Internacional

Os sinais de alerta de emergência ambiental norte-americana e planetária pressionaram o retorno dos EUA à Convenção Quadro das Nações Unidas e a realização da Cúpula de Líderes sobre o Clima

O movimento de Biden, não negacionista da grave situação do meio ambiente, decorre de compromissos assumidos com a ala esquerda do Partido Democrata. Foto: Reprodução

A Cúpula de Líderes sobre o Clima reuniu quarenta chefes de Estado e de governo a convite do presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, entre 22 e 23 de abril, em Washington-DC, para assinalar o retorno dos EUA à agenda climática e testar a liderança norte-americana, buscando junto aos demais países o compromisso com metas mais ousadas para redução das emissões de carbono do que aquelas antes firmadas, em 2015, no Acordo de Paris.

Esse acordo propôs limitar, entre os anos 2030 e 2052, o aumento de temperatura entre 1,5º C a 2º C, tendo por linha de base níveis pré-industriais, buscando, ainda, ampliar a capacidade dos países de se adaptarem às mudanças climáticas inevitáveis.

O Relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM), publicado três dias antes da Cúpula, constatava que os 20 anos mais quentes foram registrados desde 1996, destacando-se, na série histórica dos últimos 28 anos, os de 2016, 2019 e 2020. O relatório faz graves advertências sobre a situação ambiental no mundo: as emissões de gases de efeito estufa continuam crescendo; o nível do mar, sua acidificação e seu aquecimento seguem se elevando; no Ártico, diminui a extensão de gelo marinho, e a Antártica vive um processo de degelo acelerado; assim como aumentaram os deslocamentos populacionais devidos a desastres climáticos em paralelo com a insegurança alimentar, que foi agravada pelo advento da pandemia da Covid-19.

Em 2020, segundo a OMM, "desastres climáticos e meteorológicos de bilhões de dólares afetaram os Estados Unidos", incluindo áreas de calor acima da média; o registro do sexto inverno mais quente entre 2019/2020 e, ao mesmo tempo, tempestades de neve, episódios de frio extremo, nevascas generalizadas, tempestades de gelo e temperaturas frias inéditas fora do Alasca. O impacto da Covid-19 havia deixado mais de 570 mil mortos, nos EUA, até meados de maio de 2021, e, proporcionalmente, o país estava entre os cinco com maior número de mortes no mundo.

A participação dos EUA nas conferências climáticas tem sido aleatória, reativa e agressiva. Não ratificaram o Protocolo de Quioto, na década de 1990, e, por decisão de Trump, se retiraram do Acordo de Paris. Porém, os sinais de alerta de emergência ambiental norte-americana e planetária pressionaram o retorno do atual governo dos EUA à Convenção Quadro das Nações Unidas e a realização da Cúpula de Líderes sobre o Clima. No que diz respeito ao Partido Democrata, esse movimento proativo da Casa Branca de Biden, não negacionista da grave situação do clima e do meio ambiente, decorre de compromissos assumidos com a ala esquerda do Partido Democrata, cujos expoentes são Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, representantes da plataforma Green New Deal.

Na abertura da Cúpula, os EUA dobraram as metas da Contribuição Nacional Determinada (NDC)1 que haviam apresentado em Paris, assumiram o compromisso de reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em 50% a 52% até 2030, em relação a 2005, e anteciparam o compromisso com a neutralidade climática para 2050. Seguindo a mesma proporção e horizonte temporal, a União Europeia comprometeu-se com a redução de 55% de suas emissões e o Reino Unido com 68%, ambos em relação a 1990, e o Japão com 46%, em relação aos níveis de 2013. Os demais países mantiveram os compromissos firmados na COP 212.  Oficialmente será na COP26, em Glasgow, entre 1 e 21 de novembro de 2021, que as NDCs deverão ser renovadas ou atualizadas.

É preciso, contudo, ficar claro que a agenda de Biden é menos abrangente do que o Green New Deal. Bernie Sanders, além de propor a volta ao Acordo de Paris, com metas mais ambiciosas de redução das emissões domésticas – 71%, até 2030 –, reconhecia a contribuição histórica dos EUA para as emissões de GEE e comprometia-se com um aporte de US$ 200 bilhões ao Fundo Verde para o Clima (GCF), instância criada para financiar projetos ambientais no mundo em desenvolvimento. O Novo Acordo mobilizaria US$ 16,3 trilhões e visava objetivos ambiciosos, tais como um sistema público de geração de energia 100% renovável, a criação de 20 milhões de empregos e a justiça ambiental com a inclusão de comunidades negras, indígenas e outras minorias. Os recursos de fomento viriam da taxação das grandes corporações, especialmente, das petrolíferas, que perderiam todos os seus subsídios governamentais.

