todavia, é perceptível que a internet facilita a criação de uma comunidade mundial de feministas que usam a internet tanto para discussão quanto para ativismo (MUNRO, 2013).

O ciberativismo feminista é uma extensão dos movimentos sociais feministas iniciados nos espaços urbanos. “O que esses movimentos sociais em rede estão propondo em sua prática é uma nova utopia no cerne da cultura em sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade.” (CASTELLS, 2013, p.134). A autonomia a qual Manuel Castells diz surgir dos movimentos sociais em rede, está usando a internet não só com a finalidade de um instrumento de organizar, coordenar ou mobilizar, eles criam condições de uma prática comum inserida na vida cotidiana dos indivíduos.

Os movimentos e protestos criados na rede cria uma ponte de comunicação entre sociedade civil e os grupos envolvidos nas reivindicações, gerando transformações sociais. Essa caminhada em busca da transformação social pressupõe uma mudança de valores culturais ancorados na autonomia, “[...] os quais nascem nos movimentos sociais da década de 1970 e, com crescente intensidade, permeiam toda a sociedade nas décadas seguintes.” (CASTELLS, 2013, p.135,). A autonomia que refiro aqui é a capacidade de um ator social torna-se sujeito de determinação ação ou situação que não está preso às regras e burocracias das instituições. A tomada de decisões não depende delas, mas de um conjunto de compartilhamento feito entre sujeitos conectados em rede.

Para finalizar sobre o conceito e características da quarta onda, utilizo a perspectiva da professora Sônia Alvarez, denominado campo(s) discursivo(s) de ação. Esses campos são “muito mais do que meros aglomerados de organizações voltadas para uma determinada problemática; eles abarcam uma vasta gama de atoras/es individuais e coletivos e de lugares sociais, culturais e políticos” (ALVAREZ, 2014, p.18). Alvarez apresenta esses campos discursivos de ação como uma revisão interpretativa de três momentos nas trajetórias dos feminismos no Sul das Américas: 1) “centramento” e a configuração do “feminismo no singular”; 2) “descentramento” e pluralização dos feminismos e do “mainstreaming” (fluxo ou transversalidade vertical) do gênero; e 3) um terceiro momento, o atual, em que ela apresenta como sidestreaming, o fluxo horizontal dos discursos e práticas de feminismos plurais para os mais diversos setores paralelos na sociedade civil, e a resultante multiplicação de campos feministas. Interessante

Vivemos hoje no que seria o terceiro ponto apresentado por Alvarez e, por isso, aprofundo nele. De acordo com a autora, nos anos de 1990, dentro do contexto de neoliberalismo modernização do Estado brasileiro, houve uma tendência homogeneizadora que invisibiliza setores opostos às ações do Estado naquela década. Esses setores que se opunham à forma neoliberal são os grupos anticapitalistas e o campo feminista brasileiro. Ocorreu uma absorção das questões de gênero pela agenda neoliberal que, com a presença da ONGização e advocacy feminista, ocorrem conflitos e desigualdades profundas como resultados desses debates. Esses conflitos geram novos paradoxos, impulsionando mudanças no campo feminista.

As pessoas silenciadas e marginalizadas pelo neoliberalismo se rebelaram e ganharam maior destaque político a partir do final dos 1990 em toda a região latino-americana (ALVAREZ, 2014). Os grupos que se opunham à agenda neoliberal se organizam e se lançam às ruas e conquistam algumas instituições políticas com a ascensão da chamada onda rosa na América Latina, a partir da eleição de Hugo Chávez, em 1998. No Brasil, a onda rosa chega em 2003, quando o Partido dos Trabalhadores ganha a primeira eleição para o Executivo federal.

Os campos discursivos paralelos se articularam com os feminismos através de movimentações nas ruas lideradas por mulheres e homens atuantes nos mais diversos movimentos, com diversos setores do campo feminista atual, especialmente com o chamado feminismo jovem. É nesse cenário que nos encontramos hoje, também conhecido como a quarta onda do movimento feminista, que se organiza a partir desses campos discursivos, entre redes de comunicação que buscam organizar e difundir as diversidades de categorias que se cruzam e resultam em problematização de privilégios. Existem muitos desafios a serem enfrentados na quarta onda do feminismo. Não é apenas esse fenômeno que possui a internet como ferramenta de disseminação de seus objetivos. Coincidentemente, ou não, a direita também tem utilizado dela para disseminar seus propósitos e tem conquistado uma legião de seguidores.

