Desculpe a demora, Alípio, mas somente hoje consigo responder àquela sua corajosa carta de 30 de dezembro de 2009.
Lá se vão onze anos.
As décadas nunca são perdidas, mas nosso país atravessa hoje um retrocesso brutal. Fico pensando se essa dor histórica e psíquica contribuiu de algum modo para nos roubar lutadores como você, Sigmaringa, Marco Aurélio, Marisa Letícia, Colombo, Audálio, Antonio Lancetti, Martinelli, Haroldo Lima, Eliane Mantega, Vidal, Egídio, Milton Simonetti, Roberto Caporal, Joaquin Piñera/Kima e Mirian Farias. Tantas e tantos combatentes dos dois lados das grades. Seja pelo vírus terrível ou não.
Não tenho a menor ideia de onde você se encontra agora, Alípio. Talvez em alguma Aruanda materialista, que brotou da boa mescla entre o seu marxismo indeclinável e a sagrada benção dos orixás que injetaram em você a telúrica e africana energia da Bahia.
Sua carta aberta, na verdade, era dirigida ao Brasil. Pode ser encontrada numa simples busca de internet, com o título O Outro Lado. Talvez digitar meu sobrenome ajude a achar mais rápido. Você tece ali uma dura, mas atualíssima análise sobre o poder militar. Que voltou a usurpar nossa nação. Desta vez dispensando os tanques, mas ainda cavalgando a mentira.
Você e Paulo Sérgio Pinheiro foram os primeiros a romper o silêncio ou a covardia que se abateram sobre outros. Nas vésperas do Natal daquele ano foi lançado um violento ataque midiático – prenúncio da gigantesca orquestração que atingiria Dilma e Lula mais tarde – contra a terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH).
A imprensa brasileira – honrosas exceções sempre existem – se alinhou com a recusa do Ministério da Defesa aos termos definidos no decreto presidencial que instituiu o PNDH-3. Tratava-se, em resumo, de finalmente investigar as torturas, assassinatos, violações e desaparecimento de cadáveres que pautaram o pior momento da ditadura de 1964-1985.
Vocês dois abriram o caminho para muitas outras manifestações de solidariedade. Fizeram a defesa do conteúdo daquele Programa, cabalmente alinhado com as diretrizes da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Emiliano José escreveu uma segunda carta aberta, focada na importância da Comissão Nacional da Verdade CNV), o verdadeiro pomo da discórdia. Alberto Dines dedicou seu programa semanal da TV Brasil para denunciar as distorções da mídia. Todas as entidades voltadas à defesa dos direitos humanos se manifestaram da mesma forma, incluindo OAB e organismos de magistrados e procuradores. Sem que a Globo divulgasse nada desse Outro Lado.
Como você lembra, Alípio, o presidente Lula arbitrou a busca de um caminho-do-meio naquela fratura exposta em seu próprio ministério. A velha encrenca da governabilidade e a proximidade das eleições de 2010 apontavam para que os bombeiros fossem chamados.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) acabou saindo. Ao final de 30 meses de investigações e tomada de depoimentos – inclusive do torturador Ustra, ícone de um demente que ainda mora no Palácio da Alvorada –, oficializou como versão oficial de Estado a verdade que as vítimas, seus familiares, advogados, pesquisadores e jornalistas vinham tecendo de forma perseverante desde o final dos anos 1960.
As 29 recomendações conclusivas da CNV, apresentadas em 10 de dezembro de 2014 a todos os poderes republicanos e à sociedade civil, teriam simplesmente barrado – se concretizadas fossem – a chegada de uma liderança vil ao Planalto, poupando o Brasil de uma grande parcela das milhares de vidas humanas ceifadas na pandemia.
Sonhador como eu, Alípio, deve ter passado pela sua cabeça, nos difíceis momentos de UTI, que fosse Lula ou fosse Haddad o presidente em 2020, certamente o Brasil teria se alinhado com a ciência e comprado vacinas na hora certa. Na China, na Rússia, em Cuba, na Inglaterra, nos Estados Unidos, onde fosse. E você já estaria vacinado desde dezembro ou janeiro, escapando dessa.
