Nacional

Está comprovada a ligação entre a autonomia econômica das mulheres e a melhoria das condições de segurança alimentar e nutricional das famílias

A participação feminina nas modalidades do PAA, em 2018, foi 80% do total. Foto: Conafer

A ampliação da exploração econômica e da dominação política vem colocando cada vez mais setores da população mundial em situação de vulnerabilidade social, obrigando as pessoas a se organizaram ao redor da fome e da miséria. Articular as capacidades das populações periféricas é uma forma de mobilizar o capital social necessário para a mudança desta realidade. A equidade social começa com a superação da fome.

Existem resistências. A agricultura familiar camponesa se articula para a defesa dos seus territórios. A importância da agroecologia e da produção de alimentos saudáveis já é entendida pela sociedade. A necessidade de preservar o meio ambiente como fonte de conhecimentos e vida. A defesa da sociobiodiversidade para renovara multiplicidade do mundo. Um eixo para a luta política: a expansão e o fortalecimento da agricultura familiar camponesa e o direito à alimentação saudável. A superação das necessidades básicas e a luta por direitos coletivos.

Josué de Castro demonstrou que a produção e a distribuição de alimentos não podem ser orientadas apenas por interesses econômicos, devem se subordinar aos interesses da saúde pública. As raízes da fome não são apenas físicas, estão enredadas em inúmeras manifestações da vida das pessoas. A monocultura impôs sérias deficiências alimentares à população regional e o latifúndio contribuiu para a consolidação da fome. “Fui compreendendo que toda a vida dessa gente girava sempre em torno de uma só obsessão – a angústia da fome”.1

A pobreza deste país tem uma raiz negra, indígena e um rosto feminino. Uma construção histórica e social “naturalizada” ao longo dos anos, como mecanismo de perpetuação dos privilégios das elites. As narrativas foram estruturadas para justificar a implantação de um modelo de produção escravocrata e patriarcal. Um sistema de organização social que reduz o sujeito do trabalho a uma mercadoria, doutrinado por uma cultura de submissão e conformismo, socializada pelo pelourinho. Uma violência orientada para a aniquilação da sua identidade enquanto ser humano e para a garantia da exploração sem limites. Enfrentar o racismo e o machismo estrutural é uma condição para o desenvolvimento sustentável.

O retorno da fome

O IBGE divulgou os resultados da Pesquisa sobre Orçamento Familiar (POF) 2017-2018 e os impactos na mídia foram fortes: “Fome no Brasil: em 5 anos, cresce em 3 milhões o nº de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, diz IBGE”2. O percentual de famílias em situação de insegurança alimentar, no Nordeste de 50,34%.

Região Segurança Alimentar Insegurança Alimentar
Total Leve Moderada Grave
Norte 2.151 2.846 1.589 749 508
Nordeste 8.864 8.985 5.318 2.391 1.276
Sudeste 20.682 9.371 6.774 1.733 864
Sul 8.431 2.195 1.621 338 237
Centro-Oeste 3.459 1.878 1.240 387 251
Brasil 43.587 25.275 16.541 5.598 3.136

Fonte: IBGE POF 2017-2018

Fonte: IBGE POF 2017-2018

Comparando a PNAD 2013 com a POF 2017-2018, se observa que a segurança alimentar caiu de 79,1% para 66,8%, onde a pessoa de referência é um homem e de 74,6% para 58,5%, quando é uma mulher. Os domicílios com insegurança alimentar moderada ou grave passaram de 6,9% para 9,3%, onde a referência é masculina e de 10,8% para 15,3%, onde é feminina, como demonstra o gráfico anterior.

Existe um marco legal sobre Segurança Alimentar e Nutricional. A Lei 11.346/2006 criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), assegurando o acesso regular e permanente a alimentos. A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional foi regulamentada, e instituída a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A Emenda Constitucional 64/2010, incorporou a alimentação aos direitos previstos na Constituição Federal. O descumprimento deliberado destes normativos legais trouxe o país de volta ao Mapa da Fome.

A agricultura familiar camponesa, os povos e comunidades tradicionais e a produção de alimentos saudáveis

Uma das características da agricultura familiar camponesa é a relação das famílias com a Terra e com seu Território. Muito mais do que um simples fator de produção, a terra é o seu local de trabalho e vida. Um ambiente no qual a complexidade das relações de interdependência existentes na natureza aflora, determinando um ritmo de produção sustentável e equilibrado com cada bioma. A utilização de sistemas agroecológicos, por resgatarem os saberes ancestrais das comunidades, permite que sejam articulados alguns fatores que geram uma competitividade diferenciada ao trabalho dessas famílias, e que são muito apreciados pelo(a)s consumidor(a)s, a preservação ambiental, a produção de alimentos saudáveis e a independência de insumos químicos.

O conceito de agricultura familiar é amplo, envolve silvicultore(a)s, aquicultore(a)s, extrativistas, pescadore(a)s artesanais, povos indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos e demais povos e comunidades tradicionais. Múltiplas identidades que ampliam e enriquecem o debate sobre estratégias de desenvolvimento, mas que representam um desafio concreto. As importantes diferenciações internas, frutos de processos históricos particulares, demandam uma abordagem territorial que integre a soberania alimentar e a segurança nutricional, com a diversificação da base produtiva, a partir das potencialidades das populações locais.

Estratégias de ação

O trabalho com as cadeias produtivas é uma estratégia de dinamização econômica dos territórios, dando visibilidade aos sistemas agroalimentares existentes nos territórios e implantando unidades de beneficiamento adequadas a cada realidade. Um processo de valorização das pessoas, dos territórios e dos seus produtos, agregando produtividade, eficiência e regularidade à agricultura familiar camponesa e qualificando suas relações com o mercado. Pesquisar informações sobre a produção e o acesso ao crédito:

Identificar, a partir do CadÚnico, as comunidades em situação de maior vulnerabilidade social. Realizar reuniões, junto com os movimentos sociais, socializando as informações e cadastrando as famílias interessadas e com aptidão para as ações que se pretende desenvolver. Alguns critérios mínimos devem ser utilizados nesta seleção, experiência na cadeia e disposição para tomar um financiamento.

Definir sistemas de produção adequados a cada realidade. Respeitar a capacidade e a necessidade de recuperação dos biomas, limitando o uso dos recursos naturais. Ter como ponto de partida os conhecimentos dos grupos locais no manejo dos seus recursos naturais, e os insumos desenvolvidos pela ciência tradicional. Estimular “[...] que o conhecimento local atue como elemento gerador de tecnologias autóctones, capazes de captar o potencial endógeno dos recursos naturais.”3

Adotar uma estratégia de crédito orientado para a produção de alimentos saudáveis, e levar em consideração a capacidade de pagamento das famílias. Utilizar criteriosamente o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) como catalisador do processo produtivo, ampliando os tickets médios das operações e o acesso a subprogramas com maior limite de financiamento por operação, como o Agroecologia, Agroindústria, Custeio e + Alimentos. Investir no beneficiamento da produção, apoiando a comercialização, o acesso ao crédito (em especial para capital de giro) e a gestão das iniciativas existentes. Organizar Núcleos de Apoio às Associações e Cooperativas, qualificar comercialização, acesso ao crédito e gestão. Estimular unidades de beneficiamento de caráter familiar/artesanal nas comunidades. Agilizar a emissão de DAP’s e a revalidação das que foram canceladas indevidamente pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), facilitando o acesso ao crédito e às políticas de apoio à comercialização.

O principal vetor que organiza a produção é a comercialização. Transformar as compras públicas estaduais de alimentos saudáveis, em elementos aglutinadores da ação governamental na região. A compra de cestas básicas da agricultura familiar para atender às populações em situação de vulnerabilidade social é uma prioridade. Realizar oficinas territoriais conjuntas, educação, assistência social e agricultura familiar, facilitando o atendimento das escolas, das famílias mais pobres e a comercialização da produção da agricultura familiar. Integrar, nos territórios, a utilização dos recursos do Plano Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), Plano de Aquisição de Alimentos (PAA) e dos programas estaduais de apoio à comercialização.

A Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) pública deve organizar a demanda das famílias por inovações tecnológicas e sua transição para sistemas de produção agroecológicos, qualificando sua inserção nos mercados. É o principal vetor de integração das políticas públicas nos territórios. Atua para dinamizar as cadeias produtivas da agricultura familiar nos territórios, utilizando as vantagens comparativas do segmento na produção de alimentos saudáveis. Instituir uma Rede Regional Nordeste de Ater que articule e amplie a oferta de suporte técnico e gerencial às famílias e às suas organizações econômicas. Construir, por adesão, redes de Ater, plurais e multidisciplinares, em distintos níveis:

  • Locais, nas comunidades atendidas, com caráter sócio-técnico-pedagógico, formada por agricultore(a)s experimentadore(a)s, escolas e técnico(a)s de campo.
  • Municipais, formada pelas empresas/entidades que atuam no município e por agricultore(a)s representantes das redes locais.
  • Territoriais, formada por empresas/entidades e agricultore(a)s representantes das redes
  • Estadual, formada por empresas/entidades e agricultore(a)s representantes das redes territoriais.

Superar a dificuldade de custeio destes serviços, identificando mecanismos de redução de custos, a exemplo das chamadas públicas. Regulamentar a remuneração da elaboração dos projetos e dos laudos de acompanhamento das operações de crédito do Pronaf, como uma das possíveis fontes de financiamento.

A dinamização das cadeias produtivas da agricultura familiar é base para a superação da pobreza rural e para o desenvolvimento sustentável da região. A ampliação do acesso ao Pronaf e a elevação de seu ticket médio, são formas de viabilizar recursos para as famílias no meio rural, no contexto da pandemia. A expansão e o fortalecimento da agricultura familiar camponesa levam a um novo ciclo de desenvolvimento rural.

Fortalecer o protagonismo feminino

Está comprovada a ligação entre a autonomia econômica das mulheres e a melhoria das condições de segurança alimentar e nutricional das famílias. Apesar de sua dupla e até tripla jornada, é a parcela do trabalho feminino voltada à produção e à reprodução da unidade produtiva familiar que garante um padrão mínimo de qualidade de vida para o conjunto da família. Esse fato fundamenta a acertada decisão estratégica de direcionar o acesso aos benefícios do Programa Bolsa Família aos membros femininos das famílias.

A participação feminina nas modalidades do PAA, em 2018, foi 80% do total. Esses números revelam a importância de medidas para fortalecer o protagonismo feminino na execução das políticas públicas, como é o caso da Resolução Nº 44, que fomentou o acesso de mulheres ao PAA. Avançar na construção de uma estratégia de gênero focada na superação dos problemas da agricultura familiar camponesa como um todo, adentrando na raiz das lutas econômicas das mulheres no meio rural. Destacar a importância da mulher na produção de alimentos saudáveis e na reprodução da unidade produtiva familiar. A autonomia econômica das mulheres é a base para sua emancipação política.

A sociobiodiversidade e os ativos ambientais também estruturam processos sustentáveis de inclusão produtiva, integrando a agricultura familiar, a cultura regional, a gastronomia, o turismo e a fitoterapia. Saberes ancestrais se materializam na economia criativa. E as mulheres são as principais guardiãs desses conhecimentos. Resgatar, nos territórios, as tradições culturais, gastronômicas e fitoterápicas ligadas às cadeias produtivas da agricultura familiar. Articular empresários interessados na valorização da identidade territorial. Uma aliança focada na distintividade, na economia criativa e na sociobiodiversidade, integrando a inclusão produtiva com a preservação dos recursos naturais e a produção de alimentos saudáveis, numa parceria público-privada popular.

UPF em nome de mulheres
Total C/ ATER %
159.860 9.101 5,69
40.238 1.024 2,54
59.730 5.030 8,42
65.396 3.412 5,22
45.002 1.193 2,65
30.126 4.486 14,89
20.253 850 4,2
17.425 1.049 6,02
8.395 1.126 13,41
446.425 27.271 6,11

Fontes: BCB: MDCR 2020 IBGE: Censo 2017

Segundo o Censo 2017, 446.425 estabelecimentos eram chefiados por mulheres na região, e apenas 27.271 receberam assistência técnica. Acessaram o Pronaf, em 2020, 356.681 agricultoras familiares nordestinas, 35,81% do total dos contratos realizados no Nordeste. Quem são essas mulheres? Contribuir para a superação da subordinação econômica das mulheres, conectando suas reivindicações às lutas gerais da agricultura familiar camponesa, enquanto sujeitos de direitos e protagonistas da história. Uma estratégia de gênero que facilite e fortaleça a mobilização das famílias rurais.

Pronaf 2020 NE: O Protagonismo Feminino
UF Pronaf geral (1) Subprograma mulher (2) Percentual (2 em 1)
Recursos Contratos  Ticket médio Recursos Contratos Ticket médio   Contratos Recursos 
BA 412.149.020,89 100.127 4.116,26 10.840.634,84   1.109 9.775,14      1,11   2,63
MA 210.663.410,37 40.724 5.172,95 3.332.244,20 292 11.411,80      0,72   1,58
PE 196.149.612,60 42.555 4.609,32 4.452.741,59 400 11.131,85      0,94   2,27
CE 192.774.985,40 47.955 4.019,91 2.003.161,94 229 8.747,43      0,48   1,04
PI 189.477.002,11 47.897 3.955,93 4.101.397,96 573 7.157,76      1,20   2,16
PB 128.624.881,05 30.252 4.251,78 1.891.052,96 218 8.674,55      0,72   1,47
AL 93.834.896,28 17.074 5.495,78 1.103.319,40 103 10.711,84      0,60   1,18
SE 69.829.841,85 10.645 6.559,87 1.424.640,58 129 11.043,73      1,21   2,04
RN 82.211.802,93 19.452 4.226,39 2.738.239,82 312 8.776,41      1,60   3,33
NE 1.575.715.453,48 356.681 4.417,72 31.887.433,29 3.365 9.476,21       0,94   2,02

Fontes: BCB: MDCR 2020

Bibliografia

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CLEMENTINO, Maria do Livramento Miranda. “A Atualidade e o Ineditismo do Consórcio Nordeste”, in IPEA - Boletim regional, urbano e ambiental, nº 21, Julho/Dezembro 2019, Brasília, Ipea/Dirur, 2019

CONTAG – Documento Base: 13º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares, Brasília, Contag, 2020

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IBGE – Censo Agropecuário 2017, Resultados Definitivos, Rio de Janeiro, IBGE, 2019

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Eugênio Conolly Peixoto é consultor em desenvolvimento rural sustentável e superação da pobreza rural. Foi Secretário de Reordenamento Agrário no Ministério do Desenvolvimento Agrário no primeiro mandato de Lula. Atualmente é secretário Executivo do Fórum dos Gestores e Gestoras da Agricultura Familiar do Nordeste e secretário Técnico da Câmara Temática da Agricultura Familiar do Consórcio Nordeste