Amigo de fé, irmão, camarada – podíamos cantar na fase final da existência da Ala Vermelha, ou seja, depois da libertação dos principais militantes que haviam caído na luta armada. Nos chamávamos ainda de camaradas, embora o tom fosse crescentemente brincalhão com o velho vocabulário da ortodoxia de esquerda. A ligação com os companheiros presos era forte e muito afetiva, por razões evidentes. Por causa desse significado antigo do termo, quando ouço essa música banal penso em muitos deles com saudade, mas especialmente no querido Moraes, nome atrás do qual se escondia, na ocasião, Alipio Freire.
Naquele tempo, entre as muitas coisas que eu achava que sabia fazer, uma era tocar violão. O instrumento era um companheiro fiel nas noitadas de camaradagem, conversa franca, cantoria e álcool, com repertório eclético e poliglota que podia ir do “rei” e outros ídolos da jovem guarda à música popular brasileira, americana ou ao rock’n roll. Mas (confesso) tínhamos na Ala especial predileção pela dor de cotovelo da Dalva de Oliveira, por Orlando Silva e Angela Maria, que evocavam – meio rindo, meio não – as canções que ouvimos na infância pelo rádio de nossos pais. Sim, éramos bem garotos ainda. Nessas rodas, Alípio – que era mais ouvinte que chegado a uma performance vocal – se arriscava, mais para o fim da noite e algumas doses na cabeça, a entoar sozinho uma canção francesa, sempre com uma emoção contida que ele mal conseguia disfarçar e que nunca consegui entender direito. Era um clássico do grande Jacques Brel que Edith Piaf imortalizou. Gravada em 1959, ano de uma ruptura amorosa difícil para o compositor, a canção não fala de amor como parece, segundo seu próprio autor. Fala da covardia dos homens diante das perdas e da mudança. Não sei o que ela evocava para Alipio, nem o significado que ele atribuía à letra – sempre cantada em francês, que ele não era homem de se contentar com versões sofríveis.
Ne me quitte pas,
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
É necessário esquecer, é possível esquecer tudo que tenha ficado no passado – afirmava Brel. Embora amasse a canção, não sei se Alipio concordaria. Ele foi preso em 31 de agosto de 1969 quando tentava avisar os ocupantes de um aparelho sobre a queda de um outro, também alugado em seu nome. Participou de algumas ações armadas pela Ala Vermelha, mas tinha existência legal e prestava cobertura à organização. Chamava-se Bio, naquele tempo, um jovem estudante e pintor engajado em um grupo que tentava enfrentar, com poucos guerreiros e armas, o sólido poder dos generais, acreditando na força do exemplo e na sabedoria infinita da classe operária. Bio ficou preso cinco anos, junto com outros companheiros da Ala que habitavam os tais aparelhos. Com eles, enfrentou a tortura que o marcou pelo resto de seus dias. De certo modo, sua vida ficou dividida em duas – antes e depois daqueles cinco anos. Não era capaz de esquecer e nem queria.
O artista plástico promissor e talentoso converteu-se no militante duro e um tanto inflexível ao julgar padrões e comportamentos, mas sem perder a ternura (e o charme) jamais. O pintor cedeu espaço também ao jornalista. Extremamente inteligente e sensível, mostrou-se um crítico mordaz da situação do país e das escolhas políticas de diferentes setores da esquerda. Falava nesse mesmo tom da situação vivida da cadeia: dele ouvi histórias incríveis, amargas e às vezes saborosas, sobre as pessoas e as experiências dos presos políticos da ditadura. Tinha uma memória fantástica onde guardava em detalhes todos os momentos que presenciou. Além disso sabia contá-los com fluência, às vezes com graça – e sempre com uma prosa cativante. Talvez por isso tenha se tornado, mais tarde, um ícone da resistência para as novas gerações. Cultivou com esmero esse personagem que evocava um passado em grande medida reconstruído com as cores do afeto e do desejo.
Era como se andasse, depois de tudo o que passou, em busca dele mesmo no rosto dos companheiros e amigos de fé, camaradas. Tinha dificuldade em esquecer e, também por isso, assumiu a memória como sua tarefa de vida. Talvez, embora excepcional, ela o traísse de vez em quando (a memória é uma traidora contumaz e uma parceira ingrata, como sabemos os historiadores), mas isso nunca tirou o brilho de sua personagem e de sua figura pública. A missão autoatribuída de combater o esquecimento fez dele, já muitos anos passados, refém de um tempo doloroso que ficou para trás. Era o caso de esquecer?
*
Alípio se orgulhava de muita coisa na trajetória da Ala Vermelha – que reputo mais modesta do que ele parecia supor às vezes. Mas havia muito a ser valorizado na história difícil daqueles companheiros com os quais conviveu intimamente nos anos de cadeia e durante os dias da tortura. Com muito tempo, nos presídios da ditadura, para pensar e rever opções, os presos da Ala Vermelha se debruçaram sem medo sobre suas escolhas. Todos eram ainda muito jovens e com uma experiência política limitada, exercida nas frestas que a situação opressiva do país permitia (no movimento estudantil, no que restava de movimentos sociais, na cultura, na luta armada). Na prisão ainda, escreveram um documento de Autocrítica, enviado para os militantes fora da cadeia, que causou um impacto relevante no campo da esquerda. Mais ainda por que foi formulado na cela 5 do Presídio Tiradentes, em que habitaram juntos por um tempo, no ano de 1972, no auge dos chamados “anos de chumbo”. Reconhecia-se ali, pela primeira vez, a necessidade de revisão da luta armada, pela sua ineficiência e pelo isolamento ao qual conduziu não apenas a própria organização, mas o conjunto das organizações de esquerda que haviam enveredado por esse caminho. Só a Ala fez isso, entre tantos grupos que conviviam no presídio – e isso valeu muitas inimizades, condenações irrecorríveis ao fogo do inferno stalinista, mal-estar com membros de outros grupos mais fortes cujas lideranças estavam presas no mesmo período.
Do lado de fora, nos preparávamos para colocar em prática as novas diretrizes, com a organização bastante precarizada pelas perdas. O retorno dos “nossos presos”, que saíram da cadeia em 1974 ingenuamente imbuídos da missão de buscar uma ligação com as “massas”, já que o exemplo heroico da luta armada não havia funcionado como vetor da revolução, foi um alento. As engrenagens do grupo começaram a funcionar novamente. É claro que não percebíamos que uma simplificação sucedia à outra. A revolução estava em marcha novamente e necessitava de suas vanguardas que, por sua vez, deviam aprender com as “massas” qual seu verdadeiro papel, superando o voluntarismo que custara tantas perdas pessoais e políticas. Tudo parecia simples: enterrem as armas, camaradas, e voltemos à luta de classes. De certo modo, creio que todos os grupos no fundo tinham essa percepção. Mas era duro reconhecer aquele momento de derrota e apenas a Ala abriu sua avaliação e mudou seus rumos e práticas de uma maneira clara. Não era pouco naquela época, creiam.
Não sei se Alípio jamais fez a ligação disso com a canção que ele tanto amava, mas certamente podíamos naquela época ressignificar os versos de Jacques Brel, para retomar o ânimo e o entusiasmo com o futuro.
On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est, paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
*
Havia jornalistas entre o grupo (como o próprio Alípio, que foi trabalhar em uma emissora de TV) e vários companheiros, não profissionais da área, foram empregados na Editora Abril quando saíram da cadeia em 1974. Era difícil alguém achar trabalho naquele tempo depois de carimbado como militante de esquerda, mas as soluções sempre apareciam pelas mãos de um simpatizante em condições de providenciar saídas. O emprego deu a eles alguma experiência e as ferramentas iniciais para conceber uma nova forma de trabalhar pelo “dia-que-virá” (agora sabemos, o tempo verbal certo era “viria”). A ideia que se disseminava e da qual já existiam exemplos anteriores, era a fundação de jornais de bairro ou da periferia, que proliferavam naquela quadra em que o movimento popular e sindical se reorganizava depois de mais de uma década de silencio forçado: O Repórter de Guarulhos e o ABCD Jornal, ao lado de outros, foram exemplos dessa busca por um canal com a classe operária empreendida pelos militantes da Ala.
O esforço foi compensado quatro anos depois, no correr dos movimentos grevistas e de bairro que marcaram o período final da ditadura. O carro-chefe era, por certo, o ABCD Jornal. Ele estava instalado e razoavelmente enraizado no centro de um velho vulcão que voltava a soltar fogo: as greves metalúrgicas que mudaram o rumo da história do país e lançaram Lula como uma nova e bem-vinda liderança popular. Alípio, de certa forma, inspirava os redatores daquele jornal – Antônio Marcelo, Julinho de Grammont, que também nos deixaram muito cedo, e tantos outros que arregaçaram as mangas para dar suporte ao movimento. E se orgulhava como todos nós daquilo que víamos como uma prova do acerto das novas diretrizes. Não sei se percebíamos com clareza que a força do que ocorria ali vinha muito mais das circunstâncias que levaram ao crescimento da luta operária do que da ação da “vanguarda revolucionária” naquele contexto, mas o fato é que tudo parecia dar certo.
Alípio foi inicialmente membro de outra equipe, a do jornal de Guarulhos, que não teve a mesma projeção ou o mesmo sucesso, posto que lá o movimento sindical era ainda dominado pela pelegada antiga e os movimentos de bairro mal tomavam forma. Mas logo se viu que não tinha o perfil para aquela tarefa: como, sendo quem era, “fundir-se às bases” do proletariado? Quem o conheceu pode imaginar a dificuldade: figura solar e pouco discreta como exigiam as circunstâncias, bonito, elegante, sofisticado, com pinta e ego de artista, rebuscado em seus hábitos e gostos, devia achar difícil sumir na multidão e se contentar com a cachaça com torresmo e a conversa de botequim sobre o chão das fábricas e suas injustiças cotidianas, ou com aulas noturnas de “formação política” para trabalhadores exaustos e sonolentos. Alípio queria mais. Precisava de alimento intelectual, discussão do marxismo e seus desdobramentos em um plano mais acadêmico, queria poesia e alegria, queria luta, amor e ribalta.
Antes da militância se firmara como artista plástico, chegou a ser premiado e era muito bom nisso – mas essa atividade ficou secundária em sua vida por um bom tempo, embora a praticasse nas horas livres (e durante as reuniões políticas, nas quais desenhava o tempo todo com caneta Bic imagens que costumava oferecer aos amigos presentes). No dia que o conheci com o codinome Moraes (eu, Maria) e antes de ir trabalhar com ele no jornal guarulhense, tive uma enorme surpresa: esperava receber um militante sério e sofrido, famoso por sua firmeza face à tortura e cheio de certezas, mas fui apresentada a um moreno grandalhão, cabeludo, brincalhão e com os dedos cheios de anéis como um ídolo pop. Tinha uma viva curiosidade pelo que se discutia nas universidades, uma inteligência questionadora e um humor cáustico que nos animou em muitas noites de conversa regada a confidencias, bebida e comida de boa qualidade (eu tampouco me contentava com cachaças e torresmos).
Por isso as conversas eram sempre interessantes e ricas em curiosidades que, com sua notável qualidade de narrador, ele conseguia frequentemente tornar engraçadas. Meio surdo, não gostava de falar da tortura (quase todos que haviam passado por isso eram assim) e só me revelou essa parte de sua vida depois de uma longa e rica convivência. Mas era um arquivo vivo da luta armada, da resistência nos cárceres da ditadura e seus personagens e, mais tarde, juntando duas facetas da sua história, canalizou essa qualidade para a preservação de uma valiosa coleção dos acervos iconográficos da prisão, organizando mostras e divulgando através delas a saga de sua geração. Figura bem pouco adequada, convenhamos, para um obscuro jornal de periferia que nunca chegou a dar os resultados esperados.
