Especial

Alipio nos convocou para constituir um coletivo coeso teórica e politicamente e assim pudéssemos traçar as ações poéticas, artísticas e estéticas que se desdobrariam de forma consequente

Reunião da Confraria dos Poetas Vermelhos. Foto: Filipe Peres

“Garimpo solitário/ a cada treva”. Assim se inicia o canto IV do poema “Prenúncios de Aurora”, do livro Estação Paraíso, publicado em 2007 pela Editora Expressão Popular. A solidão, porém, não era uma vocação de Alipio Freire, afeito à ação coletiva. O olhar atento e apurado, o trabalho meticuloso, sim, como quem analisa a bateia em busca de uma pedra rara (ou a mais adequada a ser recolhida e lançada contra o inimigo). Na formação deste coletivo se expressam essas duas características.

Cada um dos membros o conheceu e se aproximou de forma diferente, em tempos distintos: um poema para análise enviado por e-mail, uma reunião de pauta de um jornal de esquerda, uma visita a um museu de arte contemporânea ou uma palestra, uma tentativa de venda de um jornal operário. Nessas situações encontramos acolhimento e diálogo, duas de suas particularidades. Neles, a descoberta de coisas em comum: uma visão de mundo que abarca a superação radical da sociedade de classes e a consciência do papel que a poesia e as diferentes linguagens artísticas possuem para a emancipação (ou para a opressão e manipulação) humana.

A ideia dos Poetas Vermelhos começa a ser gestada no início de 2012, quando alguns de nós elaboramos um projeto a ser submetido à Prefeitura de São Paulo. No transcorrer daquele ano, Alipio manifestou o desejo de que organizássemos uma coletânea de poemas de autoria de poetas do campo político no qual militávamos. Dentre as ideias ventiladas, pensou-se construí-la em torno da resistência à ditadura civil-militar (1964-1985) e da memória sobre essa luta, dialogando inclusive com atos de denúncia a torturadores que ocorriam à época.

A concretização demorou um pouco. Em dezembro de 2014, Alipio nos escreveu e convocou para nos organizarmos a partir do ano seguinte, nomeando-o Confraria dos Poetas Vermelhos. Não como grupo de amigos, mas sim com a preocupação de constituir um coletivo coeso teórica e politicamente para que assim pudéssemos traçar as ações poéticas, artísticas e estéticas que daí se desdobrariam de forma consequente. Assim aconteceu e, em janeiro de 2015, nos reunimos pela primeira vez.

Nunca se tratou de construir um panteão de sábios, um Olimpo de iluminados ou um conselho de guias geniais dos povos. Refutamos a ideia de “intelectuais” como uma categoria dos eleitos pensadores, apartados das pessoas comuns. Somos professores, jornalistas, artistas plásticos, produtores audiovisuais, fotógrafos, filósofos que trabalham de forma assalariada. Todo trabalhador, independentemente da profissão que exerça, também pensa a sua atividade cotidiana em maiores ou menores níveis de complexidade. Cada um de nós o faz em seu ambiente profissional e nas atividades da Confraria, cuja matéria-prima são a imagem, a palavra, as linguagens.

A memória em 64

As artes, em suas diferentes linguagens, podem ou não registrar e criticar a história, pois a arte terá a função social que dermos a ela. Logo, nenhuma obra artística está descolada da realidade, existe como algo concreto (síntese de múltiplas determinações) e expressa uma visão de mundo, tomando parte nas disputas que ocorrem na sociedade, tendo o autor consciência disso ou não.

Por isso, desde sua formação, nos debruçamos em buscar formas de discutir a luta de classes no Brasil e no mundo, de falar da constante luta dos trabalhadores e dos povos (atentando para o que sempre nos advertia, “o povo entendido como a parcela dos explorados e oprimidos”).

Um exercício constante de preservação da memória dessas lutas, dos lutadores e das lutadoras populares que as protagonizaram. Entendemos que a luta não se iniciou hoje e que ela não termina em nós mesmos, parafraseando Neruda1.

Esse exercício de memória, porém, nada tem a ver com apologia ao saudosismo e mausoléu dos grandes líderes.

