O debate sobre a luta pela democracia é atualíssimo no mundo e, em especial, no Brasil. Aqui a democracia tem sido agredida historicamente e em tempo recente com o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016, a degradação da institucionalidade ocorrida nas gestões golpistas, a eleição antidemocrática de 2018, os ataques aos direitos e as tentações autoritárias cotidianas de Messias Bolsonaro. A ruptura e as violações de estruturas, comportamentos, regras e pactuações colocam a questão democrática na centralidade do cenário político brasileiro atual.
Daí a emergência da discussão acerca da (frente pela) democracia. Diversas são as posições a respeito do tema. Talvez uma reflexão sobre a concepção de democracia possa auxiliar a enfrentar a temática de modo mais rigoroso, pois o termo, como muitas das noções socialmente relevantes, possui múltiplos significados. Desvelar os possíveis sentidos da democracia pode contribuir para clarear por qual democracia se luta em uma frente, que sempre comporta diferenciadas concepções de democracia.
O significado mais comum relaciona democracia ao tema do Estado. Nesse caso ela aparece como regime político de governo do Estado. Sua invenção grega na antiguidade e sua reinvenção moderna propiciaram o desenvolvimento de um conjunto de requisitos básicos para se falar em democracia como regime político de governo do estado: eleições (competitivas e periódicas), cidadania (política), liberdade de discussão e de organização políticas, divisão do poder político em três poderes diferenciados (Executivo, Legislativo e Judiciário), pluralidade político, liberdade de expressão etc. Em suma, diversos mecanismos para assegurar a desconcentração do poder político e para tornar o governo acessível e permeável à sociedade. Nasce então a democracia representativa moderna, que vai se conformando por séculos desde as revoluções inglesa e, principalmente, a francesa.
Hoje a democracia representativa sofre significativo mal-estar. Em muitos países ela não se efetivou. Em outros, ela se realizou de modo bastante frágil, como na história brasileira. Em outros, ela está sendo desconstruída, como na atualidade brasileira. Mesmo em países que desenvolveram uma tradição de democracia representativa, existe agora mal-estar, pois ela não conseguiu que os governos representem os interesses diversificados da população e assegurem seus direitos de maneira satisfatória. Isso acontece, com destaque, em relação aos setores sociais mais pobres, oprimidos, excluídos e marginalizados.
Na democracia representativa os cidadãos delegam seu poder aos representantes eleitos – com exceção do Judiciário no caso brasileiro – para governarem em seu nome. Tal relação de representação encontram-se questionada por inúmeros fatores, dentre eles cabe anotar o descompasso entre as opiniões de cidadãos e seus representantes, a substituição de interesses coletivos por interesses privados e os privilégios aferidos por representantes em detrimento da situação dos cidadãos. O questionamento da representação faz com que a democracia representativa hoje, mesmo nos países com tradição política, esteja imersa em significativo mal-estar, o que inclusive possibilita a expansão de correntes de extrema-direita autoritárias profundamente antidemocráticas.
O mal-estar coloca em cena a necessidade de novas modalidades de democracia para além da representativa. Nesta perspectiva surgiram em muitos países propostas e experiências novas, denominadas, em geral, de democracia participativa. Não se trata simplesmente de substituir um formato de democracia por outro, com os inúmeros riscos daí decorrentes, inclusive porque os dispositivos de democracia participativa ainda são novidades e necessitam ser experimentados, amadurecidos, aprimorados e consolidados, algo que demanda tempo e capacidade de imaginação. Trata-se, em verdade, de inventar e engendrar procedimentos complexos de combinação das democracias representativa e participativa.
Inspirados na Constituição de 1988, em governos pós-ditadura das esferas federal, distrital, estaduais e municipais foram realizados, mesmo de forma incipiente, experimentos de democracia participativa, por meio de conselhos, conferências para discussão de políticas públicas, (poucos) plebiscitos, consultas públicas, orçamentos etc. Nos governos Lula e Dilma Rousseff, os experimentos foram multiplicados, mas sua experimentação, aprimoramento e consolidação continuam a demandar tempo mais longo de maturação. As gestões golpistas barraram de forma brutal tais experimentos e bloquearam o desenvolvimento da democracia participativa no país.
A luta pela democracia como regime político de governo do Estado implica ampliar, aprofundar e aprimorar a frágil democracia representativa brasileira com medidas que busquem assegurar a mais efetiva e plural representação no Executivo e no Legislativo, bem como garantir a democratização do Judiciário, limitando os privilégios e tornando tais poderes identificados com a população. A democratização e a autonomia efetiva dos três poderes, quase sempre submetidos à tentação autoritária do Executivo, agravada na gestão Messias Bolsonaro, aparece como vital para o futuro da democracia.
Para além da melhoria da democracia representativa, a luta (da frente) pela democracia deve garantir espaço abrangente para o alargamento da democracia participativa, com revogação de todas as legislações golpistas contra ela e com o apoio sistemático a todos os dispositivos possíveis de empoderar a participação dos cidadãos por meio de conselhos, conferências, plebiscitos, orçamentos participativos, consultas públicas e outros canais. Cabe dedicar atenção especial para a prevalência de políticas públicas sobre políticas apenas estatais. A participação de todos no debate e na deliberação das políticas é condição essencial para torná-las públicas e para aprofundar a democratização das políticas e do Estado. A consolidação desses e de outros mecanismos de participação a serem imaginados é imprescindível para o fortalecimento da democracia no Brasil e a superação da fragilidade, que assola a democracia nacional, hoje mais uma vez tão agredida.
Mas a democracia não é e não pode ser reduzida ao regime político de governo do Estado. Bem mais que isso, a democracia deve ser compreendida e efetivada como imanente e indispensável à sociedade. O paradoxo da convivência de um Estado democrático em uma sociedade autoritária é insustentável e inviável. Desse modo, a luta pela democracia não pode ser limitada ao governo do Estado, por mais importante que seja. Ela precisa incidir na sociedade, democratizando estruturas, comportamentos, costumes, valores e a vida societária. Se a democracia é um avanço civilizatório na maneira política de debater e deliberar acerca do governo do Estado por que não espraiar sua vigência à vida social e construir uma sociedade democrática?
As concentrações de poder, inimigas mortais da democracia, não se restringem ao Estado, mas perpassam a sociedade, em especial em sua configuração capitalista e, ainda mais grave, em sua circunstância neoliberal. As gigantescas concentrações de poder inerentes a tais sociedades colocam em grande risco a democracia no mundo atual. Basta lembrar o enorme aumento da desigualdade socioeconômica mundial nestes tempos neoliberais. A democracia para se realizar necessita desconcentrar poderes e torná-los cada vez mais socializados. Tais condições são fundamentais para a própria existência da democracia. Sem desconcentração e socialização dos poderes não há democracia.
As lutas pela democracia no mundo e no Brasil envolvem hoje um conjunto complexo de temáticas. Algumas mais antigas como a exploração de classe e a submissão internacional de nações, outras que emergiram e ganharam força na contemporaneidade, como aquelas relativas às opressões de gênero, étnico-raciais, de orientação sexual, etárias, de origem regional, religiosas etc. Todas elas marcadas a ferro e fogo por dilacerantes desigualdades e concentrações de poderes, que exigem ser tratadas em perspectivas democratizantes. As desigualdades de poder que atravessam hoje muitas relações sociais na sociedade têm de ser enfrentadas e superadas para que a democracia se instale em plenitude no mundo e no Brasil contemporâneo.
Em uma sociedade rica e muito desigual, como a brasileira, a construção da democracia na sociedade apresenta-se como desafio grandioso. Superar múltiplas carências e acabar com fartos privilégios é condição essencial para a democratização da sociedade nacional. A garantia de direitos básicos como alimentação, moradia, trabalho, terra, educação, saúde, cultura, locomoção e comunicação se inscreve como alicerce para uma sociedade verdadeiramente democrática. Em um mundo cada vez mais conectado, com sua singular sociabilidade, que combina no dia a dia em tempo real e planetário, espaços geográficos, presenciais e convivênciais com espaços virtuais, remotos e televivênciais (vivências à distância), a democratização da comunicação midiática torna-se essencial para a vida democrática no Estado e na sociedade.
As muitas lutas existentes na atualidade internacional e brasileira, que se debruçam em diferentes setores sobre a desigualdade de poderes presentes nas mais distintas relações sociais, têm como eixo comum a temática da democratização da sociedade. Temas antes considerados como da vida íntima como as relações entre homens e mulheres, permeados de relações de poder, hoje se inserem na vida pública e reivindicam relações sociais novas e igualitárias. Outros temas invisibilizados, como os preconceitos e discriminações étnico-raciais, por exemplo, reclamam urgente tratamento democrático e reparo das injustiças históricas praticadas contra populações negras, comunidades LGBTQIA+, povos originários e outras. Some-se a este novo universo de relações sociais a serem democratizadas aquelas historicamente inerentes ao capitalismo como as desigualdades e discriminações de classe e de nações submetidas à exploração neocolonial.
A democratização radical do Estado e da sociedade aparece como horizonte de outra sociedade possível para além das limitações históricas engendradas pelo capitalismo, em especial em sua face atual e feroz de neoliberalismo. O “socialismo realmente existente”, que marcou a experiência histórica do século 20, foi baseado na “socialização” dos meios de produção, concebida como mera estatização. Ela concentrou enormes poderes no Estado, que se distanciou e buscou controlar a sociedade, esquecendo a democracia. A socialização do poder aparece na contemporaneidade como condição imanente para a construção do socialismo, entendido, em sua atualidade, como democratização radical da sociedade e do Estado.
Antonio Albino Canelas Rubim é professor na Universidade Federal da Bahia