Internacional

As lições do passado recente indicam que Biden, mas principalmente seus opositores democratas, precisam ficar atentos a uma realidade básica: a linha entre o avanço e o retrocesso é tênue

Em nenhum momento Biden escondeu que era o candidato do centro. Foto: Potus/Fotos Públicas

Em muitos aspectos, o ano de 2021 é uma continuação de 2020: manutenção da pandemia do Covid-19, ritmos lentos de vacinação, políticas públicas equivocadas, travamento do multilateralismo, disputas entre as grandes potências, desrespeito ao meio ambiente e aos direitos humanos, crise de refugiados, guerras contínuas e eclosão de novos ciclos de violência em conflitos em andamento como entre Israel e Palestina. Como pano de fundo, a prevalência da crise econômica, as desigualdades sociais de classe, gênero e raça e o tensionamento dos modelos neoliberais, dos fundamentalismos e das alternativas progressistas de esquerda e centro-esquerda.

Contudo, a posse do governo democrata de Joe Biden em janeiro de 2021 pareceu trazer um alento, pelo menos para os Estados Unidos (EUA): uma mudança de paradigma pós-trumpismo em áreas sociais e ambientais, além de políticas de recuperação do Estado e de investimento. Para dar conta desta agenda, simbolizada nos slogans “America is Back” e “Build Back Better”, uma combinação de táticas: negociações legislativas para a construção de um consenso bipartidário democrata-republicano, promoção da unidade democrata e ordens executivas. As ordens executivas possuem dupla função: acelerar o desmonte da era Trump e avançar quando o consenso não é atingido.

Entre janeiro e maio, a ofensiva Biden concentrou-se em um tripé de projetos: o American Rescue Plan1, o American Jobs Plan2 e o American Families Plan3. Enquanto o primeiro, com aporte de US$ 1,9 trilhão, se insere na dinâmica emergencial de auxílio a pessoas, comunidades e empresas, tendo como elemento fundante a cobertura vacinal da quase totalidade da população até 4 de julho, dia da Independência dos EUA, os demais possuem dimensões estruturais.

O Jobs Plan é o mais ambicioso, sendo comparado ao New Deal de Franklin Delano Roosevelt (FDR) que recuperou, ao longo da década de 1930, o país da Grande Depressão (1929). Com FDR, o Partido Democrata assumiu sua vocação social, de defensor de um capitalismo de bem-estar, de representante das minorias e de caráter secular. São previstos cerca de US$ 1,8 trilhão de investimentos, para a recuperação e modernização da infraestrutura: transportes, acesso a água, energia e comunicações, educação e serviços públicos, saúde (ampliação do acesso via Affordable Health Care), bem-estar, e meio ambiente (a revolução energética verde e o combate à crise climática).

A criação de linhas de crédito a pequenas empresas, aumento do salário mínimo e reforma do sistema tributário, surgem como prioridades. Este último ponto, a questão do sistema tributário e o incremento de políticas de abono e restituição de gastos familiares com despesas básicas como educação e saúde foram expandidos no Families Plan. Este plano é uma combinação de renúncia fiscal por parte do Estado e de maior cobrança de impostos nas faixas mais altas de renda e para grandes fortunas.

Para completar, o primeiro documento estratégico para as relações internacionais, o Interim Strategic Guidance4 reforçava estas prioridades: segurança sanitária, preservação ambiental, direitos humanos, definindo a China como principal ameaça geopolítica e geoeconômica. Em termos práticos, a cúpula bilateral EUA-China sinalizou uma relação de coexistência competitiva com picos de conflito no Mar do Sul da China (MSCh) e nas acusações sobre o desrespeito a direitos humanos em Xinjiang, estando até mesmo inserida uma proposta de boicote aos Jogos Olímpicos de Inverno em 2022.

A Cúpula do Clima realizada em abril de 2021 sinalizou a disposição em combater o aquecimento global, promover a citada revolução verde e pressionar as demais nações a aderir a compromissos reais de corte de emissões e combate a ações predatórias como queimadas e desmatamento (em um recado direto ao Brasil). Em maio, destaca-se a posição inédita, e até por isso histórica, de defesa da quebra temporária das patentes de vacinas para Covid-19 em meio à pandemia, por razões humanitárias, já solicitada por Índia, África do Sul, OMS e OMC, a qual também aderiu a China (proposta corrente desde 2020, e rejeitada de forma veemente pelo então presidente Trump e aliados como o Brasil). Somado a isso, uma possível doação de vacinas a outras nações, pendente que o ciclo vacinal nos EUA esteja completo.

