Economia

Embora os passos iniciais do Plano Biden sejam alvissareiros, sem mudanças estruturais que avancem sobre a hipertrofia do setor financeiro, a retórica neoliberal do pós-industrialismo se manterá inatingível

Em 13 anos, os EUA diminuíram em 37% sua participação na manufatura global. Foto: Reprodução/Twitter

A causa atual das tensões nos Estados Unidos não se encontra, essencialmente, no descrédito da política, mas, sobretudo, no esfalfamento de sua economia, a mais importante do mundo. Os sintomas do profundo mal-estar social se assentam no adeus ao sonho americano da mobilidade ascendente e do consumismo desvairado.

Em pleno início da terceira década do século 21, os EUA ainda não conseguiram se recuperar do tombo financeiro levado há 13 anos durante a crise do subprime. Em 2020, por exemplo, a renda nacional por habitante dos estadunidenses foi, em termos reais, apenas 4,6% maior que a do ano de 2007.

Com variação média anual de apenas 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) per capita entre 2008 e 2020, a outrora locomotiva do mundo capitalista passou a denunciar o quadro geral da estagnação econômica e da regressão social. Ao contrário do modelo de globalização neoliberal posto em marcha pelos EUA desde a década de 1980, o exuberante desempenho chinês de expansão acumulada do seu PIB per capita em mais de 90% após 2008 (crescimento médio anual superior a 5%) tem consagrado outro rumo para o mundo através da Nova Rota da Seda.

A justificativa para a discrepância estadunidense, não apenas em relação aos chineses, localiza-se fundamentalmente na degeneração do seu sistema produtivo manufatureiro em contrapartida à hipertrofia do setor financeiro. Do ponto de vista empírico, por exemplo, a produção industrial dos EUA de 2020 estava 5,6% abaixo do que havia sido em 2007, o que se repercutia decisivamente no declínio da participação da manufatura no PIB de 20,5% para 11%.

Em apenas 13 anos, a indústria estadunidense não apenas perdeu 46,3% do seu peso relativo no PIB como destruiu 1,7 milhão de postos de trabalho. O resultado disso foi a redução no peso relativo do emprego industrial no total da População Economicamente Ativa do país de 9,1%, em 2007, para 7,8%, em 2020.

No que diz respeito a produção manufatureira mundial, os Estados Unidos, que eram a principal economia industrial do planeta antes da crise financeira de 2008, perderam rapidamente essa posição de destaque para a China. No ano de 2020, por exemplo, os EUA responderam por 17% de toda a indústria mundial, enquanto no ano de 2007 detinham 27% da produção manufatureira global. Em 13 anos, a diminuição em 37% na participação na manufatura global.

A derrocada da indústria estadunidense foi acompanhada simultaneamente pela ascensão chinesa. Entre 2007 e 2020, a China aumentou a sua participação relativa na produção industrial global de 16% para 29%. Ou seja, o aumento de 81,2% na manufatura global ocorrida em apenas 13 anos.

Como se sabe, a crise financeira de 2008 indicou que o agigantamento das finanças necessitaria ser atenuado, com a sua significativa regulação. Sem que isso até o momento acontecesse, a recuperação esperada do setor industrial não se viabilizou, mesmo que a desvalorização do dólar em mais de 18% em relação ao euro quase nada tenha impactado nas exportações de manufaturados.

A ausência do esperado renascimento industrial, apesar dos esforços governamentais enunciados desde Bush Filho, passando por Obama e Trump, explicita a força da financeirização econômica intrínseca ao modelo neoliberal de globalização. Assim, a antiga centralidade da economia monetária de produção teoricamente identificada por Marx e Keynes, que prevaleceu durante os anos dourados do capitalismo do após a Segunda Guerra Mundial, não foi restabelecida, seguindo rendida ao foco econômico das trocas monetárias imposto pelo neoliberalismo dos últimos quarenta anos.

Sem o retorno da produção ao centro do palco econômico, a perspectiva do desenvolvimento ficou submissa à hipertrofia do setor financeiro. O predomínio do fundamentalismo de mercado minguou as recentes e recorrentes tentativas governamentais estadunidenses voltadas ao domínio da produção industrial.

