Tive o privilégio de trabalhar com Alipio. Aprendi muito. Começamos em 1994, nesta Teoria e Debate, depois passamos pela Diadema FM e em inúmeros projetos junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Em 1997 Alipio coordenava a comunicação da Prefeitura Municipal de Diadema (SP). Nesse período, a luta pela regulamentação de rádios comunitárias estava em alta e Diadema não ficou de fora. Lá, num projeto pioneiro, Alipio criou e apoiou intensamente a Diadema FM (104,3 no dial), emissora que deu voz e vez aos trabalhadores, sindicalistas, lutadores dos movimentos populares, compositores e artistas talentosos da cidade, que não tinham espaço em outras emissoras.
Perseguida pelo Ministério das Comunicações de FHC, a emissora foi fechada por duas vezes, sob acusações absurdas como interferir em comunicação de ambulâncias e aeronaves. Não era clandestina nem pirata, pois possuía estatuto social e qualidade técnica, apesar de seus modestos 50 watts de potência. Poderosos ficaram incomodados porque criamos identidade com a população, chegando a ser a segunda rádio mais ouvida na cidade.
O incômodo foi, portanto, comercial e político. Comercial porque ali não havia jabá (prática comum na radiodifusão comercial) e político porque a voz ao microfone era do povo.
Alipio esteve conosco o tempo todo, como era do seu feitio, não esmoreceu, foi o dirigente necessário. No segundo fechamento, definitivo, Alipio foi conduzido à sede da Polícia Federal junto de Rosângela, a radialista de plantão.
Em seu depoimento na Rua Piauí, na capital, após saber de seu passado como preso político, Alipio ouviu de um agente que os tempos eram outros, porque o sindicato dos policiais era ligado à CUT. Para desespero da advogada, Dra. Michael Mary Nolan, Alipio respondeu que era uma novidade mesmo, pois em caso de novo golpe ele seria torturado por companheiros.
Em razão da Diadema FM, Alipio respondeu a um processo kafkaniano. Depois de cinco anos, apesar das convicções dos agentes públicos da repressão, não tinham provas e arquivaram aquela barbaridade jurídica. Os equipamentos e acervo de músicas apreendidos foram devolvidos e tudo seguiu para doação aos trabalhadores rurais sem-terra do interior de São Paulo, continuaria, portanto, servindo aos propósitos iniciais de facilitar a comunicação popular.
E por falar em sem-terra, ele também esteve lá junto deles, firme e forte. Colocou seu talento profissional, sua arte, cultura e experiência política na Revista Sem Terra, com quem tive o privilégio de colaborar por cinco anos (1997-2002). Ela nasceu depois de longa maturação e muita discussão política. Inicialmente, a direção do MST pensou numa revista de estudos longos e densos, quase um perfil acadêmico. O MST pretendia dialogar de forma consistente com setores da sociedade simpáticos à luta pela terra e reforma agrária.
Segundo Neuri Rossetto, dirigente dos sem-terra responsável pelo setor de comunicação à época, Alipio foi decisivo para transformar a ideia da revista densa numa publicação periódica cheia de vida e qualidade, bonita de se ler, capaz de comunicar o projeto do MST a quem de direito e acumular aliados à luta utilizando os melhores recursos do jornalismo.
Como editor, Alipio dizia que, por meio da revista, o MST poderia comunicar cruzando questões da terra com a cultura e a arte.
Desde o início, ainda antes do lançamento do nº 1, no início do segundo semestre de 1997, e depois por todo o tempo, a revista reuniu muita gente boa, próxima do Alipio e generosa como ele.
Com capa colorida e duas cores no miolo (preto e azul), a revista foi lançada com pompa e circunstância no Teatro Studio 184 (atual Teatro Studio Heleny Guariba), na Praça Roosevelt, regada a bom vinho, queijos, embutidos e doces das cooperativas do MST.
A edição nº 1 e outras edições da revista estão disponíveis na íntegra no link da Hemeroteca Luta pela Terra.
Alipio trouxe para perto do MST pessoas que colaboraram ativamente na comunicação, com a Revista Sem Terra e o jornal Brasil de Fato (hoje, um portal ativo). Mais tarde, em 2000, participou da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).
Contribuiu muito, num diálogo franco e amigável. E trouxe junto de si dezenas de jornalistas, designers, produtores gráficos, fotógrafos, artistas e educadores. Lembro-me do encontro de Sérgio Ferro (pintor, desenhista, arquiteto e professor brasileiro radicado na França) e os sem-terra durante a construção da ENFF, em Guararema. Naquele dia histórico, Sérgio Ferro comentou sobre a importância do canteiro de obras onde não havia apropriação da mais-valia pelo capital, mas sintetizada ali numa obra coletiva, dos trabalhadores. Ferro cedeu, ainda, importantes obras de arte ao MST, parte delas compôs a produção editorial de uma agenda da organização.
Segundo nos lembrou Rossetto, Alipio cuidou ainda da capa e encarte do primeiro CD de músicas gravadas do MST. Escolheu de Sebastião Salgado uma imagem dos sem-terra de Sergipe, com seus trajes simples e dignos instrumentos e trabalho. No primeiro plano, um homem negro tocando flauta. Sensível e perspicaz, Alipio disse que ali estava representada a cultura, algo intrínseco à vida do povo.
Há um diálogo atribuído ao escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961), uma adaptação livre de trecho do livro Adeus às Armas, sobre os horrores da Primeira Guerra. Neste trecho fartamente divulgado, o autor dizia: – Quem estará nas trincheiras ao teu lado? – E isso importa? – Mais do que a própria guerra. Com Alipio Freire valeu a companhia e todas as batalhas que pude somar com ele. Um salve forte ao camarada!
Rogério Chaves é coordenador editorial na Fundação Perseu Abramo