À primeira vista, e como indicado, este conjunto de políticas públicas parecia atender as promessas de campanha de Biden, sistematizadas no que ele denominara em seu discurso de posse como a política externa da classe média5. Entretanto, é este mesmo pacto o centro de controvérsias, que está levando à fragmentação do Partido Democrata. Em nenhum momento Biden escondeu que era o candidato do centro, de linha moderada, que faria um balanço entre as tradições da agenda e a inovação da geração mais jovem.

Alheios a essa dinâmica, representantes da ala mais liberal, acumulam pressões sobre o governo, pedindo uma postura mais agressiva. Não só Biden é alvo de críticas, pela excessiva moderação, mas também a vice Kamala Harris por sua falta de engajamento. O foco recai sobre temas de direitos humanos e meio ambiente, e na suposta falta de ousadia de Biden que apenas retomaria políticas de Obama em todos os setores.

Embora válidas, essas dinâmicas não podem extrapolar linhas partidárias e chegar ao limite de travar o governo. Entre 2008 e 2010, esse processo já acontecera com Obama, quando o presidente perdeu mais tempo negociando (muitas vezes sem sucesso) com seu partido do que com os republicanos. As lições do passado recente indicam que Biden, mas principalmente seus opositores democratas, precisam ficar atentos a uma realidade básica: a linha entre o avanço e o retrocesso é tênue. A implosão do Partido Democrata por disputas internas não trará nenhum benefício ao projeto progressista, mesmo que em uma versão light, em um momento que o Partido Republicano se divide entre ser apropriado por Trump ou retomar uma linha conservadora moderada.

Essa fragmentação somente reforça a narrativa trumpista de que os democratas são radicais e os republicanos de centro traidores. Trump colheu vitórias importantes como a destituição de Liz Cheney, deputada por Wyoming, filha do ex-presidente Dick Cheney do cargo de líder da minoria na Câmara, uma das poucas vozes de oposição que abriu as portas para o ataque a outros líderes republicanos de centro-direita. Teorias da conspiração permanecem, atribuindo aos movimentos sociais liberais os ataques ao Capitólio de 6 de janeiro, não se podendo deixar de mencionar as manifestações racistas, xenofóbicas, e a promoção da violência em associação a grupos supremacistas brancos. O trumpismo será combatido com ideias e diminuição das desigualdades de forma linear, e com o seu estrangulamento financeiro e midiático, e não por rachas autofágicos.

Mais grave para as pretensões eleitorais democratas, legislativas e executivas, foram os dados divulgados pelo Censo: estados progressistas como Califórnia e Nova York e sem perfil eleitoral definido como Michigan, Ohio e Pensilvânia perderam peso ao encolher populacionalmente. Enquanto isso, redutos conservadores como Texas, Florida, Colorado e Montana ganharam influência. Adicionalmente, a recuperação econômica é lenta, a geração de empregos baixa, o aumento de renda é menor do que esperado e a dívida interna pode atingir em 2021 um valor acima de US$ 3 trilhões.

Formar uma frente única significa abrir mão de ser progressista? Alguns dirão que sim. Porém, a resposta é outra: não necessariamente. Projetos políticos não existem no vácuo, ou no consenso e unanimidade. Resultam de disputas para que se possa encontrar o equilíbrio de perdas e ganhos. Enquanto as forças progressistas, de esquerda e centro- esquerda (ou no caso dos EUA, liberais), não compreenderem esta equação pragmática a tendência é que suas coalizões se manterão frágeis, serão menos duradouras e frequentemente sofrerão perdas em processos eleitorais. O próximo é em 2022 e poderá custar a maioria democrata na Câmara dos Deputados e o “empate” no Senado. Não seria o caso de ver essa realidade de forma menos utópica e focar nas reformas propostas por Biden? Não seriam essas as principais batalhas?

Mais uma vez diriam os críticos: não! Trairíamos nossos princípios! Será? Ou tentaríamos, como Biden parece estar fazendo, alcançar o que é possível dentro de um cenário adverso e sem se descolar abruptamente de grande parte do eleitorado que o elegeu? Esta é uma situação satisfatória para os que desejam a transformação, e, principalmente, para os que precisam dela? Não. Só que a política tem os seus tempos e os seus jogos, e precisamos compreendê-los para conseguir a mudança, em um mundo polarizado, no qual ainda estamos em desvantagem no curto prazo.

Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Unifesp e dos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas Unesp/Unicamp/PUC-SP e em Economia Política Internacional da UFRJ. Pesquisadora do Nerint/UFRGS e do CNPq