Sociedade

No dia 7 de abril de 2018, horas antes de Lula se dirigir à Polícia Federal e ser levado a Curitiba, ao lado do ex-presidente o padre Hervy relembrava a tensão das lutas sindicais dos anos 1970

Padre Hervy ao lado de Lula em missa em homenagem à dona Marisa Letícia. Foto: Reprodução

“Eu sou um padre operário. Esta assembleia de hoje me lembra uma de 40 anos atrás, no Estádio da Vila Euclides”. Assim o padre Bernard Hervy, ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, começou a falar ao povo na celebração em memória do aniversário de dona Marisa Letícia no dia 7 de abril de 2018. Horas mais tarde, Lula se entregaria à Polícia Federal para ser levado para a prisão em Curitiba.

“Tinha uma população como essa aqui, de trabalhadoras e trabalhadores de todas as idades, todas as religiões, todas as igrejas. Estávamos reivindicando coisas importantes. Lula estava intermediando como presidente do sindicato para saber se os patrões da época iam aceitar nossas propostas justas, sustentadas através de nossa greve”, ele continuou.

“De repente, no meio do povo, alguém, que não se sabe quem foi – não foi um padre –, alguém começou a levantar os braços, dando a mão a seus vizinhos, e começou a rezar o Pai Nosso”, Hervy concluiu, antes de puxar a oração coletiva.

Muitos dos participantes do ato ficaram surpresos com aquele padre idoso de sotaque francês, que Lula abraçou e beijou – e que parecia tão íntimo da luta operária.

Com aquela rápida reminiscência, que unia luta operária e espiritualidade popular de forma simples e espontânea, Hervy sintetizou o programa pelo qual viveu: a prática de uma fé viva, que buscava construir o reino de Deus com fundamento na solidariedade entre os trabalhadores e os mais pobres.

No dia 5 de junho de 2021, padre Bernardo Hervy faleceu em São Paulo aos 91 anos.

Nascido em Roche-Bernard, na região francesa da Bretanha, em 1929, Hervy desde jovem manifestou a vocação de viver e trabalhar entre os mais necessitados.

“Vivi por dois anos no presbitério de Le Kremlin Bicêtre [pequena cidade perto de Paris], onde Bernard, depois do diaconato, tornou-se padre operário. Ele aprendeu o ofício de torneiro mecânico logo em seguida e obteve uma licença profissional”, lembra Jean Luc Hervy, seu irmão 12 anos mais novo.

O padre recém-ordenado trabalhava de dia e, à noite, voltava à sua paróquia. “Quando os Filhos da Caridade [sua congregação na época] assumiram uma paróquia no Brasil, ele se voluntariou e teve que aprender em seis meses o português”, Jean Luc recorda.

Hervy chegou ao país em 1966. Estabeleceu-se em São Vicente, onde era pároco na Vila Margarida. Logo se envolveu na Ação Católica Operária (ACO), um dos movimentos católicos de trabalhadores nascidos na Europa por iniciativa do cardeal belga Jozef Cardijn.

“Eu o conheci alguns anos depois e ele me levou para a ACO. Íamos às reuniões dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Paulista [Cosipa]. Eu me tornei uma espécie de relatora dele nas reuniões. Acabei ficando até hoje”, lembra Maria Aparecida Grillo, militante do Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC), como a ACO passou a se chamar.

Ao lado dos companheiros da ACO, Grillo e Hervy travariam muitas lutas ao longo dos anos. Uma delas teve relação direta com a Cosipa. Nos anos 1980, eles lutaram para que trabalhadores demitidos pela empresa que sofriam de leucopenia – doença que afeta a produção de glóbulos brancos e é causada pela exposição a substâncias químicas nas fábricas – fossem devidamente indenizados.

Por causa de sua militância política, o padre sempre sofreu perseguições. Sua primeira prisão foi apenas dois anos após chegar ao Brasil. Ocorreu na noite de 13 de dezembro de 1968, quando o Ato Institucional n. 5 foi decretado pela ditadura militar.

“Vieram à nossa casa durante a noite e fomos levados para o quartel de São Vicente. Os três padres operários, Filhos da Caridade, fomos mantidos por seis dias”, Hervy relatou em entrevista ao jornal do Sindicato dos Químicos Unificados em 2010.

Uma ficha em seu nome, no arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Santos, relaciona o padre ao Partido Comunista Francês, com o qual ele nunca tivera qualquer ligação.

Em meados dos anos 1970, Hervy mudou-se para o ABCD paulista, onde continuou trabalhando em fábricas, das quais era invariavelmente demitido quando a chefia descobria que ele era padre e que estava atuando na organização política de seus colegas.

Com a eclosão das grandes greves metalúrgicas em 1978, ele passou a presidir o Fundo de Greve de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.

“Os trabalhadores circulavam pelo sindicato à procura de emprego e muitos não tinham o que comer nem como manter suas famílias. Chegamos a presenciar operários desmaiarem por não terem comido após assembleias e atos de greve”, lembra Isabel Peres, que atuou com ele no Fundo de Greve e em diversas outras iniciativas no ABCD.

Em 1979, quando o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo estava sob intervenção, Hervy foi preso novamente. O carro da Igreja em que estava foi parado e revistado pela polícia. O padre carregava materiais de divulgação sindical.