Muita gente está conhecendo você melhor agora, Alípio. Uma enxurrada de poemas, fotos, vídeos, homenagens, recordações e vigílias se alastra pelas redes sociais. Eu mesmo, camarada, resgato hoje nessas buscas um companheiro ainda maior do que eu já sabia.
Leio sobre seu nascimento na Bahia, 1945, somente uma semana depois de Lula no vizinho Pernambuco. Num dia 4 de novembro, que seria, 24 anos depois, a data da execução do seu conterrâneo Marighella, na Alameda Casa Branca, numa noite de Corinthians e Santos no Pacaembu. Leio sobre sua vinda para São Paulo em 1961, o curso de Jornalismo na Cásper Líbero em 1963, a militância clandestina na Ala Vermelha, as terríveis torturas sofridas em 1969.
Maria Auxiliadora Arantes/Dodora, militante dos direitos humanos e uma das maiores combatentes contra a tortura que nosso país já teve, transcreveu a denúncia oficial que você escreveu, em 2002, dirigida ao organismo paulista de reparação. O livro Tortura, editora Casa do Psicólogo, 2013, da coleção Clínica Psicanalítica, registra a partir da página 182:
“Ali mesmo começaram as torturas: amarraram-me as mãos para trás com uma corda e, em seguida, os tornozelos; faziam-me perguntas e me cobriam de golpes de cassetetes, socos, tapas e pontapés – o rosto foi o alvo principal dos tapas; (...) os pontapés não escolhiam alvos. Queriam nomes e endereços de pessoas, e minha implicação com os moradores (já presos em sua maioria) daquela casa. Como me recusasse a prestar as informações, a violência prosseguia”.
Você conta que foi então levado ao quartel do Batalhão de Reconhecimento Mecanizado do II Exército, na esquina das ruas Abílio Soares e Tutoia, onde funcionava a recém-criada Operação Bandeirante (Oban). Deixaram você esperando a desocupação da sala de torturas onde era seviciado Renato Tapajós, seu companheiro de militância e de muitas outras parcerias culturais depois da prisão.
Você não economiza nos detalhes, escrevendo como se fosse uma câmera que também projeta as imagens gravadas:
“...despido, fui alçado no pau de arara. Pendurado, amarraram-me um fio descascado no artelho maior esquerdo e, com o outro polo, iam percorrendo várias partes do meu corpo: ouvidos, boca, língua, narinas, cantos dos olhos, mamilos, todo o tórax (com uma atenção especial para a região onde se localiza o coração), pernas, braços, umbigo, pênis, testículos e ânus. A corrente elétrica era puxada de uma tomada (naquele dia, 110 volts). Concomitantemente, além de murros, tapas e “telefones”, era surrado com bastões e com uma tira de lona dobrada e molhada. Vez por outra, derramavam água ou algum refrigerante sobre todo o meu corpo, com o objetivo de potencializar os efeitos dos choques, aumentando a condutibilidade da corrente. Nessas ocasiões, fizeram várias vezes escorrer para dentro das minhas narinas o líquido (ora água, ora refrigerante) com que me molhavam o corpo, provocando fortes afogamentos. Em determinado momento – uma vez que não obtinham informações – disseram que iam buscar minha mãe para torturar”.
O homem de teatro Celso Frateschi, ator, diretor e militante, assim descreveu os momentos seguintes, conforme registra Tatiana Merlino no texto “Meu amigo Alípio Freire”, publicado no Correio da Cidadania:
“Estávamos com mais uns vinte companheiros jogados num cativeiro da Oban, que ficava num quartel perto do Ginásio do Ibirapuera. Alípio foi levado para uma cela contígua e barbaramente torturado durante muitas e muitas horas. Durante muito tempo fomos torturados por sua tortura.
Na minha lembrança, foi na madrugada que ele chegou carregado, sem nenhum movimento no corpo. Me revoltou a deformação de seu belo rosto, muito machucado, pois seus cabelos e seus bigodes foram arrancados com um alicate. O pau de arara tinha interrompido a circulação em seus membros e Alípio não conseguia se mexer. Estávamos todos assustados, revoltados e impotentes diante de tanta violência e requintes de crueldade.
