Política

Buscar a cassação por meio apenas da corrupção pode fazer esquecer o autoritarismo, o neofascismo, o ultraneoliberalismo, a destruição de direitos, a violência e o genocídio de mais de 500 mil brasileiros

A falta de afeição pela vida humana  coloca em xeque a própria democracia. Foto: Mídia Ninja/Facebook

A corrupção se soma ao genocídio. Parece uma novidade algo requentada. Daquelas que trazem quase nada de novo. Apenas reafirma o sabido. Apesar da falta de novidade, a conjunção genocídio e corrupção é potente para fustigar o presidente. A corrupção é tema poderoso. Afinal, a grande mídia constrói, desde sempre e cotidianamente, a corrupção como o mal que assola e deprime o Brasil. A entronização deliberada da corrupção como o mal maior cria um imaginário de que ela bloqueia o presente e impede o país do futuro. O Brasil não deslancha e sempre descarrilha por causa da corrupção dos políticos. O uso político da corrupção impede que ela seja enfrentada, como necessita o país.

A corrupção tem muitas serventias, além de explicar e justificar o atraso e os impasses do desenvolvimento do Brasil. Ela serve para silenciar, fazer esquecer que tem muitas mãos na cumbuca e não só as de políticos. Só lateralmente os empresários são lembrados. O protagonismo maior da corrupção silencia as gigantescas desigualdades socioculturais e os enormes privilégios que marcam a ferro e fogo a sociedade brasileira. Desigualdades e privilégios que explicam de modo bem mais consistente e rigoroso as interdições ao aprimoramento e desenvolvimento do país.

A corrupção é tão poderosa, em seu agendamento persistente pela grande mídia, que pode apagar e fazer esquecer quase tudo. A onipresente visibilidade, em amplos e nada plurais espaços generosamente dedicados a ela pela grande imprensa, impõe a corrupção como um dos principais temas da agenda pública nacional. Ela é impositiva, invade tudo e quase todos se manifestam sobre ela, inclusive muitos corruptos, que fazem pronunciamentos hipócritas contra a corrupção. A espalhafatosa sessão do impeachment-golpe contra a presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados foi exemplo emblemático da hipocrisia, que perpassa muitos ambientes brasileiros.

A “descoberta” da corrupção que grassa na família presidencial era óbvia, não tanto pelos trabalhos investigativos da CPI, pois ela se mostrava no dia a dia. Só não via quem não queria ou quem tinha interesses em não ver. Criados na pequena corrupção das rachadinhas e dos negócios das milícias, nada surpreendente que eles estejam imersos na corrupção, desde sempre. A novidade é que, agora instalados no poder federal, eles deram um upgrade na envergadura da corrupção. A mansão em Brasília é o expressivo rito de passagem da baixa corrupção para a seu novo e esplendoroso patamar. Ele escancara o saque destrambelhado e sedento do dinheiro público. Cabe à CPI (com)provar o já sabido e desvelar a nova envergadura da corrupção.

Uma anotação sobre o comportamento da grande mídia se torna necessária. Arrogante e agressiva quando trata de pessoas das classes sociais populares, ela se mostra bastante condescendente com o lumpesinato, que tomou de assalto a política brasileira. Não se deve esquecer o papel significativo da grande imprensa na produção e disseminação do ódio cotidiano contra a esquerda e o PT, com o objetivo de retirá-los do poder político. O efeito colateral do envenenamento da sociedade e da política foi pavimentar a tomada do poder pela extrema-direita bolsonarista. A diferença do tratamento da grande imprensa dado a Lula e a Messias Bolsonaro é gritante. Foram precisos interesses contrariados e muitas agressões e violências do capitão contra a imprensa e a população para que parte dela começasse a esboçar críticas, muitas vezes comedidas em face da contundência dos ataques. Contra Lula, a campanha de ódio foi brutal, unificada e orquestrada, reunindo toda grande imprensa, com a honrosa exceção da revista Carta Capital.

Voltando à corrupção. Ela, dado seu vigoroso agendamento público, aparece como caminho mais curto para desgastar mais rapidamente o presidente, ampliar sua rejeição e abrir alguma possibilidade de impeachment, hoje ainda distante. O gritante descompasso entre os parcos motivos listados para o impeachment/golpe contra Dilma e a proliferação de motivações para retirar Messias Bolsonaro da Presidência demonstra cabalmente como tais processos dependem bem mais dos poderes mobilizados que das letras frias das leis. Mas também aqui o agendamento da corrupção produz efeitos corrosivos.

A corrupção serve ainda para outra operação ardilosa e perigosa de silenciamento. A armadilha está no uso intensivo do tema da corrupção, seja por questões de oportunidade política ou até de mero oportunismo. A fundamental luta político-ideológica para demonstrar à sociedade a incompatibilidade da extrema-direita com a vida democrática passa a correr o risco de ser secundarizada ou até mesmo descartada. O umbilical recurso da extrema-direita de utilizar a violência simbólica e física para liquidar seus adversários destrói regras democráticas fundamentais de vigência da pluralidade e de respeito aos adversários, que podem ser derrotados, mas nunca aniquilados em um ambiente democrático. A falta de afeição pela vida humana igualmente degrada o ambiente e coloca em xeque a própria democracia, que deve garantir os direitos fundamentais da população, inclusive os direitos humanos.

A demonstração e denúncia do genocídio imposto à sociedade brasileira pela extrema-direita no poder e da completa falta de empatia de sua liderança maior com a vida dos brasileiros foi uma disputa político-cultural complexa e trabalhosa, diante da desigual correlação de forças existente no país. A afirmação do governo e seu presidente como genocidas ganhou vigência na sociedade brasileira e internacional. Tal conquista política demandou importante luta ideológica e incomodou governo e presidente, que tentaram reprimir manifestações, que apontavam o genocídio e reiteravam o caráter genocida do regime civil-militar. A conjunção genocídio-genocida sintetiza o afã pelo autoritarismo, violência, armas, milícias, torturas e ditadura. Ela traduz a desatenção com a vida humana e o desprezo pelos números trágicos de mortes, muitas possíveis de serem evitadas.

A armadilha encontra-se aqui. Buscar a cassação por meio apenas da corrupção, caminho aparentemente mais fácil para a retirada da extrema-direita do governo federal, pode não só esconder a desigualdade e os privilégios, bases da corrupção no país, mas junto com eles, fazer esquecer o autoritarismo, o neofascismo, o ultraneoliberalismo, a falta de afeto humano, a irresponsabilidade, a destruição de direitos e a violência incompatíveis com a democracia, a vida minimamente civilizada e o genocídio de mais de 500 mil brasileiros. A formulação genocídio e corrupção tem de prevalecer no processo de luta pela derrota da extrema-direita e pela democratização da sociedade brasileira.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor na Universidade Federal da Bahia