Os pés em 22

O Modernismo Brasileiro enquanto ponto de partida teórico e prático, compreendendo que, tanto aqueles que se envolveram na Semana de 1922 quanto os que vieram depois, tinham um programa que visava “trazer o povo e os trabalhadores para o centro da cena (como assunto-linguagem)”.2

O trabalho dos poetas vermelhos busca, desde seu início, ser “contra todas as catequeses”3, rompendo com os romantismos, a ideologia dos mitos e a sacralização das artes e dos artistas. Termos uma referência clara, portanto, relaciona-se com a necessidade de conhecermos, analisarmos e interpretarmos os processos históricos que nos antecederam afim de elaborarmos uma crítica e, a partir daí, apontarmos um caminho para o futuro.

Pois não há artistas à frente de seu tempo. Não há gênios com inspiração mediúnica. Arte é um trabalho humano (mais especificamente no campo das representações, das mídias, das comunicações), feito por mulheres e homens que dominam o uso de certos materiais, técnicas, concepções, tecnologias adequadas ao que se produz (ou seja, o métier) em um determinado contexto. Quem tiver interesse, estudar e se dedicar a aprender o métier de determinada linguagem poderá desenvolvê-la.

Aliás, a Semana de Arte Moderna completa seu centenário em fevereiro do próximo ano. Essa data comemorativa foi parte do impulso para este coletivo. É a razão de nos instalarmos no espaço do Ateliê XXII, estruturado por Alipio e Rogério Mourtada, que não tem esse nome à toa.

A cabeça em 68

Sejamos razoáveis: queiramos o impossível4 e arranquemos alegria ao futuro5. Mas projetar um futuro que rompa com os valores desta sociedade não se limita a afirmações altissonantes. É necessário critério e apego aos fatos, entender a história, seus protagonistas e coadjuvantes, ter muito claro aquilo que é inegociável, identificar o discurso dominante da burguesia, das elites e seus subordinados (e associados) e combatê-lo.

Fazer isso com relação ao nosso país foi uma das tarefas que o texto organizado por Alipio tentou cumprir em 2015, apresentado como um jogral durante a II Feira Antropofágica de Opinião. Também de seu Rapsódia de Ordem Política e Social, ainda não publicado, cujos poemas muitas vezes discutimos juntos.

Dar conta desse panorama foi o que sempre debatemos coletivamente através dos poemas que escrevemos e analisamos em nossos encontros. Em 2015, definimos a montagem de uma antologia sobre as lutas populares na América Latina (as de ontem e de hoje). Depois redefinimos o projeto, circunscrevendo ao Brasil. Alguma coisa já está produzida. O livro ainda não saiu, mas alguns poemas compuseram o jogral de 2015 e fizeram parte da palestra Arte em Tempos de Temer, realizada no Ateliê XXII, em 2016.

O umbigo do artista só interessa a ele próprio. Rompemos com as saídas fáceis, o verso afável, mas, antes e principalmente, com o fascismo e as condições que o possibilitam.

A arte que discutimos é engajada, mas não se enganem: toda arte o é!

 O coração sem tempo

O coletivo exemplifica na prática outra das preocupações de Alipio: cada geração tem o dever de deixar melhores condições no mundo para aquelas que virão. Por isso nunca foi uma plateia, mas uma constante interlocução sobre o futuro. O futuro não como uma abstração esotérica, e longe do romantismo socialista e da metafísica burguesa.

A procura dessa poesia é um exercício constante de olhar para a realidade e suas contradições. Também de observar e admirar as diferentes produções artísticas feitas ao longo da história, com a sede antropofágica: só me interessa o que não é meu6.

Nessa busca analisamos livros sobre pintura, conversamos sobre romances e poemas, visitamos exposições de artes plásticas, destrinchamos documentários e, vez e outra, ele nos enviava por e-mail um vídeo com a primeira música gravada no Brasil, uma cena de um filme italiano, uma música do Gonzaguinha, suas observações ácidas ou seus poemas mais recentes.

A Confraria dos Poetas Vermelhos é um trabalho que representa e, dentro do possível, traduz parte de quem foi Alipio Freire e do que ele compreendia como o fazer poético e artístico. Poesia entendida como um conceito amplo e fundamental sem o qual, ele dizia, “a revolução conquistará apenas reformas higiênicas”.

Eduardo Campos Lima, Ennio Brauns, Filipe Peres, Jeomark Roberto, Jonathan Constantino, Pedro Nathan e Rogério Mourtada fazem parte da Confraria dos Poetas Vermelhos