Lembro bem que meu irmão Paulo e eu, com ajuda e ajudando outros companheiros, conseguimos encostá-lo em uma das paredes da cela. Lentamente, ele mal conseguia esticar suas pernas, respirou fundo umas duas ou três vezes, abriu o seu largo sorriso e pronunciou com um desejo verdadeiro e um pouco de deboche: Ah! Quem me dera arfar docemente nos braços argentinos de Angelita”.
Só você mesmo, Alípio, para extravasar loucamente alguma poesia num momento tão duro como aquele. Tatiana Merlino conta muitas outras passagens igualmente fascinantes dos seus tempos de jornalismo combativo junto aos trabalhadores rurais sem terra.
Só você mesmo, para nos emocionar com a libertária e profética locução que os leitores podem encontrar buscando no YouTube seu nome junto com o título Nada será como antes. Nada? – da lavra de Renato Tapajós. Durante uma daquelas memoráveis festas que pautaram os bons momentos de nascimento do seu partido, provavelmente gravada em 1982, quando você era candidato a vereador, a realidade e todos os sonhos se fundem com a beleza e com o prazer, em tons realmente místicos:
“Construir uma ponte para a utopia, uma sociedade que, em primeiro lugar, seriam expropriados todos os meios de produção (...) Isso é necessário, mas não é suficiente. É necessário que a gente desde já recoloque a questão da felicidade e do prazer.
Uma revolução, uma mudança radical na sociedade que não fale da felicidade e do prazer, (...) isso aí não terá cumprido seu papel. Nós somos uma crítica viva e real, hoje, ao socialismo existente. E a retomada de toda a raiz libertária do socialismo, que foi esquecida durante muitos anos, por vários movimentos.
Esquecida, inclusive, porque a partir de um determinado momento a classe operária tomou o poder num Estado e o Estado virou uma razão para a classe operária. É preciso que o Estado seja destruído e que a gente esqueça a razão de Estado. A nossa referência não pode ser a instituição, a nossa referência deve ser a massa em movimento. E esses movimentos não são somente os movimentos reivindicativos, são as festas. É importante fazer festas (...)
Nós temos de nos comprometer a construir, desde agora, desde já, a ponte para nós chegarmos a essa felicidade. Não dá pra deixar esses temas pra depois. Não dá pra tratar só da economia (...)
É preciso tratar do que vai por dentro de cada um de nós. É preciso tratar de toda ansiedade, todos os desejos, de toda a perspectiva e todo o sonho que temos dentro da gente. E que a classe trabalhadora de conjunto tem dentro de si.
Isso é fundamental para chegar lá. Do contrário, nós viraremos uns burocratas, uns velhos. Temos um Estado na mão, um aparelho, uma máquina. Teremos um Estado forte, faremos guerras. E não faremos nada além disso. Daremos mais um sapato para João, um vestido pra Maria. Mas a felicidade não é só isso, embora isso seja indispensável para a felicidade.
Nós queremos o sonho. Como diria Calígula – nós queremos a lua, algo que seja aparentemente impossível. E nós teremos a lua”.
Somente um destemido como você, meu camarada, teria a originalidade e coragem de utilizar, até seus últimos dias entre nós, na grafia de seu endereço eletrônica as palavras Ala Vermelha.
Eu me lembro bem, Alípio, que vi seu rosto inconfundível pela primeira vez numa janela do Presídio Tiradentes, num sábado em que eu visitava meu irmão José Ivo, igualmente preso e igualmente torturado. Era final de 1969 ou início de 1970. Vocês estavam em pavilhões distintos, com visitas em dias diferentes. No pátio com meu irmão, via na janela alguns semblantes já conhecidos, como o de Antenor Meyer, Carlinhos Lichtsztejn, Espinosa, Augusto Boal, Luís Takaoka. E de outros como você, que só contatei diretamente a partir de 1971, quando passei a morar no mesmo endereço.
