Especial

Na cela, havia aqueles que consideravam a Tropicália uma música alienada, imperialista... Mais do que gostar, Alípio defendia o caráter revolucionário daquele movimento

Curtia muito o disco Tropicália, e que causava grande polêmica na cela. Foto: Reprodução

Conheci Alípio Freire em algum momento no segundo semestre de 1969. Eu estava na cela 3 do Presídio Tiradentes quando lá chegaram os presos do processo da Ala Vermelha do PCdoB. Entre os quais, Alípio. Por algum motivo, ou simplesmente por mero acaso, ele foi parar na mesma cela que eu. Chamava a atenção. Pela sua calma. Por passar as noites pintando até alta madrugada. Por ser um militante rígido de esquerda, mas ao mesmo tempo ligado às artes e de concepções extremamente abertas, entre nós, era um tipo diferenciado. Tínhamos uma vitrola na cela. Alípio recebeu de seus familiares o disco Tropicália, que curtia muito e que causava grande polêmica na cela. Havia aqueles que consideravam a Tropicália uma música alienada, imperialista, que não tinha nada a ver com as raízes nacionais e populares. Alipio, não. Mais do que gostar, ele defendia o caráter revolucionário daquele movimento. As discussões a respeito eram dos momentos de maior tensão no coletivo. Com ele, aprendi a entender e curtir a Tropicália. Convivemos naquela cela por quase um ano.

Fui solto em setembro de 1970. Alipio permaneceu cinco anos preso. Fui exilado no Chile e na França. Voltei clandestinamente ao Brasil em fins de 1976. Reencontro Alipio em algum momento por volta de 1978. Éramos os responsáveis pelo contato entre a Ação Popular (AP), organização em que eu militava, e a Ala Vermelha, que ele dirigia. Além de uma crescente identificação política entre as duas organizações, as relações pessoais de amizade foram retomadas e intensificadas. Em 1980, veio o PT. Mergulhamos os dois na sua construção. Naquele mesmo ano, a AP se dissolve no PT. Logo em seguida, a Ala Vermelha segue o mesmo caminho. Vêm as eleições em 82. Eu era assessor do Geraldo Siqueira, deputado estadual da AP e candidato à reeleição (pelo PT). Alípio saiu candidato a deputado federal. Fez-se a dobradinha, a meu ver a mais forte da campanha do Gê. Campinas, Leme e Pirassununga, votações expressivas para ambos. Na capital, difícil mensurar os votos na classe média, mas foram muitos. Eu mesmo, votei no Alipio.

Desgostoso com o rumo que o PT tomava, Alípio se afastou de uma militância partidária mais intensa. Mas segue ativamente em outras frentes.

Em 1987 é criada a revista Teoria e Debate e sou seu primeiro diretor. Alípio é chamado para ser um dos sete membros do Conselho de Redação. Entusiasmado com o projeto, ele imediatamente aceita, retomando assim um vínculo mais próximo com o PT.

Sempre mantivemos muita afinidade nas questões existenciais e de princípios no campo da política, mas a partir daí, nunca estivemos no mesmo campo interno no PT. Divergíamos muito nos caminhos a serem tomados, e principalmente na avaliação de personagens centrais do partido.

Mas sempre mantivemos o contato e a amizade. Talvez mais intensa paulatinamente à medida que eu saí do PT. Ultimamente, nos falávamos por telefone a cada quinze dias. Ácidos os dois com os rumos que as coisas todas vêm tomando.

Alípio era uma figura ímpar que combinava uma sensibilidade artística e humana fantásticas com uma rigidez muito forte na política. Muita gente diz que ele era uma figura doce. Doce para os amigos, doce para quem ele gostava. Mas era implacável não só com os inimigos de classe; mas também com quem ele achava que, no campo da esquerda, tinha traído os ideais fundadores. Não conheço mais ninguém assim.

Ricardo de Azevedo foi diretor e editor de Teoria e Debate e presidente da Fundação Perseu Abramo