Economia

O Brasil atual vê fragilizar sua força institucional, além de diminuir sua capacidade de negociação internacional. A Ford não tem interesse em disputar espaço num mercado consumidor em retração

A face mais cruel da saída da Ford do país é o impacto humano que gera nas regiões onde operava.

No início de 2021, a empresa Ford anunciou o encerramento de suas atividades no país. Depois de 100 anos produzindo no Brasil, a decisão envolveu o fechamento das três plantas industriais remanescentes (Taubaté (SP), Horizonte (CE) e Camaçari (BA)), o término dos contratos com fornecedores e prestadores de serviços e, o mais dramático, a demissão de mais de 6 mil trabalhadores diretos, e dezenas de milhares indiretos1.

Este breve texto objetiva construir algumas interpretações sobre a decisão da multinacional norte-americana, e conta com resultados de uma agenda de pesquisa que conduzimos, Raphael Lima (UFF) e eu. Estrutura-se a partir dos seguintes eixos: a) as razões para o fechamento de uma fábrica; b) a trajetória recente do Brasil em termos da indústria automobilística; c) os incentivos fiscais e os programas setoriais para essa matriz; d)um esforço de diagnóstico sobre as razões pelas quais a Ford foi embora.

Há certa tradição dos campos da Administração, da Economia e da Sociologia Econômica no debate sobre fechamentos de fábricas. Eles são mais fortes em países que observaram desindustrialização, o que parece estar acontecendo no Brasil. É um processo pelo qual passou a Argentina durante e depois da ditadura, o Chile de Pinochet, a península Ibérica e mesmo países desenvolvidos, como a Inglaterra, guardadas as devidas proporções. Os estudos sobre fechamento de fábricas nos dizem que uma fábrica fecha quando ela se torna um entrave para a obtenção de lucros. Isso pode se dar por condições físicas da fábrica (impossibilidade de reestruturações e modernizações, plantas pequenas ou grandes demais, plantas que se tornam custosas pela infraestrutura atrasada na região onde se localiza etc.). Plantas muito antigas também são locais preferenciais para seu fechamento, já que tendem a ter custos de operação mais altos. Outro elemento relevante é o local ou o setor onde aquela indústria opera. Mercados em que o preço importa são mais favoráveis ao fechamento de uma planta que custe muito para seu funcionamento (MacLachlan, 1992; Aláez-Aller; Barneto-Carmona, 2006). Por fim, podemos citar limitações crescentes de uma dada região ao longo da história, o que chamamos de brownfields, regiões em que a densidade industrial aumenta os custos de aluguel, transporte, frete, salários etc. No entanto, nenhuma dessas razões se aplica propriamente ao caso em discussão.

Se as teorias mais tradicionais sobre fechamento de fábricas não nos fornecem respostas precisas, podemos olhar para as últimas décadas no Brasil. No rebote da crise de 2008/9, um importante CEO de montadora de automóveis declarou: “As montadoras vão investir no Brasil. Não interessa o que aconteça”. Mas, aquele Brasil não existe mais. Era um Brasil que licenciava mais de 3 milhões de veículos (Anfavea, 2020) e que, mesmo com a crise mundial, ainda conseguia manter crédito para consumo de bens industrializados duráveis, como os automóveis. Havia linhas de crédito para caminhões e ônibus. Mesmo com demissões e férias coletivas motivadas pela crise, tínhamos ainda 125 mil trabalhadores no setor (Idem), e com menos unidades fabris do que, por exemplo, no início de 2019.

Para se entender aquele Brasil e o país que nos tornamos, é preciso regredir um pouco no tempo. Durante os anos 1990, tivemos duas grandes iniciativas para o setor automotivo, uma mais integradora, que eram as Câmaras Setoriais, outra mais voltada para um protecionismo da produção principal, que foi o Novo Regime Automotivo (NRA). O Novo Regime protegia a produção de veículos, mas acabou deixando descoberto o setor de autopeças, o que teve impacto relevante na cadeia automotiva brasileira. No entanto, foi uma emenda feita ao NRA que facilitou, por exemplo, a implantação da Ford em Camaçari, com o regime especial de incentivos para Norte, Nordeste e Centro-Oeste, depois das contestações feitas pelo então governador eleito do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra2.

Desde meados do primeiro governo de Lula até o ano de 2014, o setor teve bons momentos, seja com expansão do número de unidades produtivas, seja com aumento do número de trabalhadores ou mesmo com políticas salariais bem sucedidas (Anfavea, 2020; RAIS/MTE, vários anos, Dulci, 2015; 2018; s/d). De 2015 a 2016, é verdade, a conjuntura se altera. Diante de uma crise política muito forte, somada à crise econômica que se constrói, os números para o setor se tornam bastante preocupantes. Para se ter uma ideia, a cadeia automotiva localizada no ABC reduz pela metade o número de funcionários (produção de automóveis, caminhões e ônibus e todos os setores de autopeças) (Dulci, s/d). No sul do estado do Rio de Janeiro, o número de empregos reduz-se em um terço entre 2013 e 2016, por exemplo. Camaçari, no entanto, embora tenha sofrido um pouco, mostra grande resiliência e se recupera de forma razoável (Idem). Só para marcar a questão: estamos falando de uma crise mundial no fim da primeira década dos anos 2000 e de uma crise político-econômica que até hoje não se resolveu.

A título de ilustração do problema: os setores mais atingidos por essa crise de 2015 até hoje tinham sido, em Camaçari, os de autopeças (excluídos pneus). No ABC, o setor mais atingido foi o de produção de automóveis. Os empregos com mais cortes ao longo desse período destacado foram os ligados à produção e manutenção, que geralmente são os primeiros a serem cortados (RAIS/MTE, vários anos; Dulci, 2018). Outro dado relevante para esse debate é o da ociosidade, ou da utilização da capacidade instalada. Em 2010, a indústria automotiva operava com utilização de 91% da capacidade instalada. Em 2016 esse número caiu para 64% e hoje está na casa de 70% (CNI, vários anos). Apesar disso, as pesquisas de otimismo do empresariado brasileiro nunca estiveram tão boas. Os índices de confiança do empresário foram os mais altos da série histórica na virada de 2019 para 2020, seguindo em patamar elevado para 2021, tanto na pesquisa da FGV, quanto na pesquisa da CNI (Dulci, 2020; Correio Braziliense, 15/12/2020).

Diante de tantas situações críticas, e atendendo aos interesses de empresários do setor, embora com relativa participação de sindicalistas, o governo Dilma Rousseff formulou o Programa Inovar-Auto. Em linhas muito gerais, o Inovar-Auto oferecia incentivos fiscais progressivos para as montadoras que atingissem uma determinada meta dada pelo programa. O programa previa nacionalização da produção principal, conjunção com setores brasileiros de autopeças (algo impensável de ser plenamente realizado, em função do sistema de follow sourcing adotados por montadoras de automóveis), além de incentivos para pesquisa e desenvolvimento em eletrificação e bônus para redução de emissões de poluentes. As pesquisas em torno da eletrificação são a diretriz para as próximas décadas dessa matriz produtiva, concentrando-se em centros avançados de pesquisa e desenvolvimento, não tendo no Brasil seu lócus fundamental. O máximo que poderia acontecer seria uma adaptação dos motores elétricos para a realidade nacional. O Inovar-Auto acabou sendo condenado na OMC, classificado como uma política protecionista e, como já estava previsto, acabou em 2017. Não sem antes oferecer bilhões em incentivos às montadoras. A Ford mesmo foi uma das beneficiárias (Lima; Dulci, s/d).

Para cobrir o vazio deixado pelo Inovar-Auto, o governo Temer formulou o Rota 2030, que é um programa com os mesmos vícios do Inovar-Auto, mas com menor preocupação com a manutenção dos empregos (Idem). Até o presente momento, não é possível compreender seus efeitos práticos, que talvez sejam inexistentes. Um argumento que defendemos é que, se o Inovar-Auto conseguiu resultados positivos, foi no sentido defensivo, uma vez que não é possível dizer que ele tenha criado empregos novos, tampouco mantido os existentes (Lima; Dulci, s/d). Existe, de certa forma, uma transferência de postos de trabalho entre regiões e montadoras.