Além da coleta e distribuição de cestas básicas, o Fundo de Greve estimulava a solidariedade e a consciência de classe no operariado em diferentes níveis. Um dos elementos centrais do trabalho de Hervy e Isabel Peres foi a organização das Feiras de Cultura Operária (Fecops).

“Percebemos que havia uma grande riqueza cultural entre os trabalhadores e nos bairros populares” conta Peres.

A Fecop teve duas edições uma em 1983 e outra em 1984, ambas com mais de 5 mil participantes. Dezenas de grupos de música, teatro, circo, folguedos populares e dança se apresentaram nas feiras, além de artistas plásticos, artesãos e poetas do meio operário terem exposto suas obras.

No vídeo feito sobre a primeira edição da feira por um dos coletivos participantes, o padre aparece dando sua opinião sobre o conceito de cultura operária.

“Normalmente, os trabalhadores têm a ideia de que cultura é aquilo que eles recebem pela TV, rádio e revistas. Mas eles sentem e vivenciam coisas que às vezes eles não têm como expressar”, dizia Hervy no único registro audiovisual do evento que restou.

“Para mim, cultura é quando um grupo de trabalhadores – no bairro, na fábrica ou no sindicato – tem a condição de expressar essas coisas da forma como desejar. Protestando, ou poeticamente, ou brincando, ou pela arte”, concluiu.

Isabel Peres destaca que mais de cinquenta comitês organizadores foram formados pelos trabalhadores e trabalhadoras que planejaram a Fecop. O estímulo à autogestão foi um aspecto central na atuação de Hervy.

Na segunda metade da década de 1980, o padre transferiu-se para Salvador, onde assumiu a paróquia de Nossa Senhora dos Alagados.

“Ele criou um conselho para tomar as decisões sobre a vida da Igreja coletivamente. Também buscou integrar a paróquia a outros grupos e associações do bairro, na luta pela defesa dos direitos humanos e pela transformação social”, conta o teólogo e professor William Tavares, que conviveu muito com Hervy naquele período.

Tavares e o padre coordenaram conjuntamente o Centro de Evangelização da periferia de Salvador. Em torno de duzentas comunidades eclesiais de base (CEBs) foram alcançadas pelo trabalho do Centro.

“Ele se preocupava muito com a elaboração de subsídios para a formação dos agentes pastorais. Fizemos juntos dois livros para a ACO, parte da História do Povo de Deus, e inúmeras cartilhas com releitura da Bíblia. Ele era incansável nesse trabalho”, Tavares acrescenta.

Na Bahia, Hervy também fomentou as equipes da ACO ininterruptamente, sempre em contato com sindicatos e partidos de esquerda.

Em meados da década de 1990, finalmente voltou para São Paulo, passando a coordenar a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat Brasil) ao lado de Isabel Peres. Mas sempre continuou a atuar no MTC, que era sua “menina dos olhos”, conforme ela define.

Não por acaso, o regional São Paulo, por ele assessorado, frutificou em diversas equipes, na capital e no interior. Hervy acompanhava com animação inesgotável e rigor organizativo os militantes do MTC, sempre insistindo no emprego adequado da principal ferramenta crítica do movimento, que acabaria sendo assimilada por grupos da Teologia da Libertação em toda a América Latina: o método Ver/Julgar/Agir de análise e intervenção na realidade social.

Em 2015, já com 85 anos, Hervy ainda demonstrava energia invejável ao empenhar-se na construção de um grupo de Fé e Política na comunidade de Heliópolis, na zona sul de São Paulo.

“Quando ele apareceu para nós em Heliópolis, foi uma grande alegria. Ele trazia a prática da Teologia da Libertação. Era um padre no meio do povo”, lembra Antônia Cleide Alves, presidenta da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas).

“Ele trazia para nós o Jesus Cristo que andava no meio dos pobres e que não deixou que jogassem pedras na mulher adúltera. Refletia conosco sobre nossos direitos. Dizia, por exemplo, que não era normal nem natural que a polícia entrasse na comunidade para agredir ou prender os jovens negros”, Alves acrescenta.

Até o fim de sua vida, Padre Bernard Hervy não deixou a militância nem por um momento. Sempre acompanhava as notícias políticas, os documentos da Igreja e a cultura operária. Na internet, às vezes fazia descobertas que gostava de partilhar com os companheiros, como a de antigas canções do movimento socialista francês.

Para Gustavo Xavier, jornalista e sociólogo que pesquisou a história da Teologia da Libertação no ABCD e foi amigo de Hervy, sua marca foi a de um “grande lutador com coração generoso.”

“Ao olhar para sua vida tão ativa em favor dos trabalhadores, dos torturados, dos oprimidos em tantos sentidos, pode-se imaginar que fosse alguém duro. Afinal, aguentou muitas situações difíceis, como costuma acontecer com os profetas. Mas ele era doce, democrático, suave”, ele descreve.

Como tantas pessoas que foram tocadas por seu trabalho e seu exemplo, Xavier acredita que há um traço de santidade na trajetória de Hervy.

“Ele abria os espaços para que as pessoas se movessem adiante, na vida cotidiana, nas grandes lutas e nas águas da espiritualidade. Tudo isso revela que o padre Bernard seguiu Jesus bem de perto. Acho que são ótimos amigos”, reflete.

Eduardo Campos Lima é jornalista