Especial

Se ainda vivo, Marco Aurélio, com seus 80 anos, seria incansável no esforço para assegurar a condenação de Bolsonaro junto a todas as instâncias internacionais de julgamento por crimes de lesa-humanidade

Lula chega à Conferência Combatendo o Terrorismo em prol da Humanidade, acompanhado de Marco Aurélio e Celso Amorim. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A ausência de Marco Aurélio Garcia exacerba a enorme lacuna que vem se produzindo no âmbito regional desde que o Brasil abandonou a “opção” de outorgar prioridade ao estreitamento de vínculos políticos e laços de solidariedade com a América Latina, e especialmente com o seu entorno sul-americano. É plenamente conhecida a centralidade da atuação de Marco Aurélio para a edificação de tal projeto durante os governos de Lula  e Dilma em seu papel de assessor internacional de ambos mandatários. Enquanto o Itamaraty lhe imprimia profissionalismo diplomático, Marco Aurélio assegurava um norte político que implicava a abertura de espaços inclusivos de diálogo e negociação em âmbitos bilaterais e multilaterais. A valorização de contatos sistemáticos com atores de esferas parlamentares, sindicais, empresariais e acadêmicas permitiu adensar o relacionamento do país com seus vizinhos e pares regionais. Este adensamento foi acompanhado por motivações políticas comprometidas com o fortalecimento de valores democráticos de índole progressista que sempre rejeitaram desenlaces apoiados na violência e/ou na intolerância.

Para Marco Aurélio, o Brasil deveria empenhar-se no fortalecimento do progressismo latino-americano como também assumir claras responsabilidades frente a contextos de severas crises políticas nas quais houvesse risco de ruptura institucional. Sua presença, ao lado do presidente Lula, foi crucial na resolução dos episódios de alta tensão que tiveram lugar na Venezuela em 2003, no Equador em 2008, na Bolívia em 2003 e 2008. Com o mesmo tipo de motivação, Marco Aurélio atribuía ao Brasil um lugar estelar nos âmbitos multilaterais da região; fossem sub-regional como o Mercosul, sul-americano como a Unasul ou latino-americano como a Celac.

Foram inúmeras as nossas trocas – quase sempre em Buenos Aires e Brasília – analisando e discutindo o cenário regional, país a país. Trabalhamos juntos para a organização de eventos acadêmicos em diferentes partes da região para aprofundar o nível e ampliar o alcance do debate público sobre os temas relevantes da agenda regional. Nas avaliações de Marco Aurélio nunca faltou uma perspectiva realista que reconhecesse os entraves causados pelas diferenças políticas intrarregionais, o peso contra producente das assimetrias entre o nosso país e os seus vizinhos e as pressões e percepções daninhas de poderes extrarregionais – em particular dos Estados Unidos. Mas as apreensões maiores de Marco Aurélio sempre tiveram o foco colocado nos fatores domésticos e na resistência dos atores e interesses no país para garantir bases de sustentabilidade ao que chamou uma “opção sul-americana” para a política externa brasileira.

Esta opção foi alvejada sem erro de mira pela total desconstrução do projeto de política externa formulada pelos governos do PT, a partir do golpe parlamentar de 2016. A veloz ideologização das ações e posturas do Brasil na América do Sul rapidamente selou sua aproximação a seus pares mais conservadores e a retomada do alinhamento aos Estados Unidos. A partir do governo Bolsonaro deu-se consistência a uma política de má vizinhança que adquiriu um forte viés militarizado, transformando fronteiras de cooperação em barreiras de separação. Nos anos 2020-21, com a pandemia da Covid-19, nosso país se converteu numa ameaça sanitária regional, o que aprofundou o isolamento internacional causado pelo negacionismo governante. Para um país com o peso e a trajetória recente do Brasil este isolamento produz um vácuo internacional e regional que tornam ainda premente retomar o sentido das palavras e ações de Marco Aurélio Garcia.

PS:  Ao enviar estas linhas de homenagem e lembrança nestes dias de tanta tristeza e luto no Brasil posso asseverar que, se ainda vivo, Marco Aurélio, com seus 80 anos, seria incansável no esforço para assegurar a condenação de Jair Bolsonaro junto a todas as instâncias internacionais de julgamento por crimes de lesa-humanidade.

Monica Hirst é professora visitante no IESP-UERJ e docente na Universidade Torcuato di Tella