Depois dos primeiros números publicados e pouco disposto a se mudar para o município para criar raízes, Alípio se jogou na militância sindical. Como jornalista, esteve empenhado na fundação da seccional paulista da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e atuou junto à sua categoria profissional, onde ganhou projeção na entidade, no sindicato e nas redações pelas quais passou. Manteve ao longo da vida a atividade de jornalista, colaborando em vários veículos da imprensa – inclusive, mais tarde um pouco, na Teoria e Debate e nas publicações do MST. Mais forte que isso, porém, foi o ímpeto com que mergulhou desde cedo na campanha pela Anistia e na denúncia das arbitrariedades e violências cometidas pela ditadura civil-militar. Tortura, nunca mais. A partir dali a função de homem-memória se instalou definitivamente em sua personalidade e ocupou o melhor de suas atenções. Havia uma racionalidade política naquilo que ele fazia, mas também um profundo imperativo emocional.
Alípio prestou um serviço inestimável nesta área e, em certo grau, foi sugado por ela que, aos poucos, ia se tornando sua pauta quase exclusiva. Antes disso, porém, esteve profundamente envolvido em causas que iam sedimentando um conjunto de decepções difíceis de digerir. A principal delas, creio, foi a campanha das Diretas Já, em 1983-84 – que terminou com uma decepcionante vitória da conciliação entre políticos que haviam apoiado a ditadura, outros que entraram e saíram dela em silêncio discreto e alguns que faziam uma oposição cautelosa, deixando a esquerda isolada, derrotada e ressentida. Planos de mudança e justiça social foram adiados, mais uma vez. A sensibilidade de Alípio, maior que a de todos nós, consolidou nele uma imensa dificuldade em aceitar a política institucional como o caminho principal, ou até mesmo como meio válido de atuação – e a tendência a valorizar as lutas do passado, como uma reafirmação de princípios.
Mas nem sempre foi assim. Estivemos todos na fundação do PT, os militantes mais midiáticos como Alipio, os dos jornais da periferia, o povo da anistia, os “integrados na produção”, como se dizia. Aquele evento significou uma virada importante na organização e na vida pessoal de todos nós: a Ala, única organização a fazer autocrítica da luta armada, logo foi também a primeira a decidir incorporar-se ao PT como uma tendência de intervenção política, dissolvendo-se como um partido leninista. Na verdade, havia mesmo algo de ridículo na situação experimentada pelas organizações de esquerda com o crescimento do PT e dos movimentos sindicais: nós nos conhecíamos por codinomes, mas as reuniões de núcleos e diretórios (ou sindicatos e associações de classe) revelavam os nomes reais dos companheiros. Já não sabia mais como nos chamávamos, se pelo nome ou pelo apelido inútil que ainda assumíamos nos fóruns internos, pelo medo persistente da repressão.
Mesmo enfraquecida no final do regime, ela ainda mostrava as garras e era capaz de muita coisa, como todo mundo sabia e os atentados terroristas de direita na OAB ou no Riocentro, ocorridos poucos anos depois, corroboravam. Assim, essa decisão consolidou um sentimento de alívio, mas ainda envolveu um último embate: abriu-se uma dissidência interna sobre se a incorporação devia se dar no partido “de massas” ou no movimento sindical. O impasse nunca chegou a um desfecho e o assunto ficou em suspenso. Não havia consenso, mas, na prática, antes que o debate chegasse a termo em conferências e congressos clandestinos, a Ala Vermelha deixou de existir porque o tempo exigia. Simples assim. Alguns até insistiram em manter a clandestinidade, mas sua irrelevância nem merece ser lembrada – e Jacques Brel pode novamente recomendar algo sobre isso.
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
*
Foi um tempo bom e feliz para o Alípio: a construção do PT envolveu muita inquietação e alívio, muita ousadia e coragem, muita esperança de que finalmente o dia ia nascer, para usar a metáfora recorrente das canções de protesto do período. A assembleia no Colégio Sion que formalizou a fundação do partido foi um redemoinho de emoções: lembro que chorei de alegria e ganhei dele um “putabraço” igualmente comovido. Era um tal de vender estrelinhas, panfletar nas feiras, bater boca nas reuniões de núcleos e diretórios sobre as muitas possibilidades que se abriam dali em diante. Por elas, havíamos desistido das certezas para mergulhar de cabeça na consciência da indeterminação da história e das nossas responsabilidades com o futuro – cada qual na sua, mas todos juntos.
Não era essa a onda de todo mundo no PT que nascia: muitos egressos de outras organizações e mesmo do movimento sindical conservavam intactas suas caixinhas de dogmas o que, desde o início, provocava discussões acaloradas. Formamos um núcleo de professores e intelectuais e depois nos distribuímos pelos diretórios regionais, quando foram fundados. Eu fui para Pinheiros, Alípio para Perdizes e a vida seguia cheia de esperanças. Nos encontrávamos nas reuniões, nos bares, nas festas de rua com barraquinhas do PT, nas assembleias e atos públicos, nos vatapás da Lizete e nas casas dos amigos para cantar e desafinar com o violão mal tocado. E tome discussão – não só a política ocupava nosso tempo: falava-se de cinema, de teatro, de literatura. Falava-se mal dos outros, entre risadas. Descobríamos o potencial de novos temas, antes relegados pela nossa miopia revolucionária, como as questões das minorias, o feminismo, o racismo, a liberdade sexual e o que mais viesse. O que havia sido uma organização clandestina agora mais parecia uma grande família que Alípio cobria de afeto e humor, quando estava inspirado.
E havia as festas – capítulo no qual ele se esmerava. As do Alípio foram inesquecíveis para toda aquela geração. A casa antiga do Pacaembu, no meio de um largo formado pela confluência de várias ruas, com um jardim iluminado e enfeitado com tapetes, panos e outros adereços. O piano, colocado no meio das árvores, onde se instalava Cida Moreyra com sua cabeleira de fogo, tocando e cantando no quintal: summertime, and the livin’ is easy... Podia não ser verão, mas viver parecia muito mais leve para nós todos, em meio ao público encantado e sentado no chão em volta dela. Tinha também ritmos variados no salão onde rodopiávamos entre danças e beijos. A turma da “Libelu” tinha a fama de realizar as melhores festas da cidade, mas creio que o Alípio rivalizava com eles nesta modalidade. Em alguma hora, lá pelas tantas, ele falava aos presentes sobre o significado de tudo aquilo. Lembro-me de uma destas festas em que usávamos estrelas cobertas de purpurina – a que ia na lapela do anfitrião se destacava sobre o paletó negro. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção, ele dizia (sim, esta era ainda a linguagem), mas também queremos felicidade, dança, liberdade, que são direitos de todo ser humano; queremos – expressava ele e eu me sentia representada – deixar fluir os desejos, florescer as diferenças e desfrutar os prazeres que fazem a vida valer a pena. Alípio era um rei falando essas coisas em seu jardim iluminado, onde a intelectualidade e a esquerda festejavam o que parecia ser o fim do sufoco.
Além de celebrar, porque esta era uma grande virtude revolucionária segundo o Alípio, as festas se destinavam a fazer finanças para o PT e, no ano em que pela primeira vez ele se lançou na arena eleitoral, também a dar sustentação financeira às campanhas de seus candidatos. Em 1982 os jornais de periferia que havíamos construído sumiam aos poucos e o PT era indiscutivelmente a estrela principal do grupo oriundo da Ala Vermelha. Entre outros companheiros, Alípio foi candidato a deputado federal (no mesmo ano em que supúnhamos impressionar “as massas” exortando inutilmente os trabalhadores a votar em um trabalhador para presidente). Coordenei sua campanha, sediada em um porão da Praça Benedito Calixto – local animado, com artistas imprimindo camisetas em silk-screen, gente jovem buscando material, combinando panfletagens e pichações. Até parecia viável, mas já ali, envolvidíssima com o projeto, intuí que não ia dar certo: se não faltava entusiasmo, escasseavam aliados, conexões com a cúpula do partido cuja racionalidade política o empurrava para outros rumos. Faltava dinheiro e a política, definitivamente, não se faz de sonhos.