Para, além do neoliberalismo de direita, a versão de esquerda, ou neoliberalismo progressista como denomina Nancy Fraser, pouco contribuiu para transformar profundamente as estruturas materiais e sociais pretéritas da nação. A perspectiva humanista da elevação do acesso aos serviços sociais, embora necessária, pecou pela exclusividade enfática das capacidades individuais, desassociadas do fundamental avanço simultâneo das capacidades produtivas nacionais.

Ademais, sem a mobilização coletiva e o fortalecimento das instituições organizativas a coordenar a cooperação intra-agentes econômicos, prevaleceu a ótica excessivamente individualista, muitas vezes narcisista das sociedades de massa neoliberalizadas. A começar pela temática das capacidades individuais/consumidores destacada por Amartya Sen e presente nas formulações diversas de políticas públicas intrínsecas aos objetivos do milênio e do desenvolvimento sustentável.

Também o foco nas microfinanças e transferências condicionadas de renda insistiram em transferir aos indivíduos/consumidores a perspectiva de escapulir da pobreza por suas habilidades e capital ínfimo intermediado por meio das trocas mercantis. A incapacidade de retomar o desenvolvimento pelo domínio da produção e dos produtores permitiu que a modernização no padrão de consumo incorporasse parte da base da pirâmide social enquanto dispêndio vitalizado pelo recorrente endividamento das famílias pobres.

A crise do subprime estadunidense indicou apenas a ponta do iceberg pela qual se estruturou a financeirização da economia e sociedade estadunidense, com a própria inclusão gestora dos pobres. Sem condições de trazer a produção para dentro do desenvolvimento, a consequência econômica da geração crescente de população sobrante foi a administração governamental do novo precaridado que para se esquivar do desemprego aberto se alia a qualquer forma de rendimento sem direitos sociais e trabalhistas imposta pela ideologia do empreendedorismo de si próprio.

O Plano Biden parece revitalizar a perspectiva de reincorporar a produção no desenvolvimento estadunidense. Seus passos iniciais, nesse sentido, são alvissareiros, embora sem mudanças estruturais que avancem sobre a hipertrofia do setor financeiro, a retórica neoliberal do pós-industrialismo se manterá inatingível.

Isso porque tende a prevalecer a crença da elevação da renda ampliadora da demanda no setor terciário, favorecendo a prosperidade econômica futura através do impulso governamental aos serviços, não à produção industrial e à infraestrutura. Acontece que a própria realidade do país tem demonstrado como os serviços denominados por alto valor (finanças e varejo) dependem da manufatura enquanto sustentação material.

Em não se encontrando no plano local, as importações se tornam substitutivas da produção e do emprego no desenvolvimento nacional. Assim, a hipertrofia financeira atrofia as possibilidades do avanço da produção industrial, mantendo, por consequência, a decadência estadunidense.

Da mesma forma, a desregulamentação financeira e a prevalência do fundamentalismo do mercado livre se converteram no poder neoliberal dos sujeitos sociais dominantes na política, economia e mídia. Essa parece ser a mãe de todas as batalhas que está ainda por ser enfrentada por Biden.

Distante disso, o que resta sem a mudança na estrutura produtiva para o desenvolvimento não liberal, termina por comprometer a urgente e necessária recuperação econômica e, por consequência, a própria ampliação de empregos decentes. Corre o sério risco de preservar o descrédito na política a secundarizar o sonho estadunidense da mobilidade social e consumismo desvairado.

A prevalência da desindustrialização cede empregos de qualidade e torna fantasma os antigos centros ricos e produtivos, cada vez mais contaminados pelo inchamento do setor de serviços de baixa produtividade a proliferar ocupações precárias falseadoras do desemprego aberto. Nesse contexto, dificilmente o Estado de bem-estar pode ser soerguido, validando uma sociedade da desesperança e de governos submetidos à gestão das emergências do curtíssimo prazo, sem planejamento e perspectiva de futuro alvissareiro.

Bem a propósito do predomínio neoliberal e dos interesses vassalos de ricos, privilegiados e poderosos comandados pelo ciclo vicioso da hipertrofia do setor financeiro.

Marcio Pochmann é professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da UFABC