A saída da Ford então se deu pelo fracasso das políticas setoriais? Não. Claro que a fragilidade institucional do país diante das corporações internacionais fica bastante nítida quando observamos a sequência dos acontecimentos, mas a questão é ainda mais complexa. Uma decisão desse porte leva tempo. De certa forma, o fechamento da planta de São Bernardo foi um ensaio. Com relação a São Bernardo do Campo, estava no relatório anual apresentado aos acionistas, na virada de 2018 para 2019, que a matriz havia separado algo em torno de US$ 500 milhões para quitar dívidas com fornecedores, pagar as indenizações e retirar os equipamentos (Ford, 2019). Mais: que a empresa decidira sair do mercado de caminhões e ônibus, que o sistema regulatório sobre emissões do Brasil, equivalente ao modelo da União Europeia, era rigoroso demais para uma reconversão tecnológica e que a matriz começava a se incomodar com os constantes questionamentos feitos por estados onde ela não operava sobre os benefícios fiscais que recebera para se manter no Ceará e na Bahia (Dulci, 2021).

No mesmo relatório, a Ford dizia compreender que seu modelo de negócios resultara em prejuízos e prometia para breve uma mudança global em sua estruturação. Os princípios adotados buscavam concentrar a produção em automóveis de maior valor agregado (os SUVs, principalmente, e os elétricos), bem como atender de forma mais precisa as projeções apresentadas ao mercado financeiro (Ford, 2019). Cerca de 80% dos rendimentos de montadoras de automóveis são oriundos do mercado financeiro (Carmo et al., 2018). O mercado financeiro opera a partir de expectativas futuras. Ficar preso ao presente não resulta em maior ingresso de capital por essa via.

Embora o Brasil e a América Latina representem algo em torno de 15% do faturamento da Ford, há três anos que os resultados eram insatisfatórios (Ford, 2019). Nos dois últimos anos registrou-se prejuízo. A venda de caminhões, por sua vez, encontrava dificuldades, e a concorrência nacional era, de certa forma, obstaculizada pelas máquinas da Scania e da MAN (Volks) dominando o mercado de pesados, cujos compradores são corporações, não agentes individuais. A Ford percebeu que investir em uma estratégia agressiva nesse setor, no intuito de reconquistar um mercado difícil, teria custos muito altos. Além disso, outros problemas foram diagnosticados por sindicalistas do ABC Paulista: uma reconfiguração constante do mix de produtos, mesmo quando os existentes eram lucrativos, e a recorrente mudança de presidentes na filial nacional, com as consequentes mudanças de estratégia. Na matriz, os altos custos da eletrificação, além da demora no lançamento dos modelos elétricos de apelo comercial em escala mundial também criaram incertezas (Dulci, 2021). Alguma mudança no modelo de gestão se fazia premente para os acionistas, e o Brasil foi a mudança necessária.

Analistas de ocasião jogam no ar diagnósticos simplistas demais. Acusar o complexo sistema tributário brasileiro não faz sentido em se tratando de uma matriz que recebe tantas isenções. Ainda em meados de 2020, o presidente da Ford Brasil declarou à Folha de S. Paulo que queria reformas que diminuíssem o tamanho do Estado brasileiro, mas cobrava uma política industrial que favorecesse o setor. A reclamação também recaía sobre o BNDES (Folha de S. Paulo, 31/08/2020). O presidente queria que o atual governo, de inspiração chilena, transformasse o BNDES naquilo que era nos governos Lula e Dilma, mas quase que de forma exclusiva para o setor automotivo, de modo a auxiliar na recuperação do crédito para o setor. O argumento tributário ainda esbarra num detalhe importante: a carga dos veículos importados será a mesma, mas sem os incentivos das políticas setoriais brasileiras. Houve ainda analista que defendesse que a reforma administrativa teria salvado a Ford, num argumento contorcionista demais para ser considerado. Claro é que a Ford desistiu, pelo menos pelos próximos anos, do Brasil como território de produção e como mercado consumidor, restando apenas ao consumidor a opção por importar seus veículos.

