Especial

Dispensou grande importância à memória e sua preservação para o conhecimento do passado, recriação do presente, e construção do futuro

O primeiro desenho oferecido à Rita tinha a inscrição que aludia à Revolução de 1917: “...mas sob o sono dos séculos amanheceu o espetáculo como uma chuva de pétalas como se os céus vendo as penas morressem de pena e chovessem o perdão...". Reprodução

A primeira vez que atravessei o portão que ligava a Torre das Donzelas ao local de visitas do Presídio Tiradentes, recém-chegada do Departamento de Ordem Social e Política (Dops), conheci Alipio.

Era o ano de 1971.

Transcrevo abaixo o texto que escrevi intitulado – “Em Nome da Rosa” – publicado no livro Tiradentes, um Presídio da Ditadura Memórias de Presos Políticos.

....um dia recebi, através da carceragem uma flor de papel crepom: era uma flor grande, de cinco pétalas vermelhas e de pistilo amarelo. Foi enviada por um companheiro do pavilhão masculino, que conheci no presídio. Coloquei-a no meu “mocó” e escandalosamente ela representava – sendo clandestina de origem – o sonho de que era possível o amor libertário.

Dias depois, em rápida conversa durante a visita ele me falaria da rosa singela, verde e de cinco pétalas – a rosa primitiva com origem na China e matriz de todas as variedades conhecidas dessa flor; do seu significado arquetípico na cultura ocidental, inscrita que está como representação do renascer, na bandeira que “A Morte”, carrega no arquetípico 13 do Tarô. A negação da morte.

Com outros companheiros do pavilhão I da ala masculina, meu Cavalheiro da Rosa Singela dedicava-se a estudar os símbolos das pranchas convertidas em baralho divinatório, e que supostamente – segundo a tradição teriam escapado ao incêndio de Alexandria.

Magro, alto, moreno, enquanto aquele homem falava, pensei em ornar seus longos cabelos com uma grinalda de rosas de cinco pétalas e heras. Mas a prisão – ao contrário da liberdade – é a negação dos desejos e das vontades. Então, ali, apenas desejei.

No ano de 1974, quando o meu Cavalheiro, teve a prisão preventiva revogada, iniciamos a nossa vida de casal, e uma parceria de 45 anos.

Éramos quatro no início da nossa família: Alípio, eu e os meus dois filhos: o Paulo, com 9 anos, e a Camila, com sete. Maiana nasceu em 1975. Depois vieram os netos: Flora, Tahir e Bento, e os bisnetos: Glória, Gabriela e Tom.

Relendo o que escrevi há muitos anos, enquanto faço anotações para lhe prestar uma homenagem... por um impulso me vejo transportada ao pátio de visitas do Presídio Tiradentes, quando vi pela primeira aquele homem magro, alto moreno, de cabelos longos. Muitos anos se passaram e de repente, como se fosse um filme, as cenas foram se descortinando, se sucedendo... o jovem, que conheci no presídio foi se transformando num adulto maduro... num velho sábio ...magro, alto, moreno, portava óculos, as barbas eram longas...fui me detendo no seu precioso sentido de perfeição, a coerência como que a flor da pele, as certezas aguçadas, um olhar de quem já viu todas as coisas, as mãos como meio trêmulas, mas fortes, e o traçado firme – a mesma presença altiva – tudo que sempre foi – o mesmo Cavalheiro de sempre... agora portava uma bengala... tristemente constato que não pude ornar seus cabelos com uma grinalda de rosas de cinco pétalas e heras...

A homenagem/testemunho que presto ao Alipio, meu marido e companheiro de todas as lutas, aconteceram em diferentes contextos políticos, sua militância atravessou todos esses tempos... suas contribuições são muitas, estão referidas em depoimentos e registros, englobam várias áreas do conhecimento e da arte.

Pretendo no testemunho que faço, dizer da importância que ele dispensou à memória e sua preservação para o conhecimento do passado, recriação do presente, e construção do futuro.

Percebo que se faz necessário algumas referências sobre o nosso passado recente, uma rápida introdução ao meu testemunho como parceira do seu testemunho.

As rupturas provocadas pelos militares e civis, com a instalação do estado de exceção deixaram sinais que prevaleceram como uma doença, corroendo por dentro o corpo da nação, o que continuou acontecendo para além do advento da Constituição de 1988.

As marcas do período ditatorial se consubstanciaram numa memória, amalgamada no medo, no silêncio, na política deliberada de esquecimento. A tortura foi banalizada, os agentes continuam impunes, os assassinatos e desaparecimentos ocorrem, sem limites, as violências contra os pobres, negros, homens, mulheres e crianças, o ódio ao diferente como preceito da doutrina de segurança nacional – todos os crimes cometidos no passado recente continuam acontecendo – a diferença é que nos dias atuais não permanecem debaixo dos tapetes.