Biden contornou as propostas de Sanders e lançou dois projetos com “metas verdes", as principais foram "o apoio aos mercados na produção de veículos elétricos e outros programas para a redução das emissões de dióxido de carbono"3. Essas metas estão no âmbito do chamado Plano de Resgate Americano (ARP), de US$ 1,9 trilhão, financiado com déficit público, e do Plano de Emprego Americano(AJP), de US$ 2,3 trilhões que tem por objetivos um programa de infraestrutura e a transição ecológica e será financiado com a elevação de imposto sobre as empresas de 21% para 28%, desfazendo parte do corte de cerca de 35% promovido por Trump. A implementação desse plano está prevista para os próximos oito anos, implicando aumento anual do gasto público em "apenas um ponto percentual do PIB"4.

Para enfrentar a pandemia e o desemprego, o ARP propõe a distribuição de "US$ 1.400/mês para pessoas que ganham menos que US$ 75 mil/ano, pensões mensais para crianças, seguro saúde de emergência e um benefício semanal de US$ 300 para os desempregados"5, além de recursos para custear a vacinação e o apoio a estados e municípios. Esses recursos são menores que os do Care Act de Trump, que destinou, em 2020, US$ 2,9 trilhões para o enfrentamento da pandemia e US$ 4,54 trilhões para corporações não financeiras. Como alerta Susan Watkins sobre o ARP, "esses pagamentos são únicos ou temporários e não alteram a reprodução sistêmica das desigualdades. O plano é uma rede de segurança de emergência, nas palavras de um crítico, ou de bem-estar sem estado de bem-estar"6.

Os investimentos do AJP são destinados a estradas, pontes, rodovias e 142 portos; a uma rede de recarga nacional de veículos elétricos; ao enfrentamento da poluição atmosférica nas comunidades negras e hispânicas próximas a portos ou usinas petrolíferas; à construção de “residências verdes” sustentáveis com financiamentos acessíveis a população de baixa renda; à indústria de transformação americana para renovar a rede elétrica do país; criar uma rede nacional de banda larga de alta velocidade, bem como reformar os sistemas de água a fim de garantir água potável.

Biden é explicito quanto aos seus objetivos de utilizar o pacote para reconstruir a coesão interna do país e avançar na competição pela hegemonia mundial com a República Popular da China (RPC). O protagonismo internacional chinês cresceu muito nos últimos anos, sustentado em iniciativas como o "One Belt One Road" e, na ausência da disputa dos EUA, durante a presidência de Trump, em vários fóruns multilaterais, como no Acordo de Paris. Nesse período, a RPC conquistou várias agências importantes da ONU como as que tratam da aviação civil, de Telecomunicações, de Alimentação e Agricultura e a do Desenvolvimento Industrial, além de tornar-se um dos principais financiadores do organismo7.

No Acordo de Paris, a China se propôs a reduzir as suas emissões de gases de efeito estufa em 60% até 2030 e atingir a neutralidade de carbono até 2060 e durante o 14º plano quinquenal anunciou a pretensão de controlar tanto a geração de energia a carvão quanto o seu consumo. Estimam-se investimentos de cerca de US$ 15 trilhões até 2050 na transição do país para uma Civilização Ecológica (CE) impulsionada por políticas ambientais como as ecocompensações, que tornaram o país o maior pagador de serviços ambientais, no mundo, segundo o Banco Asiático de Desenvolvimento8.

O esforço de transição ecológica da RPC tem sido disseminado por meio da intensificação da publicação de artigos científicos sobre a CE e financiando projetos ambientais, especialmente, no âmbito da Cooperação Sul-Sul9. Cabe a Joe Biden demonstrar que os EUA são mais capazes de usar a inteligência do que se acomodarem ao manejo do tradicional Big Stick, em especial no que concerne aos países subdesenvolvidos. Como disse o tribuno romano Cícero, vale repetir neste mundo que resgatou a bipolaridade política global o seu dito latino: “O tempora, O mores”.

Nas negociações internacionais sobre o clima, os países em desenvolvimento têm defendido o Princípio de Responsabilidades Comuns porém Diferenciadas (PRDC) e o Princípio das Responsabilidades Históricas (PRH), como voltou a fazer Xi Jinping na Cúpula de Líderes, em Washington. Esses princípios estão associados às reivindicações do BASIC (Brasil, África do Sul, Índia e China), em todas as cúpulas climáticas, desde 200910. Considerando-se que as emissões são cumulativas, faz sentido cobrar dos países centrais maiores responsabilidades. Ressalte-se que na vigência do Protocolo de Quioto as metas climáticas eram vinculantes apenas para os países desenvolvidos, no Acordo de Paris elas o são para todos os 196 participantes da Convenção Quadro da ONU.

Por isso, a importância do compromisso dos países desenvolvidos de contribuírem com US$ 100 bilhões por ano, a partir de 2020, para os esforços dos países em desenvolvimento no combate à mudança do clima. Esses recursos, contudo – consensualmente insuficientes para as medidas de adaptação e mitigação nesses países11 – ainda não estão garantidos e deverão ser um dos temas mobilizadores da COP 26. A ex-presidenta Dilma Rousseff e o presidente da RPC haviam se comprometido, em 2015, a não reivindicar recursos desse fundo para cumprir suas metas.

Durante a Cúpula de Líderes, foram realizadas sessões especiais sobre a necessidade urgente de aumentar o financiamento das políticas ambientais; da adaptação e resiliência às mudanças climáticas; do debate da questão em todos os níveis, incluindo governos subnacionais e a sociedade civil.

Além da sessão sobre segurança climática, que indica a preocupante emergência do planejamento de soluções militares para enfrentar as questões ambientais, nessa reunião foram discutidos, por exemplo, o plano de ação da Otan para a segurança climática e a incorporação de considerações ambientais nas missões de paz da ONU. Na ocasião, houve a primeira reunião do secretário de Defesa dos EUA com seus correspondentes de vários países sobre o tema, que foi acompanhada por importantes membros do governo norte-americano, como o diretor de Inteligência Nacional, o embaixador dos EUA nas Nações Unidas, o secretário-geral da Otan e oficiais de defesa do Iraque, Japão, Quênia, Espanha e Reino Unido, entre outros12.

O Brasil tem peso estratégico considerável na agenda climática global, porque abriga 60% da maior floresta tropical do mundo. A Amazônia é responsável pelo armazenamento de aproximadamente 120 bilhões de toneladas de carbono e detentora da maior biodiversidade do planeta, atualmente ameaçada pelas políticas destrutivas do governo Bolsonaro. Verificam-se hoje as mais altas taxas de desmatamento na Amazônia desde 2008, alcançando o patamar de 11.088 Km2, em 2020, ou seja, 250% acima da meta estabelecida na Política de Mudanças Climáticas aprovada em 2009.

O governo brasileiro, na prática, tem encorajado atividades ilegais na região, tais como a mineração em terras indígenas e a extração de madeira não certificada. Somam-se a essas o incentivo ao cultivo da soja e a pecuária extensiva, além de propor a anistia de multas e a convalidação da grilagem de terras, a flexibilização do licenciamento ambiental, a redução dos recursos para o Ministério do Meio Ambiente, o desmonte de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBIO). O governo Bolsonaro, de forma drástica e objetiva, impacta as emissões de GEE pelo Brasil, que têm no desmatamento e na conversão do uso da terra para agricultura e pecuária extensiva a responsabilidade por 70% de todas as emissões domésticas.

Essa realidade é conflitante com os compromissos assumidos pelo Brasil na Cúpula de Líderes, onde Bolsonaro apresentou as metas já compromissadas pelo país na COP 21, de zerar o desmatamento ilegal até 2030, de reduzir em 37% a emissão de gases do efeito estufa até 2025 e 43% até 2030, em relação a 2005. Quanto à neutralidade climática, indicou que pode antecipar para 2050, desde que seja recompensado com recursos em torno de US$ 1 bilhão/ano até 2030, ignorando que é do conhecimento da comunidade internacional que o governo federal não consegue desbloquear quase US$ 3 bilhões do Fundo Amazônia, financiado pela Alemanha e pela Noruega, porque, movido por incômodo ideológico orgânico, é incapaz de reduzir o desmatamento e de conviver com a governança democrática instituída para o fundo.

Os movimentos sociais reagiram à presença de Bolsonaro na cúpula. A articulação de povos indígenas (APIB) buscou interlocução direta com o governo Biden. Simultaneamente, houve manifestação de artistas brasileiros e internacionais em repúdio à presença do presidente Bolsonaro no evento e vinte e quatro governadores encaminharam carta ao presidente estadunidense com propostas para uma agenda ambiental para o Brasil. Ambientalistas e políticos que defendem a Amazônia e o meio ambiente, diante do discurso e da ação ardilosas conduzidas pelo governo federal brasileiro, estão céticos quanto à capacidade de Bolsonaro para cumprir as promessas vazias, destituídas de qualquer peso verificável, que fez em Washington.

Esther Bemerguy de Albuquerque é economista e integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Foi secretária do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES/PR), entre 2004 e 2011, e secretária de Planejamento e Investimentos Estratégicos (SPI/MP), entre 2012 e 2014