Outro conjunto de argumentos foram mobilizados em importantes noticiários do país, como a falta de produtividade do trabalhador brasileiro, altos salários, custo de frete, atuação sindical etc. Esses argumentos se chocam frontalmente com as justificativas para a aprovação das recentes reforma previdenciária e reforma trabalhista, cujos objetivos (falaciosos, não custa lembrar) eram a geração de empregos em condições mais flexíveis.

A escolha por Argentina e Uruguai para as operações futuras da Ford ainda são um tanto nebulosas. Não é possível aceitar argumentos como a subvalorização do peso argentino ou a fragilidade institucional em termos trabalhistas, porque o Brasil também está na mesma situação. A resposta provável passa pelas negociações feitas pela Ford diretamente com o presidente argentino, Alberto Fernández, cujo teor ainda precisa ser conhecido.

Em resumo, o Brasil atual vê fragilizar sua força institucional, além de diminuir sua capacidade de negociação no ambiente da geopolítica internacional e dos organismos multilaterais. A Ford, por sua orientação de atuação recente, não tem interesse em disputar espaço num mercado consumidor em retração, onde ela hoje é a quinta montadora em número de vendas (Anfavea, 2020). A face mais cruel dessa decisão, que busquei descrever aqui de forma um tanto fria, é o impacto humano que gera nas regiões onde a montadora operava. A economia de escala gerada por uma planta automobilística é grande, sendo os efeitos de sua deseconomia sentidos na mesma proporção. Com isso, a crise será sentida desde a produção principal até os setores informais que giram em torno de uma fábrica. A maior dificuldade no momento é a reinserção dos trabalhadores. Não há novos postos de trabalho na indústria automobilística (na verdade há postos de menos). A política nacional se volta para a matriz agroexportadora, com um câmbio nas alturas para gerar ganhos rápidos e não duradouros a esse setor. Não existe uma política industrial. De quebra, a ideologia do momento é voltada para a desregulamentação do mercado financeiro, o que tampouco ajuda em investimentos de médio ou longo prazos para a produção. Infelizmente, o horizonte é bastante sombrio.

João Dulci é doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora e membro do Brain/Gedesf

Referências 

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS FABRICANTES DE VEÍCULOS AUTOMOTORES (ANFAVEA). Anuário da indústria automobilística brasileira 2019, 2020.

BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Registros Administrativos. RAIS, vários anos.

CARMO, Marcelo José do; SACOMANO NETO, Mário; DONADONE, Júlio César. Análise da financeirização no setor automotivo: o caso da Ford Motor Company. Nova Economia, v. 28, n. 2, p. 549-577, 2018.

Confederação Nacional da Indústria. Indicadores industriais, vários anos.

DULCI, J.A. Crise, emprego e renda na indústria automotiva: os casos de Sul Fluminense, Camaçari e Grande ABC Paulista em perspectiva comparada. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, aguardando publicação (S/D).

DULCI, J.A. “La Ford se vuelve al sur”. Revista Escuta (digital), 13/01/2020.

DULCI, J.A. “De que tanto riem os empresários? Curiosidades sobre a confiança num mundo alheio à realidade”. Revista Escuta (digital), 12/02/2020.

DULCI, J.A. Configurações do desenvolvimento em duas novas regiões automobilísticas: sul fluminense e Camaçari (BA). Política & Trabalho, n. 48, p. 94, 2018.

DULCI, J.A. Desenvolvimento regional e mercado de trabalho em perspectiva comparada: Vale do Paraíba Fluminense e Camaçari (BA). 2015. 332 fl. Tese (Doutorado em Sociologia), IESP/UERJ, Rio de Janeiro: 2015.

FORD MOTOR COMPANY. (2019), Ford Motor Company Annual Report on form 10-K for the fiscal year ended December 31, 2018. Dearborn.

LIMA, R.; DULCI, J.A. Trabalhando sem a Ford: política industrial e ação corporativa em São Bernardo do Campo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, aguardando publicação (S/D).

MACLACHLAN, I. Plant Closure and Market Dynamics : Competitive Strategy and Rationalization. Economic Geography, Vol. 68, No. 2, Industrial Geography (Apr., 1992), pp. 128-145.