Perdemos, claro – e o candidato se ressentiu com isso, mais do que eu podia supor. “De derrota em derrota chegaremos ao socialismo”, ironizava como que brincando ao repetir um bordão que se tornou uma espécie de marca registrada. Mas seu ego de artista sofreu com mais essa derrota e sua tendência a ser inflexível o levou a buscar culpados. Não combinava com sua natureza generosa e amorosa, por isso essa atitude – que foi aos poucos se revestindo de uma grande amargura pela discordância com os rumos que alguns dirigentes e tendências imprimiam ao partido, fez muito mal à felicidade de um militante revolucionário que, entretido nos seus sonhos, não viu direito o tempo passar. Radicalizou, tendeu a ser cada vez mais solitário, isolando-se num projeto que se desvanecia sem retorno. O tempo foi seu inimigo, com o rosário de decepções que nos trouxe. Agarrado à memória, prisioneiro do passado, Alípio nunca aprendeu – e eu mesma lhe disse isso muitas vezes, com a liberdade que nossa velha e indestrutível amizade permitia – que ele, seguindo a indicação de Jacques Brel, precisava saber como viver esse novo tempo, jogar fora as ilusões (por mais doces que fossem) e aprender a tolerar a imperfeição humana e os desvãos da História. Mas no fundo ele nunca conseguiu mudar e atravessou com esta dor diferentes conjunturas e situações, das quais por vezes se colocou à margem. A velha canção podia soar de novo, com sua melancolia, para encerrar esse tributo saudoso a um amigo que se foi sem saber como
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheur
Mas isso não encerra o que precisa ser dito. Alípio resistiu e sobreviveu à prisão, à tortura, à morte de tantos companheiros durante a ditadura militar e depois dela. Foi esta a imagem de si mesmo que ele escolheu legar às gerações seguintes. Não merecia, ele em especial, o fim prematuro que o colheu, ingloriamente indefeso em uma UTI. Quem o pôs lá, todos sabemos, foi a omissão criminosa e burra de um governo militarizado comandado por um reles capitão de quinta categoria. A ignorância aliada à frieza assassina de uma súcia sem nenhuma sensibilidade face ao morticínio da pandemia, ampliada pela indiferença e por uma monumental incompetência. O terror assume agora uma nova cara, ainda mais medonha e perigosa. Passamos dos 400 mil mortos neste genocídio (ah, não me venham com frescuras conceituais nessa hora) e não sabemos quando nem como o massacre vai parar.
Nem mesmo pudemos dizer adeus dignamente ao amigo de fé, irmão, camarada. Resta imaginar qual seria a trilha sonora que ele gostaria de ter em seu funeral – e tenho certeza de que ele preferiria a música ao choro na despedida. Por certo, Jacques Brel faria parte da play list: ne me quitte pas, camarada. Não dá mesmo para esquecer. Por mais que eu tenha te aconselhado a ignorar o tempo perdido e a jogar fora a infelicidade trazida pelos anos da ditadura, isso que vemos agora, e que lhe custou a vida, não é coisa que se possa deixar para trás. A lembrança de Alípio Freire, do que ele foi para todos nós e do que representou para as gerações mais jovens, reforçará para sempre a dura memória desse tempo intolerável em que é perigoso respirar. Lembrar e relembrar, neste caso, é o que vai nos ajudar a resistir, persistir e seguir em frente, até que possamos ouvir pulsar novamente o coração da felicidade.
Valeu, Alípio. Você foi embora muito cedo. Nem esperou pela festa1.
Maria Clementina Pereira Cunha é historiadora, formada pela UnB e com mestrado e doutorado pela USP. Professora do Departamento de História da Unicamp (hoje aposentada). Autora de O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo (1986); Ecos da Folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920 (2001); Não Tá Sopa. Sambas e sambistas no Rio de Janeiro entre 1889 e 1930 (2016)