A parede de minha cela, no Pavilhão 2, se dividia com a famosa Torre onde estavam Dilma e Rita Sipahi, sua companheira, Alípio, de tanto amor e de tanta vida. Disputas e sectarismos que, agora de longe, só conseguimos explicar jogando a culpa em nossa ardorosa condição juvenil, nos afastaram em blocos políticos adversários no coletivo dos presos políticos. Você foi torturado com 23 anos, eu com 20. E a faixa etária predominante no Tiradentes estava abaixo dos 30.
Mesmo assim, nos tempos de Carandiru, eu driblava um pouco as rígidas regras do meu agrupamento. Aproveitava o retorno do banho-de-sol para falar com você durante alguns minutos no guichê de sua cela individual. Seus desenhos, nossas lembranças de Antonio Benetazzo, amigo seu, ícone meu. Acho que devo a você o primeiro conhecimento e melhores informações em torno do nome Toulouse-Lautrec.
Pulando das artes plásticas para a literatura, outra paixão sua, descubro agora que um companheiro seu na fundação do PT e da revista Teoria e Debate, o professor de literatura, nosso homem de Berlim e discípulo de Antonio Candido, o escritor Flávio Aguiar, resgatou no site A Terra é Redonda uma crônica excitante. Ele havia dedicado a você, de modo encoberto, muitos anos atrás, um texto de suspense que funde erotismo com os perigos da vida clandestina, incluído no livro Crônicas do Mundo ao Revés, da editora Boitempo. sob o título Morituri te Salutant.
Nessa linha dos muitos tributos que rendemos a você, aproveito para perguntar se gostou do retrato que meu filho, o jornalista Camilo Morano Vannuchi, escreveu no blog do UOL no mesmo dia de sua partida:
“Escutar Alípio era sempre uma experiência inspiradora. Aos 70 anos, barbudo e grisalho, ele parecia um sábio, um profeta. E era. Jamais deixou de ser. Não era somente a aparência física que lhe conferia o aspecto de um mago, com seu porte esguio e os cabelos longos, a marcha cadenciada e tranquila, uma bengala que parecia um báculo, um cajado. Alípio falava num ritmo e num timbre que ajudavam a compor a efigie de guru: um xeque do Irã, um druida, um ancião”.
O veterano dirigente do MST, Ademar Bogo, também filósofo e poeta, compôs estes versos dedicados a você:
No fundo, somente morre quem não planta
Quem não semeia valores em seu andar
Cada plantio traz nas flores a saudade
Cada colheita um triunfo da verdade
Que a liberdade insistiu em disputar.
O Brasil de Fato e a Editora Expressão Popular contam do trabalho fundador que você desempenhou nesses instrumentos de formação e informação dos trabalhadores, bem como do seu apoio entusiasta à Escola de Formação Florestan Fernandes, do MST.
O Sindicato dos Jornalistas resgata uma consistente trajetória profissional e sua atuação nas mobilizações e greves da categoria. Saindo da cadeia em 1974, você trabalhou na Folha de S. Paulo e me lembro do orgulho que eu sentia vendo que um de nós, os perigosos e malditos “terroristas” do Tiradentes, escrevia agora como editor internacional num jornal de ampla tiragem. Sua mesa ficava bem perto de Perseu Abramo, na redação comandada por Claudio Abramo, cuja esposa Radah, crítica de arte, visitou vocês no Tiradentes e escreveu sobre os desenhos, pinturas e gravuras de sua autoria, de Sérgio Sister e de Carlos Takaoka.
A cultura e a arte sobreviviam no cotidiano das celas, fecundando a vida e a resistência.
Em 1978, você se tornou presidente da representação que a ABI decidiu abrir em São Paulo, sob a batuta de Barbosa Lima Sobrinho. Tanto você quanto Perseu e dezenas de outros foram banidos para sempre dos jornalões, na esteira da repressão que os principais veículos articularam como vingança pela greve daquele ano, inédita pelo grau de adesão dos jornalistas.
O tiro patronal sairia pela culatra. Muitos dos atingidos passaram a dedicar-se com centralidade ao fortalecimento da imprensa popular e democrática que avançava a passos largos naquela trilha aberta pelo Pasquim, pelo Opinião e pelo Movimento. Por tantos outros veículos que nasciam dispostos a enfrentar a ditadura. Cada dia mais encurralada.