A Constituição Federal de 1988 possibilitou avanços significativos, entre os quais a implementação do processo de justiça transacional, cujos pressupostos são: Memória, Verdade e Justiça, através da Comissão da Anistia, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, da Comissão Nacional da Verdade e de comissões de verdade e memória, instaladas em estados, universidades e outros espaços. A Comissão Nacional da Verdade foi o grande acontecimento recente da nossa memória coletiva; na elaboração do relatório final estão inscritas as recomendações e diretrizes para a continuidade pela Justiça de transição no nosso país.

Destaco que  Alipio desde que saiu da prisão se integrou à luta pela anistia que teve início a partir de 1975 com a instalação dos Comitês Brasileiros pela Anistia ( CBAs) em vários estados, e no exterior, por exilados. Os principais objetivos dos comitês eram: a anistia ampla, geral e irrestrita, o fim da Lei de Segurança Nacional, fim radical e absoluto das torturas, libertação dos presos políticos e volta dos exilados. Em novembro de 1978 foi realizado em São Paulo o I Congresso Nacional pela Anistia em São Paulo, este congresso em documento afirmou: “a necessidade imperiosa de uma anistia política, ampla, geral e irrestrita a todas as vítimas dos atos de exceção, rejeitando as proposições de anistia parcial e de revisão de processos, que pretenderiam excluir do alcance da anistia os que participam do movimento armado contra o regime militar”... ainda transcrevo: “toda nação deveria tomar conhecimento dos crimes cometidos contra os direitos humanos e identificar seus responsáveis, para que pudesse repeli -los, num quadro de respeito aos direitos inalienáveis.”

Alipio Freire foi orador do I Congresso Nacional pela Anistia, que aconteceu na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo.

Entre as diversas exposições que realizou relembro uma delas, que se chamou: “Pequenas Insurreições Memórias: expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo”. O local de sua instalação foi o Centro Cultural Vergueiro, a coordenação e projeto eram de sua responsabilidade, os desenhos, pinturas, objetos de artesanato, as trezentas peças escolhidas seriam preparadas para a montagem pela equipe do Centro. Eram anos da década 1980, (1983 se não me engano), o prefeito era Mario Covas. Naquelas circunstâncias a instalação era um desafio... Alipio convidou o grupo de várias categorias, pessoal administrativo, os encarregados pelos serviços gerais, todos os funcionários /servidores que trabalhariam na montagem da exposição, e passou detalhadamente a falar sobre o projeto, convidou-os a conhecer as pessoas, presos políticos, homens e mulheres e as peças produzidas.

Era assim que Alipio trabalhava, sempre envolvendo todos no processo, não se tratava de repassar informações, mas de que todos (as) entendessem o que representava a exposição, sua importância e significados, com a intenção dos servidores/funcionários, desde o início, assumissem que eram também os autores da exposição.

As suas lutas, as de resistências, e aquelas que buscam o socialismo, sempre tiveram como conteúdo o projeto de uma sociedade democrática, solidária e socialista e se inscreveram, incessantemente, na disputa por uma memória coletiva, a dos protagonistas da resistência do passado e do presente, capaz de subverter a memória oficial, imposta ao povo brasileiro pelos gestores civis e militares, através do medo, do silêncio, e que o esquecimento como decorrência.

Os depoimentos, relatos, inúmeros trabalhos publicados têm o significado de recuperar no presente, a memória coletiva, comprometida com a verdade e com a justiça, para continuar dando lugar e voz às vítimas, recompondo assim uma história esquecida e negada.

A coerência foi o princípio que sempre seguiu e imprimiu dignidade e respeito às suas relações, como atributo da sua atuação e testemunho.

Neste momento da nossa história, sua morte, incluída entre as mais de 400 mil mortes, vítimas da atual política genocida, cuja gestão é identificada com a política de segurança nacional, deve ser denunciada, como condição para assegurar os direitos conquistados, e os sonhos extraviados.

O testemunho que faço, como parceira e testemunha do testemunho do Alipio, é de que ele buscava, em tudo que fazia – tudo mesmo –, criar condições objetivas e subjetivas para a realização de uma sociedade democrática, justa, solidária e socialista.

Na condição de pessoa ouvinte de seu testemunho, eu testemunho que não deixava passar nenhuma ocasião, em que não demonstrasse sua indignidade contra o horror instalado no país: “é exatamente a impunidade dos criminosos de ontem que estimula, naturaliza, banaliza e torna impunes os crimes, chacinas e massacres do presente.”

Encerro declarando que ele acreditava na força das massas organizadas, no potencial das conquistas acumuladas, na esperança de uma revolução onde o impossível acontecesse...

O primeiro desenho que me ofereceu em janeiro de 1972, tinha uma inscrição que aludia à Revolução de 1917, dizia assim:

“...mas sob o sono dos séculos amanheceu o espetáculo como uma chuva de pétalas como se os céus vendo as penas morressem de pena e chovessem o perdão..."

Rita Sipahi integrou a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça de 2009 a 2019