Especial

Ao dar voz aos trabalhadores e combatendo o “peleguismo” impregnado no sindicalismo, o jornal estimulou transformações profundas na comunicação praticada pelas próprias entidades sindicais

Um canal de expressão do sindicalismo combativo, impulsionado por lideranças dos metalúrgicos na região. Ilustração/FPA

Se há um projeto do qual o camarada Alípio Freire se orgulhava e ao qual ele dedicou toda a sua capacidade organizativa, disponibilidade e militância era o da imprensa popular e sindical.

Como dirigente da Ala Vermelha (dissidência do PCdoB) na segunda metade dos anos 1970, ele tinha a função de assistir, orientar e participar da implementação de políticas da organização. Tanto ele como outros integrantes remanescentes da Ala Vermelha haviam redefinido as metas de atuação durante o período de prisão a que foram submetidos por causa da opção pela resistência armada à ditadura militar. À medida que deixavam a prisão política (meados dos anos 1970), passaram a executar a tarefa prioritária de se aproximar e se juntar aos trabalhadores.

Era um momento incipiente de retomada das lutas populares e operárias, o que exigia esforço para contribuir para a organização da classe trabalhadora, nos locais de trabalho e moradia. Assim, uma das abordagens escolhidas para cumprir essa tarefa era a comunicação de massa, o que levou vários integrantes da organização a ingressarem no jornalismo, ampliando o núcleo de jornalistas já existente na Ala.

Com essa perspectiva, no segundo semestre de 1975, Antônio Marcello reuniu alguns egressos da prisão política, como Júlio de Grammont e vários estudantes da Faculdade de Jornalismo, como Robinson Sasaki, Roberto Taira e Béa Faleiros, ávidos por participação política, que abraçaram a ideia de fundar o ABCD Jornal. Mais do que isso, associada à publicação, foi criada a ABCD Sociedade Cultural, que organizava palestras, debates, produção e divulgação de filmes, seções de teatro popular, contribuindo para a tarefa de reunir, discutir, mobilizar e organizar os trabalhadores. Abriam-se espaços não só para sindicalistas, mas também para sociólogos, juristas, economistas e outros especialistas de esquerda fazerem exposições, transmitir e debater conhecimento com os trabalhadores.

Não foi aleatória a escolha da região do ABC para instalação do jornal. A intenção, dentro da política da Ala Vermelha, era atingir trabalhadores dos setores de ponta da economia, como a indústria metalúrgica e automobilística, com contradições sociais e exploração do trabalho mais acirradas.

Num trabalho de “formiguinha”, o jornal ganhou credibilidade e reconhecimento junto ao movimento sindical, constituindo um canal de expressão do sindicalismo combativo, impulsionado pelas lideranças dos metalúrgicos na região do ABC. Ao dar voz aos trabalhadores e combatendo o “peleguismo” impregnado no sindicalismo, o jornalismo praticado pela equipe do ABCD Jornal estimulou inclusive transformações profundas na comunicação praticada pelas próprias entidades sindicais. Tanto Antônio Marcello, Julio de Grammont e como o próprio Alípio Freire – os três já falecidos – trabalharam no setor de imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos.

Já em 1976, militantes ligados à Ala Vermelha passaram a desenvolver outras publicações como o Repórter de Guarulhos, Jornal da Vila, Jornal da Periferia, Repórter de Campinas. Alípio foi peça fundamental na articulação dessas equipes e dos trabalhos, ao mesmo tempo em que utilizava sua capacidade de articulação com outros setores políticos, jurídicos, sindicais e artísticos para obter apoio e amplificação das experiências.

Na época das grandes greves, no final da década de 1970, a identificação e inserção do ABCD Jornal era de tal proporção que levou a publicação à condição de porta-voz do comando de greve. Em 1979, na primeira intervenção do governo militar no, então, Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema, o ABCD jornal teve tiragens inimagináveis para a imprensa popular na época, chegando a atingir mais de 100 mil exemplares.

Num momento como aquele, de prisões de dirigentes sindicais e forte aparato policial repressivo, era fundamental apoio da sociedade civil. Aqui, Alípio Freire, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI seção São Paulo) mais uma vez se destacou, angariando apoio junto a várias categoriais e setores sociais para o Fundo de Greve, contribuindo para fortalecer a luta dos grevistas e a efetiva resistência e combate à ditadura militar instalada no país. Até mesmo nos cuidados mínimos com a segurança para impressão e distribuição do jornal contaram com participação do camarada Alípio. Diante do risco de apreensão dos jornais pela repressão e mais prisões, ele chegou a ajudar, inclusive, na organização de grupos de transporte das publicações para os pontos estratégicos de distribuição no entorno do ABC (como comunidade de base e associações de moradores). Desses pontos, grevistas faziam a entrega de mão em mão ou nas residências dos bairros operários.

Uma das atividades da ABCD Sociedade Cultural nos períodos de greve era projetar o documentário “Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores...” – produzido pela equipe do cineasta e também ex-militante da Ala, Renato Tapajós. Nessas dezenas de sessões que reuniam trabalhadores nos bairros e outras entidades de toda a região do ABC, representantes da sociedade civil, como o próprio Alípio, como dirigente da ABI-SP, e membros do comando de greve faziam palestras e debates com objetivo de ampliar apoio social ao movimento, manter a mobilização e fortalecer a organização dos operários.

Em suas palestras pelo Brasil, Alípio costumava destacar que o projeto ABCD Jornal/ABCD Sociedade Cultural teve papel importante na reorientação da comunicação popular e sindical, no fortalecimento do movimento sindical combativo e contribuiu em outras lutas amplas da sociedade, como Anistia, o direito de greve e de organização sindical, pelas Diretas Já, e também na construção do Partido dos Trabalhadores. Foi a primeira publicação popular a defender, em plena ditadura, a criação do PT, um canal de expressão e organização política dos trabalhadores, abrindo inclusive suas instalações físicas para organização e disseminação de núcleos de base do partido.

O ABCD Jornal – assim como demais publicações desenvolvidas por integrantes da Ala – deixou de circular no início dos anos 1980. Foram sete anos de duração, período em que mais de meia centena de jornalistas contribuíram com o jornal, embora a grande maioria não fosse ligada à Ala. O encerramento do projeto coincidiu com a autodissolução da Ala Vermelha em São Paulo, em 1983, quando os quadros estavam integrados ao PT. Muitos militantes da Ala já haviam sido alçados a um papel dirigente no Partido dos Trabalhadores. O próprio Alípio Freire foi vice-presidente do partido de São Paulo entre 1980 e 1983.

O fim do projeto ABCD Jornal foi apenas uma etapa na vida de Alípio Freire. Incansável e corajosamente, seja entre jornalistas, artistas, educadores, intelectuais, operários ou trabalhadores sem-terra, ele seguiu dedicando sua enorme capacidade intelectual, organizativa e de trabalho em favor da transformação social. Deixou marcas e reconhecimento no ABC e em todos os locais e movimentos. O poeta vive.

Robinson Sasaki é jornalista