Você teve participação fundamental, com seus antigos companheiros da Ala Vermelha, no lançamento do ABCD Jornal, em 1975, com crescente penetração entre os metalúrgicos da região no mesmo período em que Lula despontava como líder.
Você colaborou com Tapajós em muitas produções de cinema sobre as mobilizações operárias que mudaram o patamar da resistência à ditadura a partir de 1978. Já em 1979 era possível assistir, durante as pausas das greves, as imagens marcantes do documentário Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores.
Agora mesmo, em 2021, na passagem do 54º aniversário do Golpe de 1964, a TVT exibiu novamente o filme que você realizou para nós em 2013, sob o título Um Golpe contra o Brasil, impactante, certeiro e didático documentário resgatando o que foram os terríveis 21 anos de ditadura militar.
Leio no blog do Juca Kfouri uma recuperação de 467 assinaturas, entre outras mais, de jornalistas, que, no dia 3 de fevereiro de 1976, exigiram em manifesto que fossem realizadas investigações rigorosas sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Texto também publicado como matéria paga no Estadão.
Aí onde você estiver, Alípio, não vá morrer de novo ao perceber que na lista de signatários o seu nome aparece junto com outros, do tipo Augusto Nunes, Sardemberg, Guzzo e Olavo de Carvalho, que lamentavelmente transitaram de lá para cá – em diferentes graus – para ajudar a construir o retrocesso democrático de hoje.
Coisas do futebol, poderíamos dizer. E da natureza humana também. A maior das caixinhas de surpresas que o Fiori Gigliotti poderia evocar com seu timbre inesquecível nos domingos de clássico. Ou que o próprio Kfouri enfrentaria com elegância, reiterando mais uma vez o seu bordão – “Desesperar Jamais” – na trilha aberta por Dom Paulo Evaristo Arns.
Já ficou muito longo este meu apertado abraço de despedida na forma de carta aberta, camarada Alípio. Mas aqui deixei várias pistas e fontes para quem puder se deliciar mais, visitando na internet os mais saborosos registros sobre sua vida, suas lutas e suas criações. Seus livros como Estação Paraíso, Estação Liberdade e Tiradentes – um presídio da ditadura, falarão muito mais sobre você.
Também as curadorias, em especial as que resultaram de sua militância, com Maurice Politi, Ivan Seixas e vários outros, na invenção do Memorial da Resistência, localizado no mesmo centro de torturas do Largo General Osório, assim como a fundação do Núcleo de Preservação da Memória Política. A diretora do Memorial, Katia Felipeli, onde você foi curador em duas preciosas exposições, teve o privilégio de tomar 52 minutos de um depoimento seu que amplia muito o que já foi registrado aqui nesta carta.
Lembrei muito de nossas conversas fugazes na porta da sua cela ao reler, agora, o texto que você escreveu no livro ilustrado Antonio Benetazzo – permanências do sensível. O Instituto Vladimir Herzog promoveu no Centro de Cultura Judaica, em 2016, o lançamento dessa cuidadosa publicação, iniciativa do secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, Rogério Sotilli, na gestão Fernando Haddad.
Você analisa a produção artística desse guerrilheiro, professor, arquiteto e filósofo, morto sob torturas em 30 de outubro de 1972:
“Um de seus retratos mais importantes, porém, é o do corpo assassinado do líder revolucionário Ernesto Che Guevara, obra intitulada Y Muerto se Quedó (...) De acordo com vários dos seus amigos com quem dividia um apartamento no Edifício Copam, quando Benetazzo ouviu no rádio a notícia da morte do Che, trancou-se em seu quarto, colocou música e só saiu de lá com o desenho pronto”.
Posso contar agora, Alípio, que foi nesse mesmo apartamento que eu, recém-chegado de São Joaquim da Barra, cursei com ele meu primeiro cursinho de Marxismo, ainda antes de completar 18 anos, na semiclandestinidade que marcava a resistência no início de 1968. Dez aulas, numa noite fixa de cada semana, com Benetazzo falando para dez jovens sentados em almofadas no chão, ao lado de sua prancheta de arquitetura. Da boca dele escutei pela primeira vez a palavra Gramsci, que assombra mais os fascistas milicianos hoje no poder do que os próprios nomes de Marx ou Lênin.
