Especial

É como se a sua inteligência, a sua capacidade política, a sua cultura, a sua sensibilidade, a sua integridade e o seu bom humor (muitas vezes sarcástico) o deixassem meio imortal aos meus olhos

Alipio adorava as histórias de Iramaya (em imagem do documentário “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”). Divulgação

Convidado a escrever algo sobre Alípio Freire para a Teoria e Debate, resolvi tomar como ponto de partida um post que publiquei no Facebook logo que soube de sua morte. Acrescentaria apenas algumas linhas.

Assim poderia expressar de forma mais fiel o que senti quando Ricardo Azevedo me deu a má notícia. Evidentemente, não ignorava que o vírus cultivado pelo presidente genocida era traiçoeiro e poderia nos levar Alípio. Afinal, àquela altura já eram quase 400 mil mortos no país – e a cifra macabra logo depois foi alcançada. Apesar disso, era como se eu não acreditasse que o pior poderia acontecer com o meu amigo.

Ao me perguntar depois a razão disso, a única resposta que encontrei foi a dificuldade de imaginar morto alguém como Alípio.

É como se a sua inteligência, a sua capacidade política, a sua cultura, a sua sensibilidade, a sua integridade e o seu bom humor (muitas vezes sarcástico com quem merecia levar umas palmadas) o deixassem meio imortal aos meus olhos.

Alípio fazia graça até das dificuldades que porventura enfrentasse. Como eu, ele tinha surdez parcial num dos ouvidos, resultado dos interrogatórios na ditadura. E aproveitava para tentar me convencer de que isso era uma vantagem: “Se estou frente a frente com um chato, ponho os dois cotovelos na mesa e tampo o ouvido bom com a palma da mão. Aí, o cara não consegue me chatear...”, contava, bem-humorado, se sacaneando.

Ele foi, também, um grande amigo da minha mãe, Iramaya, que morreu em junho de 2012. Os dois se aproximaram nas lutas pela anistia. Aliás, Alípio tinha uma coleção de suas histórias. E histórias, Iramaya tinha muitas. Eram coisas vividas por alguém que, num intervalo curto, ao ter dois filhos vítimas da repressão da ditadura, transformou-se de uma dona de casa comum numa militante política quase em tempo integral que cativava todos por sua espontaneidade. Alípio a comparava sempre a uma personagem de Ziraldo: a Super-Mãe.

Seu amor por Iramaya era plenamente correspondido. Ela também o adorava e tinha nas conversas dos dois um de seus programas prediletos. Nelas, ambos riam a valer.

Alípio contava à exaustão uma história de Iramaya – e sempre com muita graça, mesmo para quem já a conhecia. (Afinal, história boa, dependendo do jeito de quem conta, é sempre boa de ouvir, mesmo que não seja inédita). Ela era sobre certo discurso de Iramaya num ato em São Paulo. Como presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) do Rio, Iramaya fazia parte de uma mesa repleta de figuras ilustres. Quando chegou a sua vez de falar, fez um discurso duríssimo defendendo o fuzilamento dos torturadores de presos políticos. Percebendo, em seguida, que talvez tivesse se excedido, voltou-se para dom Paulo Evaristo Arns, ao seu lado na mesa, e completou, tentando amenizar as coisas: “Mas dom Paulo, falo em fuzilamento, mas sempre com muito amor, não é? Afinal, só o amor constrói...” A risada foi geral, puxada pelo próprio cardeal.

Não havia, também, vez em que nos encontrássemos e Alípio não me perguntasse pelo Lagartixas Eróticas, arremedo de grupo de rock que meu filho Felipe integrou quando adolescente. Alípio nunca tinha ouvido nada do grupo, que mal existiu. Ele se deliciava mesmo era com o nome.

E achou mais graça ainda quando soube da resposta de Felipe à minha pergunta sobre a origem desse nome. “Pô pai, você já viu banda de rock com nome que tem a ver?”

O fato é que, talvez por Alípio ser quem ele era e ser tão importante para mim, não me preparei para a sua morte. Não acreditava na possibilidade. Levei uma enorme porrada quando recebi a notícia de que ele tinha partido.

Ambos militamos na resistência à ditadura militar, mas em estados e em organizações diferentes. Só nos conhecemos pessoalmente depois da anistia, a partir de um grande amigo comum, Antônio Neiva, seu companheiro na Ala Vermelha que também já não está entre nós.

Muito rapidamente, porém, eu e Alípio nos reconhecemos como amigos de infância. E dos grandes. E fomos cada vez mais estreitando a amizade.

Algumas vezes fui a São Paulo, e outras ele veio ao Rio, só para que nos encontrássemos. No Rio, ele ficava hospedado na minha casa. Em São Paulo, eu ficava na dele.

Sempre entrávamos pela noite bebendo e conversando. De política e de assuntos gerais da vida. Imagino que as orelhas de muita gente devem ter ardido por conta dessas conversas.

Por coincidência, dois dias antes de ser colhido pela Covid-19, Alípio me telefonou. Como de hábito, falamos quase uma hora. E combinamos um novo reencontro logo que as condições permitissem.

Enfim, falar de um amigo querido que acaba de morrer é sempre difícil. É como se uma parte da gente fosse embora. Foi o que senti e ainda sinto um pouco.

Como consolo – se é que isso é consolo – devo dizer que poucas vezes vi tantas demonstrações de carinho em relação a alguém que se foi como agora, na morte de Alípio.

Vá em paz, amigo.

Mas que o mundo fica menor sem você por aqui, isso fica.

Cid Benjamin é jornalista, vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa