Política

18 de julho celebra-se o legado do grande líder! Assim, também referenda-se a proteção dos direitos humanos, a igualdade entre raças e etnias e a resolução de conflitos entre povos

Em 2008, o presidente Lula encontrou-se com Nelson Mandela em Maputo, Moçambique. Foto: Ricardo Stuckert

 Não subestimamos o inimigo, pois em conflitos passados, lutando contra obstáculos muito maiores, ele combateu corajosamente e recebeu a admiração de todos. Mas naquela época ele tinha algo a defender – sua própria independência. Agora as posições se inverteram – o inimigo é uma minoria de opressores tremendamente superada em número aqui em nossa terra e isolada do mundo inteiro. E o resultado do conflito certamente será diferente.1” (Nelson Mandela, 2010: 306).

O artigo "Mandela Day: inspiração para a construção de igualdade e justiça no Brasil e no mundotraduz aspectos da vida e legados políticos do líder Nelson Mandela, da luta pelo fim da apartheid na África do Sul. Essa luta passa a ter reflexo para todo o mundo, em especial, em todos os lugares onde o racismo e a discriminação racial, tornam-se impedimento para que as pessoas não brancas vivam a cidadania plena, como é o caso do Brasil. Destaca-se, também, a busca histórica pela garantia de direitos e justiça sociorracial, e a internalização dessas lutas.

Mandela e seus legados

Em 18 de julho é comemorado anualmente o Dia de Nelson Mandela (Mandela Day). Nelson Rolihlahla Mandela, ou Madiba, como também é mundialmente conhecido, nasceu em 18 de julho de 1918. Esse dia foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em novembro de 2009, através de aprovação em Assembleia Geral, e as comemorações ampliam-se por meio da Fundação Mandela (Mandela Foundation) e outros grupos de apoio aos direitos humanos pelo mundo afora. É celebrada a vida e o legado de um dos líderes mais corajosos e admiráveis do mundo! Com isso referenda-se, também, a proteção dos direitos humanos, a igualdade entre as raças e etnias, a resolução dos conflitos entre povos e a integridade da humanidade.

Mandela estudou para ser advogado na Universidade de Fort Hare, da elite negra, mas saiu de lá em 1940, pouco antes de completar seus estudos e se envolver com o partido Congresso Nacional Africano (CNA), fundado em 1912. Nesse processo foi criado a Liga Jovem, em 1944, tendo Mandela, Oliver Tambo e Walter Sisulu como principais lideranças.

A luta de Mandela foi pela construção de uma vida melhor para o seu povo, buscando garantir igualdade social, política e econômica para todos os negros que viviam na África do Sul durante o regime do apartheid. Trabalhou como advogado-assistente e depois se tornou comandava um dos poucos escritórios que atendiam negros.

Em 1952, ele, juntamente com outros, foi acusado de violar a Lei de Supressão do Comunismo, mas sua sentença de prisão por nove meses foi suspensa por dois anos.

Fazia parte de uma das alas mais radicais de resistência dentro do CNA e, juntamente com outros colegas, acabou assumindo o controle dessa organização. Tanto o CNA quanto outros movimentos políticos antirracistas foram postos na ilegalidade e em 1964.

Mandela foi um dos primeiros a defender a resistência armada contra o apartheid, tornando-se clandestino em 1961 para formar o braço armado do CNA, o Umkhonto. Após seu retorno da clandestinidade, em 1962, Mandela foi preso e condenado a cinco anos de prisão por incitação e por deixar o país ilegalmente. Enquanto cumpria essa sentença, ele foi acusado de sabotagem e de conspiração para derrubar o governo ao lado de outros líderes anti-apartheid, foi também acusado de terrorismo por seus inimigos.

Com todas essas acusações, foi condenado à prisão perpétua em 1964, isolado de seus milhões de compatriotas, enquanto esses sofriam com a repressão, violência e reassentamentos forçados sob o regime de segregação racial.

Ele foi preso em Robben Island, uma colônia penal na costa da Cidade do Cabo, junto com outros líderes do CNA. Ao todo cumpriu 27 anos de pena.

Mesmo de dentro da prisão conseguiu manter a liderança do seu povo pela luta contra o sistema racista. Nesse período da prisão recebeu propostas para ser libertado, com a condição de que não se envolvesse com os movimentos políticos, mas recusou todas.

Os anos em que Mandela passou atrás das grades fizeram dele o preso político mais celebrado do mundo e um líder de estatura mítica para milhões de sul-africanos negros e outras pessoas oprimidas muito além das fronteiras de seu país.

Foi libertado em 11 de fevereiro de 1990. Esse momento sempre será lembrado como um dos dias mais memoráveis do mundo e não apenas na história da África do Sul.

Mandela foi eleito em 27 de abril de 1994 o primeiro presidente em uma eleição multirracial da África do Sul. Também recebeu o Prêmio Nobel da Paz, pela sua luta contra o apartheid.

As negociações entre o CNA e o governo e a disputa eleitoral foram marcadas por confrontos, mas Mandela fez campanha em todo o país, atraindo multidões de negros e brancos, com a garantia de que havia um lugar para eles na nova África do Sul. Essa foi à primeira eleição nas quais os negros puderam participar. O resultado das eleições nunca esteve em dúvida e sua posse em Pretória, em 10 de maio de 1994, foi uma celebração da liberdade de um povo.

Mandela fez da reconciliação o tema de sua Presidência. Ele tomou chá com seus antigos carcereiros, visitou instituições públicas e privadas, dialogou com a imprensa, enfim, buscou conquistar negros e brancos. Nesse processo de reconciliação segundo Cristina Mare Silva (2016), o presidente partiu do princípio que:

“o apartheid, que gerou uma série de massacres, de corpos mutilados, de filhos órfãos, postulou a premência de algo inédito que teria que ser realizado no país, que pudesse conter o ódio, frente a laços de cultura rompidos, superar o rancor e apontar para novas práticas políticas. Os sul-africanos, mesmo os privilegiados, necessitavam de esperança, algo capaz de fazer a travessia para outras formas de governabilidade” (p. 68).

Mesmo com a postura de reconciliação, o legado de tolerância de Mandela foi ameaçado, quase sem prepor disputas entre facções no CNA e as tensões políticas e sociais. Sofreu críticas na condução da política e da economia do país.

Em meio a tudo isso, seguiu firme a presidência por cinco anos em um país que, embora tenha conquistado sua libertação política, ainda sofria e sofre grandes desigualdades.

Desde que saiu da prisão, e nos momentos de campanha política e de governo, Mandela visitou diversos países, com a pretensão de fortalecer a luta anti-apartheid. Em 1991, fez visita de cinco dias ao Brasil, quando preparava sua candidatura para as eleições presidenciais na África do Sul, passou pelo Rio de Janeiro, Brasília, Vitória, São Paulo e Salvador, envolvendo-se com a brasilidade. Quando presidente já em final de mandato, em 1998, retornou para uma visita oficial ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, recebeu uma comitiva do PT, liderada por Luiz Inácio Lula da Silva.

Em 1999 deixou a presidência, investiu em líderes mais jovens, um afastamento voluntário do poder, citado como exemplo para líderes africanos que dominavam a política.

Mandela deixou a vida pública formalmente em junho de 2004 antes de seu 86º aniversário. Mas continuou a ser uma das pessoas mais reverenciadas do mundo, combinando o brilho de uma celebridade com uma firme mensagem de liberdade, respeito e direitos humanos. Após 2005 concentrou suas energias no combate à crise da Aids na África do Sul.

O reconhecimento internacional de Mandela foi crescente, foi nomeado em 2006, Embaixador da Consciência2 pela Anistia Internacional. Segundo José Filipe Pinto (2018), o prêmio se atribui:

“a ação de Mandela na luta contra o flagelo da sida. Uma prova de que Madiba tinha deixado a presidência, mas não tinha abandonado as grandes causas. Aquelas que se prendem com os direitos humanos que, apesar dos mais de setenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, continuam a não chegar a toda a Humanidade. Daí a criação de três organizações por si patrocinadas: a Fundação Nelson Mandela, o Fundo de Ajuda à Infância Nelson Mandela e a Fundação Mandela Rhodes. Por isso, a razão profunda da distinção prendia-se, de acordo com as palavras da secretária-geral da Anistia Internacional, Irene Kahn, com uma vida devotada à luta pela liberdade e pela justiça na África do Sul e no mundo. Uma forma de reconhecer a universalidade do exemplo de Mandela. Uma vida devotada à luta pela liberdade e pelo direito à dignidade” (p. 18/19).

A última grande aparição de Mandela no cenário mundial aconteceu em 2010, quando acenou para uma multidão de 90 mil pessoas na final da Copa do Mundo, um dos maiores eventos da história do país pós-apartheid.

Mandela morreu em 5 de dezembro de 2013, aos 95 anos. Para o mundo, o líder sul-africano tornou-se o grande ícone da luta contra o regime segregacionista do Apartheid.

Apartheid um regime contra a humanidade

O significado da palavra apartheid é separação em africâner, língua falada na África do Sul cujas origens remetem ao idioma neerlandês, dos holandeses. Um sistema de segregação racial instituído na África do Sul em 1948 pelas elites brancas que controlavam o país e sustentava-se no mito da superioridade racial europeia. A base constitui-se na crença de que os brancos europeus eram superiores aos negros e outras etnias, os brancos acreditavam que deveriam viver separados e serem os verdadeiros donos do país.

Infelizmente este modelo, ou próximo a ele, não é exclusividade da África do Sul, na história planetária encontram-se situações de grupos de pessoas sobrepondo-se a outras com justificativas de superioridade. Alguns exemplos são muito fortes, como: a escravidão dos africanos nas Américas, em especial no Brasil, que deixou profundas desigualdades até os nossos dias, o nazismo na Alemanha, a segregação racial nos Estados Unidos da América (EUA), entre outras formas de dominação de uma minoria sobre uma maioria.

O país foi dominado primeiramente pelos holandeses e posteriormente pelos britânicos. Após longos períodos de dominação, as primeiras leis de segregação racial foram adotadas em 1910. Entre as primeiras leis de segregação e a instituição do apartheid – que transformou o racismo em lei – algumas normas foram adotadas e contribuíram para a construção do que viria a ser um dos ordenamentos jurídicos mais truculentos da humanidade.

Na África do Sul o apartheid manteve-se pelas duras leis segregacionistas. Durante os períodos sua vigência, os não brancos eram proibidos de frequentar os mesmos lugares que os brancos, de ter a posse de terras, de circular livremente pelo território, de participar da vida política do país.

Portanto, o regime do apartheid é totalmente arbitrário e violento. Dessa forma, garantia-se à elite branca seu poder econômico, político e militar e impedia-se a ascensão social das raças consideradas inferiores.

Esse regime, apesar das fortes contestações que se espalharam na África do Sul e pelo mundo, durou 46 anos. Segundo discurso de Nelson Mandela (2018) no dia em que foi libertado:

“a destruição causada pelo apartheid em nosso subcontinente é incalculável. O tecido da vida familiar de milhões do meu povo foi destruído. Milhões estão desabrigados e desempregados. Nossa economia está em ruína e  nosso povo está envolvido em rixas púbicas. Nosso recurso à luta armada em 1960, com a formação da ala militar do CNA, o Umkhonto we Sizwe, foi uma ação puramente defensiva contra a violência do apartheid. Os fatores que exigiram a luta armada existem ainda hoje. Não temos outra opção senão continuar. Expressamos a esperança de que logo se crie um clima que conduza a um acordo negociado, para que não haja mais necessidade de luta armada” (p. 229).

Entre diversos fatores, a longa duração do segregacionismo deu-se em função de questões econômicas de interesse sul-africano e internacional, devido ao eloquente capitalismo, a manutenção de mão de obra barata no país atingia bons resultados. Mas a partir da década de 1980 a África do Sul começou a apresentar declínios econômicos, o que contribuiu para o enfraquecimento do apartheid.

Em 1973, a ONU condenou esse sistema de segregação racial e no ano seguinte o país foi retirado da Assembleia Geral. Mas mesmo assim, a África do Sul continuou violenta, com intensos casos de massacre em vários pontos do país.

A partir da década de 1980 algumas legislações foram sendo abolidas e o regime começa efetivamente a mudar em 1989. Por meio de algumas ações governamentais, houve a legalização de partidos políticos banidos e a libertação de Nelson Mandela3 e centenas de outros presos políticos.

É fato que um regime tão repressor e segregacionista não teria seu fim com a simples revogação de leis racistas. Manteve-se a resistência da minoria branca e com garantias muitas vezes frágeis. O resultado de anos de um racismo legalizado se reflete hoje em várias dificuldades sociais enfrentadas pelo país, como alta taxa de desemprego, a concentração de renda na mão de poucos, entre tantas a desigualdades sociais e raciais.

Toda luta contra o apartheid despertou o interesse mundial, tornando-se global, com pressões e sanções por parte de organismos internacionais, chamando atenção para a situação em que vivia população negra da África do Sul. A principal organização política de representação dos negros e de combate ao apartheid foi o CNA, com uma firme estratégia de resistência não violenta e de diálogo.

Em 1955, o CNA publicou a Carta da Liberdade4, esse documento em sido referencia para a defesa da igualdade de direitos para todos os cidadãos sul-africanos, independente de sua etnia; a reforma agrária; melhoria das condições de vida e trabalho; justa distribuição de renda; obrigatoriedade do ensino público entre outros. Enfim, pleite a leis efetivamente justas e o fim do regime do apartheid.

Carta da Liberdade é finalizada com a seguinte frase: “Deixe todas as pessoas que amam o seu povo e o seu país agora dizer, como dizemos aqui: por estas liberdades nós lutaremos, lado a lado, ao longo de nossas vidas, até que nós ganhamos nossa liberdade!"

Esse é o lema da luta global. É inegável que o fim oficial do apartheid trouxe uma liberdade e mudança de cotidiano aos negros sul-africanos, e a batalha para a sua total extinção dá-se de maneira contínua, em um largo período sob a liderança e força política de Nelson Mandela, visando consolidar as conquistas e direitos dos negros sul-africanos.

Apartheid à brasileira

Pode-se chamar de apartheid à brasileira o lastimável efeito do racismo estrutural5. Após 133 anos da abolição da escravização, mesmo com incessantes vozes chamando por justiça racial, o racismo está vivo. Deve-se considerar que a abolição de 1888 não aboliu, isto é, trouxe o benefício da liberdade, mas isso não implicou em ganho de direitos de cidadania para os ex-escravos. Isso promoveu um verdadeiro arrastão da situação de desigualdade social e violência, atribuída à população negra, vigorando até a atualidade.

Os agravantes deixados pela escravidão causam profundas dificuldades para a vida cotidiana da população negra, é feito de forma proposital um profundo silêncio, ou distorção da realidade pelo desconhecimento da população, principalmente dos negros, do passado da história do país.

Em relação à distorção sistemática da realidade, Jessé de Souza (2017) em seu livro A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato, argumenta que:

“a elite do atraso e seu braço midiático fazem parte, portanto, do mesmo esquema de depenar a população em seu benefício. É o que explica a constante necessidade de criar espantalhos para desviar a atenção do público do que lhe é surrupiado e explicar a penúria que seu saque provoca por outras causas. O espantalho perfeito é a corrupção dos tolos só da política, quando esses são meros lacaios de quem financia sua eleição para que protejam seus privilégios no mercado. Usa-se o desconhecimento da população, provocado pela distorção sistemática da realidade produzida pela própria mídia, para manipulá-la ao sabor da conjuntura que convém à elite do atraso” (p. 229).

Na atualidade verifica-se a sub-representação da população negra em lugares institucionais, traço visível de racismo e invisibilidade. Lélia Gonzalez (1982) no livro Lugar de Negro traz importantes contribuições para a reflexão sobre os espaços destinados à população negra:

“o lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos ‘habitacionais’ (cujos modelos são guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço” (p. 15).

De outro lado a baixa representação institucional dos negros nos meios de comunicação, empresas públicas e privadas, partidos, por exemplo, não significam ausência de racismo. Segundo Silvio Almeida (2019):

“por mais importante que seja, a representatividade de minorias em empresas privadas, partidos políticos, instituições governamentais não é, nem de longe, o sinal de que o racismo e/ou o sexismo estão sendo ou foram eliminados. Na melhor das hipóteses, significa que a luta antirracista e antissexista está produzindo resultados no plano concreto, e na pior que a discriminação está tomando novas formas. A representatividade, insistimos, não é necessariamente uma reconfiguração das relações de poder   que mantêm a desigualdade. A representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte que quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa que os negros estariam no poder”(p.111/12).

Assim, torna-se necessário discorrer sobre Florestan Fernandes (1989) que desmontou a ideia de que o Brasil seria um paraíso racial, onde não existia discriminação pelo fato do país ter se tornado uma democracia. Fernandes constatou que os negros foram marginalizados pela elite após o processo de abolição e a mesma criou a falsa teoria da democracia racial, buscando se eximir da responsabilidade de integrar o negro na sociedade, levando “a massa dos ex-escravos, dos libertos e dos ingênuos à própria sorte, como se eles fossem um simples bagaço do antigo sistema de produção” (p. 13).

Como está explícito, as desigualdades são históricas, as situações cotidianas são escandalosas. Segundo Sader (2017):

“o maior escândalo da sociedade brasileira continua sendo o genocídio de jovens negros, mortos – um a cada 20 minutos – pela polícia, de forma sistemática e impune. O Brasil segue com a mais violenta polícia do mundo, mesmo em regime politicamente democrático e com avanços sociais significativos. Não podemos pensar em um país que queremos sem conseguirmos enfrentar e resolver esse problema crucial” (p. 28).

Diante desse quadro de racismo estrutural que gera profundas desigualdades, é importante considerar as formulações de Mário Maestri (1994) e Darcy Ribeiro (2006) que refletem sobre a necessidade de revisão nacional quanto às questões étnico-raciais. Maestri enfatiza a população negra e Ribeiro a condição dos indígenas. Ambos alegam que é impossível compreendermos as relações étnico-raciais no Brasil e também a perpetuação das desigualdades, se não levarmos em conta, os legados da escravização e da dizimação dos povos indígenas, de maneira negativa, do ponto de vista teórico e político, nos estudos e na vida da sociedade.

O regime de escravidão, a abolição e a forma como foi constituída a ideia de nação brasileira caracterizam a doutrina da supremacia racial e do racismo. E, ainda, o racismo vincula-se a outros elementos que se configuram como mecanismos de desigualdades, tais como o preconceito, o estereótipo e a discriminação.

Ao longo dos séculos vê-se de um lado a dinâmica de manutenção dos privilégios dos brancos, e, de outro, a resistência e resiliência dos negros e indígenas. Estratégia duradoura de manutenção da visão da submissão dos negros e indígenas ao jugo do poder dos brancos foi o mito da democracia racial. Imposição essa que vai enfraquecendo com o desenvolvimento da sociedade e das lutas tendo por base a justiça e igualdade.

Essas são situações persistentes em nossa sociedade, assim como é o racismo, que não ocorre por falta de produção e/ou de atitudes históricas: lembremo-nos de Abdias do Nascimento6, que comumente verbalizava a frase: “a luta pela liberdade inicia-se desde o momento que a/o primeira/o negra/o foi escravizado no Brasil, após ter sido capturado na África” (ver Matilde Ribeiro, 2015).

Na atualidade, a busca de conquista de direitos e de políticas de igualdade racial pressupõe vivências complexas, possibilitando simultaneamente o convívio entre as relações mais horizontalizadas e os conflitos (ver Ribeiro, 2020). Por exemplo, uma mescla entre solidariedade e disputa, o que é próprio das lutas sociais, e que ocorre interna e externamente aos grupos que conformam os movimentos sociais e as redes de movimentos sociais, aqui em especial o Movimento Negro e a organização de mulheres negras. Nesse caso há uma busca de construção de equilíbrio e superação de fragmentação e conflitos, podendo levar à equação das diferenças entre os movimentos sociais.

Givânia Maria da Silva (2016) reflete sobre o papel do Movimento Negro e organização de mulheres negras no Brasil, alegando que:

“foi e continua sendo uma das ferramentas mais poderosas, criada pela própria população negra para manter tradições e cultura e lutar para ter acesso a políticas públicas como um direito. O processo histórico de resistência desses setores foi responsável pela incorporação da compreensão e do conceito de políticas públicas como promoção dada igualdade racial nas legislações vigentes. O Movimento Negro é também uma arte entre as diversas formas de organização do povo negro brasileiro, formuladas por pensamentos, estratégias e concepções diferentes em tempos, conjunturas e regiões também diferentes. O ‘Estado Nacional Quilombista’ ou ‘Quilombismo’ foi uma dessas visões de como organizar e distribuir a riqueza no Brasil entre negros e não negros” (pag. 57).

As ações do Movimento Negro e organização de mulheres negras tem sido contínuas ao longo da história, desde a abolição da escravidão (quando a forma de reação e de organização tinha denominações específicas, conformando o Movimento Abolucionista), passando pela Frente Negra Brasileira (FNB, anos 1930/1940), pelo Teatro Experimental do Negro (TEN, anos 1950/1970), pelo Movimento Negro Unificado (MNU, criado em 1978), e formas de organização atuais, como a Coordenação de Entidades Negra e a Coalizão de Negros pela Igualdade (Conen). Além das organizações específicas de mulheres negras (Articulação Nacional de Mulheres Negras); juventude negra (Fórum Nacional de Juventude Negra); e Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.

Esses são exemplos de formas organizativas, que tem sua abrangência e alcances de acordo com as épocas de sua atuação, o objetivo é despertar a sociedade brasileira, em especial as mulheres e os homens negros de seus direitos sociais, culturais, políticos e econômicos, e, em primeiríssimo lugar a garantia da vida com qualidade e dignidade. Essas buscas nos aproximam de todas e todos que lutam por liberdade e pela vida, nos remetem ao exemplo de Nelson Mandela, e, nos colocam em condição de irmandade com todas as lutas sociais, como o fim do apartheid e a segregação racial.

Matilde Ribeiro é doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2008). Atualmente é professora na área de Pedagogia na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção (CE)

Referência Bibliográfica

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