A direita que utiliza a internet para produzir fake news, memes misóginos, racistas e lgbtfóbicos tem nome: alt-right ou direita alternativa. Essa ultradireita ganhou força em fóruns como 4chan, criado por um adolescente dos Estados Unidos em 2003 que, ainda hoje, é ativo e apresenta em sua maioria usuários anônimos e pouca regulamentação de conteúdo. Fóruns como esse produzem os memes mais usados na internet contra os movimentos feministas, negras e negros e LGBT+.

O alt-right tem uma presença massiva nas redes sociais e outros canais nos quais os homens se reúnem. Uma análise do Washington Post identificou 27 mil contas influentes no Twitter associadas ao alt-right. Nessa pesquisa, 13% das quais são consideradas radicais. De acordo com um relatório da Data & Society, os jovens tendem a encontrar suas notícias nas redes sociais, preferem conteúdo gerado por usuários (por exemplo, vídeos) e não confiam nos veículos tradicionais. Ao mesmo tempo, os jovens buscam conexões emocionais com as fontes e, graças ao viés de confirmação e aos algoritmos online, em espaços onde suas opiniões raramente são contestadas.

O alt-right tem responsabilidade na vitória de Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro, bem como as diversas fake news produzidas desde 2014 no Brasil. Inclusive, a invasão organizada a Capitólio em Washington faz parte desse grupo. A direita alternativa, originada nos Estados Unidos chega ao Brasil com características próprias, mas com diversos pontos em comum ao berço de seu nascimento: o ódio aos direitos conquistados pelas mulheres, o racismo e a revolta contra a comunidade LGBT. O desafio da quarta onda do feminismo perpassa não somente emancipar as mulheres, mas, também, enfrentar uma guerra cibernética contra pessoas que se escondem em fóruns e tem conseguido participar da política mundial, seja criando fake news, memes ou ajudando a eleger personas características desse grupo.

Bruna Camilo é cientista política, doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-Minas. Secretária-Geral do PT de Belo Horizonte, militante da Marcha Mundial das Mulheres e membra da Associação Visibilidade Feminina

Referências Bibliográficas

ALVAREZ, Sonia (2000). A globalização dos feminismos latino-americanos: tendências dos anos 90 e desafios para o novo milênio. In: Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-americanos: novas leituras. ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina; ESCOBRAR, Arturo (orgs): 383-426. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

ALVAREZ, Sonia et al. “Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos”. Revista Estudos Feministas, N° 2, Vol. 11: 541-575, 2003. Disponível em < https://www.scielo.br/pdf/ref/v11n2/19138.pdf> Acesso em Maio de 2020

ALVAREZ, Sonia. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. In: Cadernos Pagu, janeiro-junho de 2014, p.13-56. Disponivel em: < https://www.scielo.br/pdf/cpa/n43/0104-8333-cpa-43-0013.pdf> Acesso em 21 jul 2020.

CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: Movimentos Sociais e Internet. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

DUARTE, Constância Lima. Do grupo à(s) rede(s): perspectivas feministas. In: SANTOS, Salete Rosa Pezi; ZINANI, Cecil Jeanine Albert (org). Trajetórias de literatura e gênero: Territórios reinventados. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016.

LEMOS, Marina. Ciberfeminismo: Novos discursos do feminino em redes eletrônicas. Tese (Mestrado em Comunicação e Semiótica). São Paulo: PUC-SP, 2009.

MATOS, Marlise. “A Quarta Onda feminista e o Campo Crítico-emancipatório das

Diferenças no Brasil: entre a destradicionalização social e o neoconservadorismo político”. 38º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2014. Disponível em: < https://www.anpocs.com/index.php/papers-38-encontro/mr-1/mr20/9339-a-quarta-onda- feminista-e-o-campo-critico-emancipatorio-das-diferencas-no-brasil-entre-a- destradicionalizacao-social-e-o-neoconservadorismo-politico/file> Acesso em: 24 jul 2020.

MUNRO,     Ealasaid.     Feminism:       A Fourth          Wave?     Disponível      em:      < https://www.psa.ac.uk/osa/news/feminism-fourth-wave> Acesso: 22 jul 2020.