A lembrança dos companheiros mortos sempre representou um ponto de unidade e coesão solidária nos tempos de presídio, superando as muitas discordâncias sobre os chamados rumos da revolução. Dois desses heróis e mártires valeram como uma aproximação especial entre nós dois. Um foi Benetazzo, está claro. Outro foi Aurora, separados ambos por apenas dez dias nas datas em que foram mortos sob tortura.
Devo também ao meu filho Camilo a publicação, no mesmo dia da sua despedida, querido poeta Alipio Viana Freire, destes belos versos que eu ainda não conhecia:
Prenúncios de Aurora
Aurora
eu te diviso
ainda tímida
inexperiente
das luzes que vais acender
dos bens que repartirás com todos os homens
- Prenunciou o poeta gauche em seu sentimento do mundo
Antes
muito antes
de nascer
Aurora
__
Quando telefonava
clandestina
para encontros
clandestinos
identificava-se
Luíza Porto
Lola era afável
posto que estrábica
muito levemente estrábica
atirava bem
Muito bem
até que um dia
não ligou nunca mais.
Acabou a poesia.
__
Há que
haver sobrado
alguma poesia
Há que
haver
pelo menos
a certeza poética
emblemática
de que
a luta continua
E há que
haver a aceitação
dessa certeza
porque não posso
sozinho
dinamitar a ilha de Manhattan
e construir uma nova
Aurora.
Dona de uma beleza muito peculiar, Aurora Maria do Nascimento Furtado era líder estudantil na Psicologia da USP. Trabalhou também no Banco do Brasil. Na ocupação da Maria Antônia, em 1968, era bastante respeitada nas assembleias e reuniões. Desejada por muitos. Era namorada e companheira de José Roberto Arantes de Almeida, então vice-presidente da UNE, igualmente morto sob torturas pelo DOI-Codi de São Paulo em 4 de novembro de 1971.
O livro Direito à Memória e à Verdade, publicado em 2007 pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, registra a informação que foi constatada pessoalmente pela advogada Eny Raimundo Moreira, que conseguiu chegar até o seu cadáver e constatou um nítido afundamento na região frontal e parietal: “Aplicaram-lhe também a Coroa de Cristo, fita de aço que vai gradativamente sendo apertada, esmagando aos poucos o crâneo”, está registrado nesse documento.
Aurora foi presa por policiais civis da Invernada de Olaria, no Rio, em 9 de novembro de 1972, sendo trucidada conforme reconheceu um dos chefes da tortura, o general Adir Fiúza de Castro, que comandou o DOI-Codi naquele estado. Em depoimento a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares, o torturador admite explicitamente: “Calculo o que fizeram com ela”.
Alípio velho, meu grande amigo, sua Carta Aberta dos últimos dias de 2009 terminava assim:
“Pois é, meu companheiro Vannuchi, seguimos mais uma vez juntos, e até o fim, nesta nova trincheira onde, mais uma vez ainda, o que está em jogo é a classe trabalhadora, o povo e todos os/as democratas e homens e mulheres de bem deste País”.
Respondo só agora. Mas saiba que sou muito grato a você. Eternamente grato. Seguimos juntos sim. E esse fim nunca chegará.
Vou inverter a citação romana de Flavio Andrade para me despedir com uma saudação que me ocorre agora:
Ave Alípio! Os que vão viver te saúdam!
Em especial os mais jovens que nós dois.
São milhares de Maianas, Camilas e Paulos, como chamam seus filhos e de Rita. Uma geração que já provou estar disposta a seguir adiante e libertar o Brasil dos muitos vírus que nos assolam hoje.
Paulo Vannuchi é jornalista e mestre em Ciência Política, foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos durante cinco anos no período Lula e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), entre 2014 e 2017. Atualmente é presidente da Fundação responsável pela TVT e pela Rádio Brasil Atual, e integra a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns